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Crítica
8 de Agosto de 2020   Filosofia

Não há que ter medo do conhecimento!

Domingos Faria
O Medo do Conhecimento: Contra o Relativismo e o Construtivismo
de Paul Boghossian
Tradução de Pedro Elói Duarte
Lisboa: Gradiva, 2015, 172 pp.

Muitas pessoas são atraídas por conceções construtivistas da verdade, da justificação e da racionalidade, aceitando que há muitas maneiras radicalmente diferentes, mas igualmente válidas de conhecer o mundo. Ou seja, defendem a tese de que todo o conhecimento é socialmente construído. Esse construtivismo ou relativismo pós-moderno sobre o conhecimento tornou-se influente fora da academia, mas também dentro dela, em especial em campos como as humanidades e as ciências sociais. Ora, como defendem que todos os factos e provas são construídos pelas sociedades para satisfazer as suas necessidades e interesses, não existem métodos mais válidos do que outros, sendo a ciência apenas um deles.

No livro O Medo do Conhecimento Paul Boghossian examina criticamente este construtivismo ou relativismo pós-moderno, orientando a sua investigação pelas seguintes questões: Todos os métodos de conhecimento são igualmente válidos? Serão os factos sobre o mundo dependentes das nossas descrições, dos nossos valores e interesses sociais? São todos os factos socialmente construídos? Será que as proposições não são simplesmente verdadeiras, mas só são verdadeiras relativamente a uma teoria ou a um modo de falar? Será esta posição relativista coerente?

De forma a responder a essas questões, Boghossian começa no capítulo 1 a introduzir algumas noções básicas essenciais para avançar na discussão. Esse construtivismo ou relativismo pós-moderno caracteriza-se pela doutrina da igual validade que Boghossian apresenta nestes termos:

Doutrina da igual validade: “há muitas maneiras radicalmente diferentes, mas “igualmente válidas” de conhecer o mundo, sendo a ciência apenas uma delas.” (p. 13)

Seguindo esta doutrina, a ciência não é privilegiada; assim, temos, por exemplo, de atribuir tanta credibilidade à evolução como ao criacionismo cristão (que é algo que já acontece em alguns sectores nos EUA). Grande parte da motivação para esta doutrina está relacionada com a ideia de que todo o conhecimento é socialmente construído.

Mas o que significa dizer que o conhecimento é socialmente construído? O capítulo 2 ajuda a esclarecer isso. Em primeiro lugar, dizer de algo que é construído significa que não existia antes de ser encontrado ou descoberto, mas que foi criado pela atividade intencional de alguma pessoa num dado momento do tempo. Em segundo lugar, dizer que algo foi socialmente construído é acrescentar que foi construído por uma sociedade, por um grupo de pessoas organizadas de uma forma específica, com valores, interesses e necessidades específicos. Mais rigorosamente, pode-se apresentar uma definição explícita da seguinte forma:

Um facto é socialmente construído se, e só se, for necessariamente verdadeiro que só poderia ter existido pelas ações contingentes de um grupo social. (p. 30)

É óbvio que alguns factos do mundo, como dinheiro, cidadania, casamento, etc., são construções sociais e é consensual aceitar-se isso. Contudo, para os construtivistas ou relativistas pós-modernos, todos os factos do mundo são construções sociais, havendo dessa forma construções sociais mascaradas como naturais. Boghossian atribui aos construtivistas três teses principais (p. 35):

  1. Construtivismo acerca dos factos: O mundo que procuramos compreender e conhecer não é aquilo que é independente de nós e do nosso contexto social; ao invés, todos os factos são socialmente construídos de uma maneira que reflete as nossas necessidades e os nossos interesses contingentes.
  2. Construtivismo acerca da justificação: Os factos da forma “a informação i justifica a crença c” não são o que são independentemente de nós e do nosso contexto social; ao invés, todos estes factos são construídos de uma maneira que reflete as nossas necessidades e os nossos interesses contingentes.
  3. Construtivismo acerca da explicação racional: Nunca é possível explicar porque acreditamos naquilo em que acreditamos apenas com base na nossa exposição à prova relevante; as nossas necessidades e os nossos interesses contingentes têm também de ser invocados.

