Acredito que a paraconsistência seja uma das maiores novidades em lógica da segunda metade do século XX.
G. H. von Wright
Tradicionalmente, a presença de contradições em teorias, sistemas matemáticos ou mesmo no discurso usual sempre foi considerada como sintoma de erro. A própria idéia de racionalidade, de difícil explicação, parece passar pelo requisito da ausência de contradição. Alguém que se contradiz não pode ser “racional”, é o que geralmente se pensa. Como então pode haver sistemas teóricos dedutivos que admitam teses contraditórias, e em particular contradições? Que utilidade teriam esses sistemas? Na maioria dos sistemas lógicos, a presença de dois teoremas contraditórios (ou seja, um deles sendo a negação do outro) acarreta sua trivialização (todas as expressões bem formadas de sua linguagem podem ser derivadas como teoremas), e então a sua aplicação torna-se questionável.
Isso significa o seguinte: chamemos de S um sistema dedutivo baseado na lógica tradicional. Suponha que em S se possam provar dois teoremas contraditórios, B e sua negação, não-B. Resulta então que se pode formar a sua conjunção, “B e não-B”, e então, pelo chamado princípio da explosão (ou Lei de Scotus), que vale nessa lógica, em S pode-se derivar como teorema qualquer expressão que seja formulada em sua linguagem (chamada de “fórmula” de S) de acordo com as suas regras gramaticais. Um sistema que prove todas as suas fórmulas aparentemente não tem qualquer utilidade, pois em tais S, dito de modo abreviado, não se poderia distinguir entre o verdadeiro e o falso. É preciso, então, ao que tudo indica, evitar contradições a todo custo. Esse sempre foi um desejo, ao menos inconsciente, de qualquer teórico. Aliás, o grande matemático alemão David Hilbert (1862–1943) associava a idéia de “existência” em matemática precisamente à consistência dos variados sistemas, ou seja, à ausência de contradições internas a eles.
Adiante, veremos com mais detalhe como tais sistemas que incluem contradições podem ser erigidos e um pouco de sua história. Por ora, vale salientar que as aplicações da lógica paraconsistente não se limitam a aspectos teóricos ou filosóficos, envolvendo a possibilidade ou impossibilidade de admitir contradições. Alguns dos campos mais férteis aplicação dessas lógicas têm sido a ciência da computação, a engenharia e a medicina. Por exemplo, na inteligência artificial essas lógicas foram usadas a partir da década de 1980 por H. Blair e V. S. Subrahmanian, da Universidade de Siracusa, Estados Unidos, e colaboradores, na elaboração de sistemas para serem utilizados especialmente em medicina. De forma simplificada, a idéia básica é a seguinte. É possível imaginar situações em que um paciente pode “se entrevistar” com um computador e este, mediante perguntas e respostas, devidamente municiado com uma base de dados adequada e com um programa que lhe permita “fazer inferências”, poderia chegar a diagnosticar e a medicar o paciente, ou então remetê-lo ao médico nos casos mais sérios. Isso poderia reduzir consideravelmente as filas nos postos de saúde (sistemas desse tipo existem nos Estados Unidos desde a década de 1970, porém, ao menos idealmente, sem envolver bases de dados contraditórias).
Na elaboração de tais sistemas, que devem ser erigidos em linguagens nas quais se possam fazer determinadas inferências — em suma, tirar conclusões a partir de certas premissas —, os cientistas em geral entrevistam vários especialistas. O que acontece é que, para o programa funcionar, cria-se um banco de dados que contenha as opiniões dos diversos médicos entrevistados, e é a partir desse banco de dados que o sistema vai “tirar conclusões”, valendo-se das regras de alguma lógica. Porém, devido principalmente à grande complexidade envolvida com sua ciência, os médicos podem ter opiniões divergentes (e mesmo contraditórias) sobre um certo assunto, ou sobre a causa de um certo mal. Logo, se no banco de dados há duas informações que se contradizem, se o sistema opera com a lógica clássica, pode ocorrer a dedução de duas proposições contraditórias, o que torna trivial — ou inviabiliza — o sistema como um todo. Para que seja possível considerar bancos de dados amplos, que eventualmente contenham informações contraditórias, e sem que se corra o risco de trivialização, a lógica a ser utilizada deve ser paraconsistente, como constataram Blair e Subrahmanian. Desta forma, é possível absorver inconsistências nos bancos de dados sem ter de eliminá-las (o que pode ser impossível).
