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Crítica
12 de Março de 2011   Ética

Clonagem: a objecção da manufactura

David Elliott
Tradução de Vítor João Oliveira

Se pensarmos bem, clonar um ser humano seria uma forma bastante simples, e todavia muitíssimo eficaz, de seleccionar um indivíduo com certas características genéticas. Outra forma de o fazer seria envolver-se em práticas de alquimia genética — terapia genética como diz agora (talvez eufemisticamente) — e tentar modificar o genoma de um indivíduo. Mas esta tecnologia é recente, incerta, arriscada, complexa e tremendamente cara, e até à data nada bem-sucedida. Só por si, este facto parece ser a razão pela qual certas formas de clonagem de mamíferos na pecuária doméstica têm sido amplamente favorecidas pela biotecnologia que implica a manipulação do genoma. Descobre-se a vaca de que se gosta e depois começa-se a produzir “cópias”. A clonagem humana parece implicar directamente este tipo de “manufactura” ou de selecção de oportunidades. De facto, alguém poderia sugerir que estas capacidades acabam por ser consideradas na decisão de clonar. É inerentemente uma decisão de produzir um indivíduo de um certo tipo, com certas características que esperamos que se baseiem no seu genoma. É assim que Jeremy Rifkin, um popular crítico da biotecnologia, vê a questão. Como afirma Rifkin:

“é um crime horrendo fazer de alguém uma Xerox […] [porque] está a colocar-se um ser humano numa camisa-de-forças genética. Pela primeira vez, pegamos nos princípios de produção industrial — controlo de qualidade e previsibilidade — e aplicamo-los ao ser humano”.1

A ideia moral que parece estar aqui presente é que ao fabricar pessoas, estamos a desvalorizá-las; tratamo-las como objectos para serem fabricados em vez de as tratarmos como sujeitos potenciais ou agentes capazes da sua própria reprodução.

Há diversos problemas bem conhecidos com este tipo argumentação. Primeiro, admitamos que a decisão de clonar é inerentemente uma escolha de fabrico (questionarei depois este pressuposto). O problema é que este tipo de escolhas parece tipificar tantas escolhas realizadas pelas pessoas que, mesmo que não sejam escolhas conscientes deste tipo, têm pelo menos o efeito de moldar ou seleccionar os traços dos seus filhos. Por exemplo, o processo de seleccionar um parceiro para vir a dar origem a uma criança, embora não seja (e espero que nunca venha a ser) uma mera decisão de seleccionar os traços de um filho, corresponde pelo menos em parte a uma oportunidade para o fazer. Além disso, se realmente acreditamos que as escolhas de “manufactura” são moralmente objectáveis, então fica difícil imaginar a razão pela qual as pessoas que procuram adoptar crianças precisam ser consultadas sob a adopção de uma criança particular, depois de terem manifestado um interesse genérico em adoptar. O mesmo se pode dizer de uma mulher que procura engravidar através da inseminação artificial através de dador. Parece muitíssimo forte sustentar que as suas qualidades morais para ser mãe seriam seriamente diminuídas pelo interesse nas qualidades genéricas do dador, ou que seria uma mãe ideal se apenas viesse a aceitar o esperma de um dador do qual nada soubesse quanto à aparência física, história médica familiar, etc.

Além disso, mesmo que seja falso que as pessoas realmente fazem diversas escolhas que têm o efeito de seleccionar previamente traços para o nascimento do seu filho, dão-se de certeza a uma enorme trabalho de ver se os seus filhos desenvolvem certos traços depois de nascerem. Contudo, toda esta “manufactura” parece apropriada à luz de certos pressupostos morais comuns — por exemplo, quando não é no mínimo prejudicial para a criança, quando não restringe seriamente as suas oportunidades de vir a ser autónomo, assertivo ou quando há interesse em ter (ou em evitar) certas características (digamos, doenças debilitantes). O mesmo se pode dizer sobre decisões de selecção anteriores à concepção. Inúmeras destas decisões podem ser de facto frívolas, egoístas, e assim por diante. Mas muitas podem ser susceptíveis de defesa moral por mostrarem como podem ser importantes para criar capacidades e oportunidades para o desenvolvimento de uma pessoa.