A doutrina da igual validade pode parecer plausível para quem considere que pelo menos uma destas teses construtivistas é verdadeira. A tese construtivista 1 é analisada por Boghossian nos capítulos 3 e 4. A tese 2 é discutida nos capítulos 5, 6, e 7. E a tese 3 é examinada no capítulo 8. O objetivo de Boghossian é argumentar que essas três teses construtivistas são falsas de forma a defender uma imagem clássica e objetiva do conhecimento; ou seja, Boghossian procura advogar que nem todos os factos são socialmente construídos.

Tese 1: Construtivismo acerca dos factos

Das três teses construtivistas a mais influente e radical é a tese 1. De acordo com essa tese, qualquer facto só existe porque uma dada sociedade o construiu de forma que reflete as necessidades e interesses particulares dessa sociedade. Entre os principais defensores dessa tese encontram-se Nelson Goodman, Hilary Putnam e Richard Rorty, avançando duas linhas de argumentação para sustentar essa tese 1: o argumento da dependência da descrição e o argumento do relativismo global. Começando pelo primeiro argumento, explorado ao longo do capítulo 3, pode-se dizer que os seres humanos constroem um facto ao aceitarem uma maneira de falar ou de pensar que descreve esse facto. Essa ideia está bem ilustrada na seguinte citação que Boghossian faz de Rorty:

Considere-se os dinossauros. [...] antes de se descrever algo como um dinossauro, ou como qualquer outra coisa, não existe sentido algum para afirmação de que isso “está ali” tendo propriedades. [...] pessoas como Goodman, Putnam e eu próprio -- [...] pensam que não há maneira de o mundo ser independentemente da descrição, não há maneira de ser sem descrição. (p. 42)

A ideia de Rorty é que todos os factos, como a existência de dinossauros, dependem da descrição ou da mente humana, não havendo qualquer facto quanto ao modo como as coisas são no mundo independentemente das descrições humanas. Assim, logo que se passe a adotar um esquema específico para descrever o mundo passa a haver factos sobre o mundo. Além disso, segundo Rorty, os seres humanos aceitam as descrições que aceitam não porque elas correspondem ao modo como as coisas são em si e para si mesmas, mas sim porque isso convém aos interesses práticos humanos. Portanto, para Rorty e para os construtivistas sobre os factos, nenhuma descrição do mundo poderia ser mais próxima do modo como as coisas são em si e para si mesmas do que qualquer outra descrição. Todavia antes do uso de qualquer dessas descrições não faz sentido dizer que existe um facto “aí fora”.

Para aprofundar este primeiro argumento, Boghossian considera igualmente a fundamentação de Goodman em que reflete acerca da existência das constelações. Para Goodman, o próprio ato de selecionar uma configuração particular de estrelas é o que faz delas uma dada constelação, não havendo qualquer constelação antes de termos selecionado certas estrelas. Dessa forma, Goodman parece rejeitar a ideia de que uma determinada constelação, como a Ursa Maior, estivesse ali no céu à espera para ser notada e nomeada. Isto porque se considerarmos que a Ursa Maior existia antes de a nomearmos, teríamos de dizer que todas as possíveis configurações de estrelas (mesmo aquelas que não queremos destacar) contam como constelações. Mas isso parece absurdo. Logo, a nossa descrição de grupos de estrelas que contam como constelações é essencial para que elas sejam como tal.

E o mesmo sucede, de acordo com Goodman, com tudo o resto, quando usamos as nossas descrições e conceitos para recortar o mundo em factos ao traçar fronteiras de um modo e não de outro. No caso das estrelas, os humanos pegaram numa dada coleção de moléculas e traçaram uma linha entre elas passando, dessa forma, a haver estrelas. No caso das constelações, os humanos pegaram numa dada coleção de estrelas e traçaram linhas entre elas passando, então, a haver constelações; e assim sucessivamente. Estas formas como os humanos traçam as linhas que traçam não podem ser consideradas como mais próximas do modo como as coisas são em si do que outras formas de traçar essas linhas, uma vez que não existe qualquer modo das coisas serem em si mesmas. As linhas são traçadas simplesmente por questões pragmáticas, servindo aos interesses e necessidades práticas dos humanos socialmente organizados. Portanto, parece não existir um modo mais válido do que outro de “traçar” ou conhecer o mundo, sendo todos igualmente válidos.