Pode-se ainda mostrar de que forma as lógicas paraconsistentes (na verdade, certas teorias de conjuntos que delas se originam) generalizam a teoria de conjuntos nebulosos (fuzzy sets). Isso traz uma outra variedade de aplicações, onde é possível que se construam mecanismos (para-analisadores e para-processadores) que permitem considerar uma variedade de situações, muito mais abrangentes do que os “sim” e “não” da lógica tradicional.Isso pode ser entendido do seguinte modo; relativamente aos conjuntos tradicionais, tem-se o fato que: dado um conjunto X e um objeto a, tem-se que a pertence a X ou a não pertence a X. Pelo princípio do terceiro excluído, uma dessas proposições tem de ser verdadeira. Em um conjunto nebuloso, no entanto, há muito mais possibilidades além de “pertence a X” e “não pertence a X”, surgindo a possibilidade de se ter elementos que “estejam mais para dentro de X” do que outros. A analogia com uma nuvem é imediata: para certos objetos (um pássaro, por exemplo) pode-se afirmar que eles estão “dentro” da nuvem, enquanto outros estão “fora”, mas devido ao seu contorno impreciso, alguns objetos podem estar em regiões intermediárias. Algumas lógicas paraconsistentes ganham essa característica fuzzy.
A partir desse fato, têm sido feitos ensaios de aplicações (principalmente por cientistas brasileiros e japoneses) no controle de qualidade, na robótica, no de tráfego aéreo e urbano e, mais recentemente, em várias questões em medicina, em que certas decisões não podem ser tomadas a partir de um mero “sim” ou de um mero “não”. Um exemplo simples, em robótica: um robô está equipado com vários tipos de sensores, que geram informações contraditórias. Um dos casos é o de um visor óptico, que talvez não consiga detectar uma parede de vidro, dizendo “posso passar”, enquanto um sonar a detecta, dizendo “não posso passar”.
Um robô “clássico”, isto é, funcionando com a lógica clássica, e tendo ambos os sensores, terá dificuldades óbvias na presença de uma informação do tipo “passe e não passe”, mas isso é superado com o uso das lógicas paraconsistentes (o robô não “trivializa”). Da mesma forma, para que o tráfego em uma rua flua melhor, seria conveniente que os sinaleiros não ficassem simplesmente abertos ou fechados durante tempos fixos, mas que abrissem ou fechassem por tempos maiores ou menores em função do fluxo de veículos. É sabido que essas aplicações já vêm sendo realizadas há algum tempo (até os controles remotos de televisão vêm com a designação fuzzy logic), mas as lógicas paraconsistentes têm oferecido possibilidades de elaboração de sistemas alternativos.
Vários outros assuntos relacionados às lógicas paraconsistentes surgem da aplicação das lógicas paraconsistentes à ciência do direito e à ética. Nas lógicas deônticas, noções como “obrigatório” e “permitido” podem ser tratadas formalmente, e esses operadores podem ser interpretados como obrigatoriedade ou permissividade perante a lei, ou em conformidade com algum sistema moral ou ético. Por exemplo, a tomada de decisões que envolvem a possibilidade da existência “real” dos chamados dilemas deônticos é de interesse filosófico e científico.
Um dilema deôntico, falando por alto, seria como: “algo é obrigatório, mas sua negação também o é”, como na recente discussão sobre a anencefalia de certos fetos, caso em que a obrigatoriedade (ética) da gestação até o fim conflita com a obrigatoriedade da saúde física e psicológica da mãe. Nesses há conflito de normas, de modo que dilemas deônticos surgem como “reais”, e não como algo apenas aparente.
As lógicas paraconsistentes vêm auxiliar na discussão de como podemos compatibilizar sistemas éticos e jurídicos conflitantes (e até contraditórios) sem sermos tachados de irracionais. Aliás, a possibilidade dessas lógicas (e de outras não-clássicas) traz à tona uma discussão interessante sobre a própria questão da racionalidade, que tradicionalmente sempre esteve ligada a alguma noção de consistência (ou ausência de contradição).
Há vários outros exemplos importantes de usos dessas lógicas. Por exemplo, o desenvolvimento recente de lógicas quânticas paraconsistentes. Ou a aplicação de algumas lógicas paraconsistentes (ditas lógicas paraclássicas) em física, em especial para possibilitar a existência de proposições “complementares”, que são proposições que devem ambas ser consideradas numa certa teoria, mas tais que uma delas implique a negação da outra. Ou, então, na análise de questões que envolvem crença e aceitabilidade, entre outros. Importa ainda mencionar que têm sido desenvolvidas as bases de uma “matemática paraconsistente”, mas que ainda precisa ser devidamente explorada. Tais estudos acham-se enquadrados no campo da matemática pura,mas o tema é promissor e, com toda certeza, não desconsiderando o seu valor como atividade teórica, alcançará mais destaque no meio científico na medida em que forem sendo encontradas outras aplicações relevantes.
