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1 de Novembro de 2006   Filosofia da mente

Um dualista desafortunado

Raymond F. Smullyan
Tradução de Jônadas Techio

Era uma vez um dualista. Ele acreditava que a mente e a matéria são substâncias separadas. Como é que interagiam ele não alegava saber — este era um dos “mistérios” da vida. Mas estava seguro de que eram substâncias realmente separadas.

Esse dualista, infelizmente, tinha uma vida insuportavelmente dolorosa — não por causa de suas crenças filosóficas, mas por razões muito diferentes. E tinha excelentes dados empíricos de que nenhum alívio estaria à vista pelo resto de sua vida. Ele não desejava nada mais do que morrer. Mas estava dissuadido do suicídio por razões como 1) não queria machucar as outras pessoas com sua morte; 2) temia que o suicídio fosse moralmente errado; 3) temia que pudesse existir uma vida após a morte, e não queria arriscar a possibilidade de punição eterna. Assim, nosso pobre dualista estava bastante desesperado.

Foi então que ocorreu a descoberta da droga miraculosa! O seu efeito no usuário era aniquilar por inteiro a alma ou a mente, deixando, porém, o seu corpo a funcionar exatamente como antes. Absolutamente nenhuma mudança observável acontecia com o usuário; o corpo continuava agindo exatamente como quando ele tinha uma alma. Nem um amigo ou observador mais próximo poderia saber de modo algum que o usuário tinha tomado a droga, a menos que o usuário o tivesse informado.

Você acredita que tal droga é em princípio impossível? Supondo que acredita que é possível, você a usaria? Você a trataria como imoral? É equivalente ao suicídio? Há algo nas Escrituras proibindo o uso de tal droga? Certamente que o corpo do usuário pode continuar preenchendo todas as suas responsabilidades na Terra. Outra questão: suponha que sua cônjuge tivesse usado tal droga, e que você soubesse disso. Você saberia que ela (ou ele) não tinha mais uma alma, embora agisse exatamente como se tivesse uma. Você amaria sua parceira mesmo assim?

Voltando à história, nosso dualista estava, obviamente, deleitado! Agora poderia aniquilar-se (ou seja, aniquilar a sua alma) de uma maneira não sujeita a qualquer das objeções anteriores. E desse modo, pela primeira vez em anos, foi para a cama de coração leve, dizendo: “Amanhã pela manhã irei à farmácia e comprarei a droga. Meus dias de sofrimento até que enfim acabaram!”. Com esses pensamentos, tranqüilamente caiu no sono.

Mas neste ponto aconteceu uma coisa curiosa. Um amigo do dualista que sabia dessa droga, e que sabia do sofrimento do dualista, decidiu pôr fim ao seu tormento. Assim, no meio da noite, enquanto o dualista estava em sono profundo, o amigo infiltrou-se silenciosamente na casa e injetou a droga nas suas veias. Na manhã seguinte, o corpo do dualista acordou — de fato sem alma alguma — e a primeira coisa que fez foi ir à farmácia e comprar a droga. Levou-a para casa e, antes de usá-la, disse, “Agora me libertarei”. Usou-a então e aguardou o intervalo de tempo no qual ela supostamente deveria funcionar. Findo esse intervalo de tempo, exclamou raivosamente: “Maldição, essa coisa não ajudou nem um pouco! Eu obviamente continuo tendo uma alma e estou sofrendo tanto quanto antes!”

Não sugere tudo isto que talvez haja algo apenas um pouco errado com o dualismo?

Raymond F. Smullyan
Excerto do livro This Book Needs No Title (Prentice-Hall, 1980). Reimpresso na coletânea Philosophy of Mind (Chalmers, David, org., Oxford University Press, 2002, p. 31).
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ISSN 1749-8457