Contra este primeiro argumento, Boghossian levanta três problemas sérios que mostram a incoerência desse argumento a favor da tese 1 do construtivismo. O primeiro problema -- designado por problema da causação -- prende-se com a questão de que a maioria dos objetos do mundo antecede a nossa existência. Ou seja, antes de haver humanos já existiam, por exemplo, átomos, estrelas, etc. Ora, se isto é verdade, então como é que a existência de tais objetos pode depender dos humanos? Como podem os humanos criar os objetos que existiam antes dos humanos existirem? Parece haver aqui um problema de causalidade retroativa, em que a causa (atividade dos seres humanos) vem muito depois dos seus efeitos (como a existência de átomos ou de dinossauros).

O segundo problema -- designado por problema da competência conceptual -- refere-se à ideia de que quem usa, por exemplo, o conceito de átomo de forma competente sabe que é próprio de todo átomo ser independente de nós. Os átomos e os seus constituintes estão entre os elementos da construção fundamental de toda a matéria, constituindo os objetos macroscópicos que vemos e interagimos. Deste modo, como pode a sua existência depender de nós? Não será antes ao contrário, ou seja, não será a nossa existência que depende dos átomos?

Por fim, há o problema da discordância: imaginemos que a sociedade S1 constrói o facto de que P; do mesmo modo, podemos imaginar alguma outra sociedade S2 que constrói o facto de que ¬P. Para os construtivistas isto é igualmente legítimo; porém há aqui um problema, tal como se pode argumentar:

  1. A sociedade S1 constrói o facto de que P e a S2 constrói o facto de que ¬P.
  2. Se S1 constrói o facto de que P, então P.
  3. Se S2 constrói o facto de que ¬P, então ¬P.
  4. Logo, P e ¬P.

Porém, como é que é possível existir um só e o mesmo mundo em que há P e simultaneamente ¬P? Por exemplo, como pode ocorrer que a origem dos seres humanos tenha sido por uma longa evolução-seleção natural e simultaneamente tenha sido por criação espontânea divina sem evolução (tal como descrito nos primeiros capítulos da Bíblia)? Assim, parece que o construtivismo social sobre os factos viola a lei da não-contradição segundo a qual não pode suceder simultaneamente P e ¬P.

Serão fortes estas críticas de Boghossian? Enquanto consideramos que a primeira e segunda críticas são à primeira vista plausíveis contra uma versão forte de construtivismo sobre os factos, parece haver um sério problema na terceira. Pois, um construtivista pode facilmente resistir a essa objeção de Boghossian ao alegar que as premissas 2 e 3 não estão bem formuladas. Isto porque o construtivista não está comprometido com 2 e 3, mas sim com a premissa de que “se S1 constrói o facto de que P, então P é o caso relativamente a S1” e com a premissa de que “se S2 constrói o facto de que ¬P, então ¬P é o caso relativamente a S2”. Mas com tais premissas baseadas no relativismo, tal como Boghossian reconhece no próximo capítulo, já não se consegue estabelecer uma contradição, não se violando a lei da não-contradição.

Boghossian dedica o capítulo 4 ao segundo argumento, designado como argumento do relativismo global, a favor da tese construtivista 1. Esse tipo de argumento permite superar os problemas do anterior. Seguindo a argumentação de Rorty, a forma correta de pensar o construtivismo é considerar toda a conversa sobre factos como apenas conversa sobre como as coisas são de acordo com alguma teoria do mundo. Não há qualquer sentido de uma realidade em si mesma. Ao invés, o que faz sentido, para Rorty, é que o mundo é de uma certa forma de acordo com algum modo de falar sobre ele ou, por outras palavras, relativo a alguma teoria. Portanto, as proposições não são simplesmente verdadeiras, mas só são verdadeiras relativamente a uma teoria ou a um modo de falar. Ora, como não existe nenhum modo de as coisas serem em si, então não há modos de falar que sejam mais verdadeiros do que outros ou que sejam mais exatos ao modo de como as coisas são em si. Para Rorty, normalmente optamos por uma forma de falar (ou teoria) em vez de outra simplesmente por razões pragmáticas que são mais úteis para as nossas necessidades e interesses. Deste modo, quando dizemos que P é verdadeiro o que estamos a dizer é que P é verdadeiro relativamente ao nosso modo preferido de falar que se revelou útil para nós.