Com relação ao reconhecimento internacional das lógicas paraconsistentes, temos o seguinte. Em 1997, realizou-se em Gent, na Bélgica, o Primeiro Congresso Mundial sobre Paraconsistência. O segundo congresso foi realizado em São Sebastião, São Paulo, em maio de 2000, e o terceiro em Toulouse, França, em julho de 2003, cada um deles atraindo um número maior de pesquisadores e demais interessados no “fenômeno da paraconsistência”. Um quarto congresso está sendo programado para a Austrália em futuro breve. A realização de eventos desse porte, envolvendo pesquisadores de grande credibilidade, oriundos de alguns dos maiores centros de pesquisa do mundo, atesta que a “paraconsistência” é um fenômeno que merece atenção.
Os célebres periódicos Mathematical Reviews (publicado pelaAmerican Mathematical Society,) e o alemão Zentralblatt für Ma-thematik passaram a contar com uma seção sobre a lógica para-consistente a partir de 1991. Essas publicações mensais trazem resenhas, descritivas ou críticas, de artigos das mais importantes publicações do que se considera matemática hoje, e apresentam uma detalhada subdivisão da matemática nas suas diversas áreas.
A referência explícita às lógicas paraconsistentes e a realização dos referidos congressos mundiais sobre paraconsistência representam muito em termos da ciência brasileira. Por um lado, constata-se que as lógicas paraconsistentes passaram a constituir tópico oficial não só da matemática mas da atividade científica e filosófica de hoje. De outro lado, os desenvolvimentos subseqüentes, o reconhecimento da importância e possibilidade de aplicações as mais variadas dessas lógicas fizeram o assunto constituir-se em um campo extremamente amplo e fértil em aplicações, o que de certo modo justifica os mencionados congressos mundiais.
A importância disso para nós é que um dos passos decisivos para a criação das lógicas paraconsistentes foi dado no Brasil a partir das décadas de 1950 e 1960. Para apreciarmos melhor o valor disso, é conveniente regredirmos um pouco na história da lógica, ainda que façamos isso de forma incompleta e sem muito rigor. Aristóteles (384-322 a.C.) apresentou a primeira sistematização da lógica da qual se tem notícia. Não obstante alguns desenvolvimentos importantes, como aqueles feitos pelas escolas megárica e estóica, ainda na Antigüidade grega, os princípios básicos da lógica de tradição aristotélica permaneceram sem alterações significativas até meados do século XIX. O filósofo Immanuel Kant (1724–1804) chegou mesmo a dizer que, em matéria de lógica, nada mais poderia ser acrescentado ao que fez Aristóteles. No século XIX, matemáticos como George Boole (1815–1864), Gottlob Frege (1848–1925) e Giuseppe Peano (1858–1932) deram contribuições significativas para a criação daquilo que ficou conhecido como lógica matemática. A lógica tornou-se então uma disciplina com características matemáticas, tendo alcançado desenvolvimento extraordinário, com implicações diversas em praticamente todos os campos do saber.
Entre os princípios básicos da lógica hoje dita “clássica”, de tradição aristotélica, figura o princípio da contradição, ou da não-contradição, como preferem alguns. Esse princípio pode ser formulado de vários modos, os quais não são equivalentes entre si. Um deles diz que, dentre duas proposições contraditórias, isto é, tais que uma delas seja a negação da outra, uma delas deve ser falsa.Por exemplo, dado um certo número natural n, então, dentre as duas proposições “o número n é par” e “o número n não é par”, uma delas deve ser falsa. Em outros termos, proposições contraditórias não podem ser verdadeiras simultaneamente; assim, uma contradição, ou seja, uma proposição que é a conjunção de duas proposições contraditórias, como por exemplo “o número n é par e o número n não é par”, não pode nunca ser verdadeira. Vimos acima que a presença de uma contradição, no âmbito da lógica clássica, ocasiona a trivialização do sistema considerado.