Suspeito que o que acaba por irritar muitos de nós nas decisões de manufactura não é que algumas possam ocorrer em escolhas usuais quanto a ter um filho, mas que demasiadas dessas escolhas podem ocorrer agora. Então o que poderá ser objectável é a quantidade total do mesmo tipo de escolhas. Pode-se sugerir que demasiadas escolhas de manufactura nos empurram para o ponto em que estaríamos a tratar uma (potencial) criança como um objecto dos desejos e objectivos dos seus pais, em vez de a tratar como uma pessoa em si mesma. Além de que ser capaz de determinar fortemente os traços de uma pessoa pode dar origem a preocupações relativas ao facto de os pais serem capazes de valorizar ou amar incondicionalmente um filho, ou amar a pessoa em que este se tornará em virtude do seu próprio desenvolvimento. Também pode levantar questões sobre se a pessoa potencial será capaz de desenvolver adequadamente o seu próprio sentido de eu e de agência. A este respeito, Joseph Fletcher, outro bioeticista pioneiro, exagerou na sua resposta ao argumento da manufactura quando celebrou entusiasticamente a nossa capacidade de fabricar pessoas. Escreveu Fletcher:

“O homem é um fazedor ou um seleccionador ou um projectista, e quanto mais racionalmente artificial e deliberativo for, mais humano será”.2

Fletcher chega a afirmar que a reprodução laboratorial é “radicalmente humana comparada com a concepção através das relações heterossexuais comuns” porque a manufactura é desejada, escolhida, intencional, controlada; é uma questão de “escolha, e não de acaso”.

O mérito que haverá em responder à objecção da manufactura defendendo que a manufactura é um tipo de decisão comum realizada pela maioria dos pais ou que não é moralmente objectável, é algo que não analisarei agora. Há outra consideração que é, na minha perspectiva, ainda mais decisiva. A escolha de clonar não é inerentemente a escolha de fabricar um indivíduo particular de uma certa forma, embora esta consequência seja previsível. Pode ser simplesmente a escolha de ter um filho biológico do único modo possível. Os exemplos comuns bem conhecidos oferecidos na bibliografia para apresentar razões morais aceitáveis para clonar ilustram este aspecto. Estes exemplos podem ser habitualmente classificados segundo duas grandes categorias: 1) a prevenção da infertilidade (ultrapassando-a) e 2) evitar doenças genéticas. Dada uma ou ambas destas situações, algumas técnicas de clonagem podem ser a única forma disponível para que as pessoas tenham uma descendência própria. Nestes casos, todavia, a decisão de ter um filho pode apenas ser a decisão de ter uma descendência própria; pode não ser em particular uma decisão de fabrico — um aspecto que parece particularmente verdade com respeito à ultrapassagem da infertilidade. Este é o tipo de perspectiva que pode sugerir de forma consistente a posição que devem ter os pais que procuram ter um filho através da reprodução sexual. É claro que a clonagem implica um conhecimento biológico prévio; pode-se ter uma boa ideia sobre qual seria o genoma de uma criança e sobre tudo o que isso implica. Mas, e uma vez mais, só porque haveria o conhecimento prévio de que o resultado da duplicação do genoma decorreria da decisão de uma pessoa ter um filho, daí não decorreria que a decisão de ter um filho envolvesse ou implicasse a vontade de ter um filho por essas razões. Imagine uma analogia com um casal que não se confronta com questões de infertilidade e de doenças genéticas, mas que pode saber à partida (digamos, em função de uma situação médica estabelecida) que toda a sua descendência será do sexo feminino. Não é óbvio que a sua escolha de ter um filho tenha de ser encarada como um exemplo de selecção sexual. Se isto for correcto, então não haverá pura e simplesmente razão para olhar todos os casos de clonagem como exemplos de manufactura de seres humanos. Sugiro que podem estar presentes outras motivações mais gerais, reconhecíveis e moralmente defensáveis.

David Elliott
What’s Wrong? Applied Ethicist and their Critics, ed. David Boonin e Graham Oddie (Oxford: Oxford University Press, 2005), pp. 686-687.

Notas

  1. Citado em Jeffrey Kluger, “Will we follow the sheep?” Time, 10 de Março de 1997, p. 40.
  2. Joseph Fletcher, “Ethical aspects of genetic control”, New England Journal of Medicine, 285 (1971), pp. 780–781.
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