Este relativismo sustentado por Rorty é um relativismo global. Pode-se fazer a distinção entre relativismo local e global. Por um lado, o relativismo local diz respeito apenas a certos domínios específicos como a moralidade ou a estética. Por exemplo, um relativismo local aplicado à moral dirá que não devemos interpretar a frase “é errado um sujeito S fazer a ação A” como exprimindo a afirmação de que é errado S fazer A, mas sim que segundo o quadro moral M que o sujeito aceita, é errado S fazer A. Além disso, existem diversos quadros morais alternativos, de acordo com o relativismo moral, mas não há qualquer facto moral absoluto em virtude do qual um deles seja mais correto do que qualquer outro. Por outro lado, o relativismo global procura generalizar a conceção relativista não só à moral ou estética, mas a todos os domínios, inclusive os domínios factuais (como a existência de estrelas ou constelações). Com base neste relativismo global pode-se alegar que não é simplesmente verdadeiro que existem constelações (ou outro facto); o que é verdadeiro é existem constelações (ou outro facto) de acordo com um modo de falar ou teoria que achamos útil aceitar. A doutrina da igual validade parece motivada por este tipo de relativismo.

Para rejeitar este relativismo global, Boghossian recorre inicialmente ao argumento tradicional formulado, entre outros, por Thomas Nagel, para mostrar que o relativismo global é incoerente. De acordo com essa crítica, o relativismo ou é absolutamente verdadeiro ou não é absolutamente verdadeiro. Por um lado, se é absolutamente verdadeiro, então alguma coisa é absolutamente verdadeira e assim o relativismo global é falso, pois este parece negar que haja alguma coisa que seja absolutamente verdadeira. Por outro lado, se não é absolutamente verdadeiro, então o relativismo global vai ser falso para alguns não relativistas sendo, por isso, uma tese irrelevante (uma vez não há nenhuma razão objetiva para se pensar que é uma tese correta). Logo, o relativista global não parece cumprir aquilo a que se comprometeu, ou seja, mostrar que tudo é relativo. Deste modo, Boghossian argumenta que o relativismo global parece ser incoerente, pois tudo seria relativo exceto o próprio relativismo ou seria uma posição irrelevante.

Ainda que essa crítica não seja sólida, Boghossian apresenta uma objeção diferente ao relativismo global. Para o relativista global existem factos da seguinte forma: “De acordo com uma teoria que aceitamos, houve dinossauros”. Designemos tais factos como *. Mas será que existem factos absolutos do tipo descritos em *? Por um lado, se a resposta for afirmativa, então não se está a advogar que existem apenas factos relativos e, assim, não se está a defender o relativismo global. Por outro lado, se a resposta for negativa, ou seja, se aceitarmos factos do tipo * apenas relativamente a alguma teoria, então isso originará uma regressão ao infinito ininteligível; pois, tal facto * é relativo a uma teoria t1; por sua vez, essa último facto formado é relativo a uma teoria t2 e assim sucessivamente. Deste modo, o relativismo global ou não é relativismo ou não é inteligível, tal como salienta Boghossian:

O verdadeiro dilema que o relativista global enfrenta é, então, este: ou a formulação que nos oferece não consegue exprimir a ideia de que só existem factos relativos; ou consiste na afirmação de que devemos reinterpretar as nossas elocuções de maneira a que exprimam proposições infinitárias que não podemos exprimir nem compreender. (p. 75)