Entre 1910 e 1913, o lógico polonês Jean Lukasiewicz (1876–1956) e o lógico russo Nicolai Vasiliev (1880–1940) chamaram a atenção, de forma independente, para o fato de que, similarmente ao que se deu com os axiomas da geometria euclidiana, alguns princípios da lógica aristotélica poderiam ser revisados, inclusive o da contradição. Como se sabe, o questionamento do chamado quinto postulado de Euclides, o famoso “postulado das paralelas”, mostrou que ele era independente dos demais axiomas da geometria euclidiana, podendo portanto ser substituído por alguma forma denegação. Isso deu origem às chamadas “geometrias não-euclidianas”, de extrema importância inclusive em física. No campo da lógica, Lukasiewicz restringiu-se a análises críticas do princípio da contradição, ao passo que Vasiliev chegou a desenvolver uma silogística que limitava o uso do referido princípio.
Foi no entanto um discípulo de Lukasiewicz, S. Jaskowski´(1906–1965), quem apresentou em 1948 uma lógica que pode-ria ser aplicada a sistemas que envolvem contradições, mas sem ser trivial. O sistema de Jaskowski, conhecido como lógica discussiva, ou discursiva, limitou-se a uma parte da lógica, que tecnicamente é denominada cálculo proposicional, não tendo ele se ocupado da elaboração de lógicas paraconsistentes em sentido profundo (envolvendo quantificação, por exemplo).
O lógico brasileiro Newton C. A. da Costa (1929-), então professor da Universidade Federal do Paraná (UFPR), foi quem, independentemente de Jaskowski (cujos trabalhos haviam saído em polonês em uma publicação sem circulação internacional), iniciou a partir da década de 1950 estudos no sentido de desenvolver sistemas lógicos que pudessem envolver contradições, motivado por questões de natureza tanto filosóficas quanto matemáticas. Os sistemas de da Costa, em que ele definiu uma hierarquia com uma infinidade de sistemas, as “lógicas-C”, estenderam-se muito além do nível proposicional. Da Costa desenvolveu cálculos proposicionais, de predicados com e sem igualdade, cálculos com descrições, teorias de conjuntos (mais tarde desenvolveu vários outros sistemas), e é reconhecido internacionalmente como o principal criador das lógicas paraconsistentes. Aliás, o termo “paraconsistente”, que literalmente significa “ao lado da consistência”, foi cunhado pelo filósofo peruano Francisco Miró Quesada, em 1976, em uma correspondência com da Costa. Apo-sentado pela Universidade de São Paulo (USP), hoje da Costa é professor do curso de pós-graduação em filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Como vimos, uma lógica é paraconsistente se pode fundamentar sistemas dedutivos inconsistentes (ou seja, que admitam teses contraditórias, e em particular uma contradição) mas que não sejam triviais, no sentido de que nem todas as fórmulas (ex-pressões bem formadas de sua linguagem) sejam teoremas do sis-tema. Os detalhes técnicos não podem ser dados aqui; o leitor interessado pode consultar as obras listadas no final do artigo.
Como campo de pesquisa, a lógica paraconsistente desenvolveu-se extraordinariamente a partir de então, tendo atraído a atenção de um grande número de pensadores em todo o mundo. No Brasil, grande parte devido à influência de da Costa, originou-se uma forte escola de lógica, inicialmente em São Paulo e Campinas, mas que hoje se estende a quase todo o país, havendo surgido lógicos que granjearam reputação internacional. Como da Costa mesmo diz, nos anos 1950 ele era o único lógico brasileiro que publicava em revistas internacionais; hoje, estima-se que haja perto de 150 pesquisadores ativos nas várias áreas da lógica. Atualmente, a lógica paraconsistente constitui tema obrigatório de estudo de qualquer estudante de lógica, filosofia ou ciência da computação. Devido às aplicações recentes cada vez mais interessantes que tem encontrado, interessa também a estudantes de física e engenharia, além de matemática, obviamente.
Importante salientar que sistemas distintos dos de da Costa, da mesma forma envolvendo inconsistências, foram elaborados posteriormente, sobretudo por pesquisadores australianos, belgas, americanos, japoneses, italianos e também brasileiros. Alguns cultores desses sistemas alternativos proclamam que a lógica clássica deve ser substituída pelos sistemas que propõem, mais ou menos como no caso do grande matemático holandês L. E. J.Brouwer (1881–1966), que no início do século XX sustentava que a matemática tradicional deveria ser substituída pela intuicionista, que ele e colaboradores haviam desenvolvido. Esta não é a opinião de da Costa, bem como de boa parte dos lógicos brasileiros. Para da Costa, a lógica clássica, que qualifica como a “mãe de todas as lógicas”, tem valor eterno em seu particular campo de aplicação, e não há por que ser substituída nesses domínios. Assim, apesar de ser o criador das lógicas paraconsistentes, da Costa não assevera que as lógicas paraconsistentes devam ser as únicas verdadeiras. Devem ser usadas quando se mostrarem convenientes, para que se alcance um melhor entendimento ou tratamento de certos fenômenos ou áreas do saber.
Por exemplo, as lógicas paraconsistentes prestaram-se para termos uma visão mais clara do significado da negação, bem como para conhecermos melhor o status do conjunto de Russell. Com elas, podemos entender melhor a possibilidade de sistematizar, de modo rigoroso, teorias que envolvem a noção de complementaridade (proposições complementares são aquelas que, se tomadas em conjunto, acarretam uma contradição) ou a teoria do átomo de Bohr (que combina sistemas incompatíveis, como a mecânica newtoniana, a teoria eletromagnética de Maxwell e a quantização), também seria possível esquematizar sistemas que incluem vagueza e mesmo contradições estrito senso.
Se desejarmos entender o significado e a natureza da lógica, podemos nos valer do fato, salientado acima, de que a lógica é, hoje, uma disciplina de mesma natureza que a matemática. Com efeito, os resultados alcançados nesse campo em nada ficam devendo, seja em profundidade, seja em alcance dos resultados, a qualquer área da matemática ou das ciências empíricas. Para tanto, basta recordar os teoremas de incompletude de Gödel, os resultados da teoria da recursão, da teoria dos modelos ou dos fundamentos da teoria de conjuntos, ainda que não possamos detalhar tais desenvolvimentos aqui. Porém, valendo-nos desta analogia, podemos olhar a lógica da mesma forma como usualmente se faz com a matemática, dividindo-a (ainda que, como na matemática, algo artificialmente) em lógica pura e em lógica aplicada.
A lógica pura pode ser desenvolvida in abstrato, independentemente de qualquer aplicação. Assim, estudam-se certos tipos de estruturas abstratas, tais como as linguagens formais ou as máquinas de Turing (que fundamentam o conceito usual que temos de computação), entre as quais estão os próprios sistemas lógicos, como a lógica paraconsistente ou a intuicionista. Pode-se, portanto, estudar a lógica (ou algum sistema particular) de um ponto de vista “puro”.
A lógica aplicada, por sua vez, tem um duplo sentido: primeiro, pode-se aplicar um determinado sistema lógico a uma certa área do saber, visando certos propósitos. Esse foi o rumo de algumas das aplicações da lógica paraconsistente vistas anteriormente. Um segundo sentido seria o do desenvolvimento de algum sistema lógico para dar conta de situações para as quais a lógica clássica — ou os sistemas conhecidos — apresentaria limitações, ou mesmo onde ouso de algum outro sistema poderia ser mais elucidativo. A lógica quântica, por exemplo, tal como originalmente sugerida por VonNeumann, é um exemplo. É discutível se a mecânica quântica ou qualquer outro sistema conceitual conhecido realmente carece de uma lógica distinta da clássica, mas é certo que o seu uso apresenta vantagens em algumas situações, como por exemplo, ao que tudo indica, casos envolvendo o conceito de complementaridade, no sentido dado por Bohr. Cabe salientar que alguns sistemas paraconsistentes surgiram desse modo.
Assim, o desenvolvimento das lógicas paraconsistentes não pretende sugerir que a lógica clássica esteja errada, e que deva ser substituída, em particular pela paraconsistente. A lógica clássica constitui um campo fantástico de estudo, permanecendo válida em seu particular domínio de aplicações, não precisando, pelo menos por enquanto, ser substituída por qualquer outro sistema. Assim, usamos um sistema paraconsistente quando for conveniente, e a lógica clássica em outras situações, sem ter de optar por uma ou outra como a “verdadeira lógica”. Fato semelhante acontece na física. É sabido que a mecânica newtoniana deve ser substituída pela relatividade em certas situações, mas continua a ser usada em outras.
Em síntese, não há uma lógica verdadeira, assim como não há uma mecânica “verdadeira”. Distintos sistemas lógicos podem ser úteis na abordagem de diferentes aspectos dos vários campos do conhecimento. É razoável aceitar, hoje, alguma forma de pluralismo lógico, no qual vários sistemas (mesmo que incompatíveis entre si) possam conviver, cada um se prestando ao esclarecimento ou fundamentação de um determinado conceito ou área do saber, sem que isso apresente qualquer problema envolvendo contradições; afinal, a metalógica que rege tudo isso é paraconsistente.