Tese 2: Construtivismo acerca da justificação

Se as críticas anteriores de Boghossian forem plausíveis, tal como parece à primeira vista, o construtivismo sobre os factos será falso. Ainda assim, há outras teses de construtivismo a favor da doutrina da igual validade que escapam a essas críticas. No capítulo 5 Boghossian analisa a tese 2 do construtivismo, segundo a qual os factos sobre a crença justificada não são universais e variam de comunidade para comunidade. Este tipo de construtivismo não é afetado pelas críticas apresentadas no capítulo 4, dado que agora estamos apenas diante de um relativismo local aplicado à justificação epistémica. A ideia é que “tal como há relativistas morais que pensam que não existem factos morais universais, também há relativistas epistémicos que pensam que não existem factos epistémicos universais” (pp. 77–78). Assim, mesmo que se partam dos mesmos dados, sujeitos diferentes podem ter crenças justificadas opostas. Um dos defensores desta tese, Rorty, procura ilustrar essa ideia com a famosa acusação do cardeal Belarmino contra Galileu. Nesse caso, ao passo que Galileu sustenta que tem provas que justificam a crença de que a Terra não está imóvel no centro do universo, o cardeal Belarmino defende que a Terra está imóvel no centro do universo com base na Bíblia. Seguindo a tese 2 do construtivismo, pode-se afirmar que:

não há uma verdade sobre qual destes antagonistas está certo, pois não há factos absolutos sobre o que justifica o quê. Ao invés, Belarmino e Galileu operam com sistemas epistémicos fundamentalmente diferentes -- “grelhas” fundamentalmente diferentes para determinar que “tipos de provas poderia haver para as afirmações sobre os movimentos dos planetas”. E não há uma verdade sobre qual dos seus sistemas é “correto” -- um facto que alguma epistemologia poderia descobrir --, pois não há um facto que possa ajudar a resolver a disputa [...]. (pp. 81–82)

Além disso, aceitar um ou outro sistema epistémico tem a ver com as nossas preferências, não havendo um “padrão objetivo ou absoluto” para determinar que um sistema é melhor do que o outro. Dessa forma, não podemos afirmar que uma crença é justificada absolutamente pelas provas disponíveis, mas sim que tal crença é justificada relativamente a um dado sistema epistémico que aceitámos. Ou seja, afirmar que uma informação I justifica uma crença C significa que “de acordo com o sistema epistémico E, que eu, S, aceito, a informação I justifica a crença C”. Mas que princípios são aceites em cada um desses sistemas epistémicos? Os adeptos de Galileu têm um sistema epistémico baseado em pelo menos três princípios fundamentais:

Observação: Para qualquer proposição observacional P, se visualmente parecer a S que P, e se as condições circunstanciais C forem satisfeitas, então S está, à primeira vista, justificado em acreditar que P. (p. 84)

Dedução: Se S estiver justificado a acreditar em P, e P implicar obviamente q, então S está justificado em acreditar que q. (p. 86)

Indução: Se S observou muitas vezes que um acontecimento do tipo A foi seguido por um acontecimento do tipo b, então S está justificado em acreditar que todos os acontecimentos do tipo A serão seguidos por acontecimentos do tipo b. (p. 87)

Contudo, os adeptos de Belarmino aceitam um sistema epistémico alternativo em que um dos seus princípios fundamentais é o seguinte:

Revelação: Para certas proposições P, incluindo proposições sobre astronomia, acreditar que P está, à primeira vista, justificado se P for a palavra revelada de Deus como afirmado pela Bíblia. (p. 89)

Assim, uma vez que o princípio Revelação faz parte do sistema epistémico de Belarmino, ele está justificado em acreditar que a Terra está no centro do universo, dado que isso está afirmado na Bíblia (por exemplo, em Génesis 1,14–18; Salmos 93,1; Eclesiastes 1,5). Mas, uma vez que no sistema epistémico de Galileu não há o princípio Revelação, mas sim o da Observação, Galileu está justificado a acreditar que a Terra não está no centro do universo. Contudo, seguindo o construtivismo de Rorty, não há um facto independente aos sistemas que determine que um dos sistemas epistémicos é melhor ou mais correto do que o outro. Este relativismo epistémico pode ser sustentado pelo seguinte argumento (p. 95):

  1. Se há factos epistémicos absolutos sobre aquilo que justifica o quê, então deve ser possível chegar a crenças justificadas sobre eles.
  2. Não é possível chegar a crenças justificadas sobre que factos epistémicos absolutos existem.
  3. Logo, não há factos epistémicos absolutos. [1, 2, modus tollens]
  4. Se não há factos epistémicos absolutos, então o relativismo epistémico é verdadeiro.
  5. Logo, o relativismo epistémico é verdadeiro. [3, 4, modus ponens]

As premissas centrais deste argumento são as duas primeiras. Na premissa 1 pode-se aceitar como plausível que se há factos epistémicos absolutos, é possível ter crenças justificadas sobre o que são esses factos, ou seja, tais factos epistémicos absolutos são cognoscíveis. Porém, na premissa 2 salienta-se que tais factos não são cognoscíveis. Isto porque não temos forma de determinar que um sistema epistémico é correto ou objetivamente superior ao outro de um modo independente do próprio sistema que se adota. Por isso, sob pena de cometer petição de princípio, não é possível determinar qual é o sistema epistémico objetivamente correto e, assim, os factos objetivos sobre a justificação epistémica são incognoscíveis, tal como se refere na premissa 2. Uma vez estabelecidas essas premissas pode-se aceitar a conclusão.

Nos capítulos 6 e 7 Boghossian procura criticar o relativismo epistémico e apontar que premissa se pode negar no argumento acima exposto. Começando por uma objeção geral ao relativismo epistémico, pode-se defender que esse tipo de relativismo é incoerente. Pois, por um lado, segundo o relativista todos os juízos epistémicos particulares absolutos e não relativizados são falsos, dado que não há factos absolutos sobre a justificação. Assim, para o discurso epistémico fazer sentido, tais juízos têm de ser relativizados a um dado sistema epistémico que se aceite. Contudo, por outro lado, os sistema epistémico são composto por conjuntos de princípios ou juízos epistémicos gerais absolutos e não relativizados, como Observação, Dedução, etc. Daqui se segue “que os princípios epistémicos gerais que constituem sistemas epistémicos que aceitamos têm de ser também falsos” (p. 108). Mas, então, o relativista solicita para se rejeitar todos os juízos epistémicos particulares absolutos e não relativizados ao mesmo tempo que permite que os sistemas epistémicos sejam constituídos por juízos epistémicos gerais absolutos e não relativizados. Ora, uma tal posição parece incoerente. E qual é a premissa do argumento do relativista epistémico que se pode criticar? No capítulo 7 Boghossian dá razões para se negar a premissa 2 desse argumento, chamando a atenção que essa premissa é sustenta pelo seguinte princípio:

Encontro: Se encontrássemos uma alternativa fundamental e genuína, C2, ao nosso sistema epistémico C1, não poderíamos justificar C1 contra C2, mesmo à nossa própria luz. (p. 120)

Contudo, o princípio Encontro tal como está formulado não parece plausível, pois podemos defender a superioridade de um sistema epistémico ao alegar que o nosso sistema é coerente ao passo que o do oponente é incoerente. Um sistema epistémico pode ser incoerente por emitir, prescrever, ou implicar veredictos inconsistentes ou autoderrotantes. Por exemplo, se C2 é incoerente, certamente seríamos capazes de justificar a coerência do nosso C1 contra C2. Ora, temos razões objetivas para preferir sistemas coerentes a sistemas incoerentes. De forma a contornar esse problema, talvez se possa acrescentar ao princípio Encontro o requisito da coerência de modo a referir apenas a sistemas epistémicos alternativos que sejam coerentes. No entanto, uma tal reformulação do princípio seria muito forte, dado que não é plausível conceder ao relativista que seríamos incapazes de justificar o nosso próprio sistema C1 contra uma alternativa coerente imaginada C2. Pois, sob pena de cairmos em ceticismo, desde que não haja uma dúvida legítima sobre a correção dos nossos princípios epistémicos, estamos perfeitamente autorizados a confiar neles para justificar o nosso sistema C1 contra C2, “tal como estaríamos autorizados a basear-nos neles para pensar sobre qualquer outra questão” (p. 125). Assim, o princípio Encontro não dá suporte à premissa 2 e, por conseguinte, a fundamentação do relativismo epistémico também colapsa.

Tese 3: Construtivismo acerca da explicação racional

Boghossian dedica o capítulo 8 a uma análise bastante breve da última tese construtivista. De acordo com essa tese, não somos motivados para a crença por razões epistémicas; ou seja, a exposição à prova relevante pode nunca ser suficiente para explicar porque formamos as crenças que formamos, sendo que os nossos interesses sociais contingentes desempenham um papel preponderante. Este tipo de construtivismo tem duas versões:

Versão forte: “as nossas razões nunca dão qualquer contributo para a explicação causal das nossas crenças, de tal maneira que a explicação correta é sempre exclusivamente em termos dos nossos interesses sociais”. (p. 138)

Versão fraca: “embora as nossas razões epistémicas deem algum contributo, nunca podem ser adequadas por si mesmas para explicarem as nossas crenças, e os interesses sociais contingentes são necessários para cumprir essa função”. (p. 138)

Dessas duas versões aquela que é mais plausível e defensável para Boghossian é a versão fraca. Nessa versão aceita-se que a prova pode contar na explicação da crença; porém, nunca é suficiente para a explicar. Mas que razões há para aceitar tal versão de construtivismo? Esse construtivismo pode ser suportado pelas ideias influentes de Thomas Kuhn sobre a incomensurabilidade dos paradigmas. Para Kuhn um paradigma inclui um dado sistema epistémico (com os seus princípios epistémicos fundamentais), bem como um conjunto de questões, padrões e métodos reconhecidos. Kuhn chamou à atenção que na ciência, quando uma teoria dominante acumula anomalias que obrigam os cientistas a reconsiderar algum pressuposto fundamental no paradigma vigente, pode dar-se uma mudança de paradigma à qual se designa como “revoluções científicas”. No entanto, para Kuhn não podemos alegar que um paradigma é melhor do que o outro, dado que é impossível comparar paradigmas. Essa incomensurabilidade entre paradigmas pode ser fundamentada, em primeiro lugar, na constatação de não haver uma forma neutra de decidir se os ganhos da adoção de um novo paradigma superam as perdas; em segundo lugar, na verificação de que os diferentes paradigmas apresentam linguagens e conceitos diferentes; e, em terceiro lugar, no facto dos adeptos dos diferentes paradigmas viverem “em mundos diferentes”. Assim, dada a incomensurabilidade, não são razões estritamente epistémicas que explicam a adesão a um novo paradigma, teoria, crença, mas sim interesses pessoais e sociais contingentes, tal como se advoga na versão fraca da tese 3.

Contra essa versão de construtivismo Boghossian procura mostrar que ainda que as ideias de Kuhn sobre a incomensurabilidade estivessem corretas daí não se seguiria a tese construtivista 3 (mesmo na versão fraca). Isto porque a tese de Kuhn é empírica e, dessa forma, não dá sustento a uma tese modalmente caracterizada de acordo com a qual, necessariamente, as razões epistémicas ficam aquém da crença. Além disso, das ideias de Kuhn não se segue que nenhuma crença possa ser explicada por razões epistémicas. Boghossian ataca igualmente a ideia de que há incomensurabilidade entre paradigmas, dado que há

muitos exemplos convincentes de previsões partilhadas que fornecem uma base para se preferir racionalmente uma teoria a outra. Por exemplo, mesmo que admitíssemos que os paradigmas ptolemaico e coperniciano queriam dizer coisas diferentes com “planeta”, “estrela”, etc., há claramente algumas previsões feitas pela duas teorias que podem ser expressas numa linguagem neutral e que a teoria coperniciana faz melhor que a ptolemaica. (p. 152)

Por fim, o capítulo 9 estabelece sinteticamente as conclusões centrais deste livro, sublinhando-se a ideia de que o construtivismo não sobrevive ao escrutínio e, por isso, não há que ter medo da imagem clássica do conhecimento. Os argumentos de Boghossian parecem ser à primeira vista e em geral bem-sucedidos pelo menos contra uma versão forte de construtivismo em que se alega que tudo é socialmente construído, ficando em aberto se atinge igualmente versões mais moderadas de construtivismo e relativismo. Em relação a este último ponto pode-se evidenciar que Boghossian negligenciou alguma da literatura mais recente. Ainda assim, neste livro pode-se constatar um bom exemplo de como um livro pequeno, envolvente, e acessível pode ter uma argumentação cuidadosa, criativa, e muito rigorosa.

Domingos Faria
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