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Crítica
10 de Março de 2005   Filosofia da mente

Emoção e racionalidade

Tomás Magalhães Carneiro
Emotion, Evolution and Rationality
organizado por Dylan Evans e Pierre Cruse
Oxford: Oxford University Press, 2004, 267 pp.

Este livro reúne uma série de artigos de algumas das leading figures da investigação em ciência cognitiva acerca do papel das emoções no comportamento humano, em particular na racionalidade prática.

Desde Platão até aos nossos dias a ideia dominante (sobretudo no ocidente) é de que as emoções são um entrave ao comportamento racional dos seres humanos, pelo que ao opormos razão a emoção julgamos estar a separar lógica de intuição, pensamento racional de pensamento irracional, verdade de falsidade. A imagem prevalecente é a da razão como um cocheiro que tem de controlar pelas rédeas os seus indomáveis “puros sangues”, as emoções. Mas o que as mais recentes investigações empíricas nos dizem é que esta imagem não descreve a forma como realmente opera a nossa razão, sugerindo que a devemos deixar cair juntamente com alguns outros mitos acerca do que é a racionalidade humana e do que é ser racional. Depois de milhares de anos em que foram reprimidas e afastadas dos estudos sérios acerca da racionalidade as emoções são hoje em dia consideradas por filósofos da mente, psicólogos e neurocientistas como “vitais para a acção inteligente”.

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O tema deste livro, como se compreende logo pelo título, é a relação entre as emoções, a evolução e a racionalidade. Quem estranhar o que faz a evolução no meio destas duas capacidades cognitivas humanas é porque anda completamente alheado do poder explicativo deste conceito que Dennett ironicamente cunhou de “ideia perigosa”. A evolução é, por excelência, o processo cognitivo da natureza e foi evolutivamente que a razão humana atingiu o elevado grau de complexidade que conhecemos e que lhe permite, inclusive, estudar-se a ela própria. Ao encarar a racionalidade humana (e não só!) como o culminar de um lento processo de evolução por selecção natural compreendemos que esta não pode ter surgido como que por magia mas, como tudo na natureza, desempenha um papel específico e necessário na manutenção da vida dos organismos que desenvolveram formas de racionalidade adaptadas aos seus meios ambientes. O que esta “ideia perigosa” nos diz não é apenas que temos de repensar as nossas emoções encarando a forma como estas terão evoluído a partir de formas biológicas mais simples e directas (como os reflexos) e o modo como se encontram omnipresentes nos nossos processos de raciocínio, mas diz-nos também que temos de repensar os nossos próprios conceitos de racionalidade e irracionalidade, frequentemente pejados de preconceitos idealizantes, irrealistas e, esses sim, perigosos.

Este livro está dividido em quatro partes. Na primeira parte, “Neuroscientific Foundations”, António Damásio compara a sua teoria das emoções com a de William James. Segundo Damásio a sua teoria é “jamesiana” quando diz que as emoções e os sentimentos são essencialmente mudanças corporais. No entanto Damásio avança alguns passos em relação a James afirmando que as emoções podem ter origem em mapas corporais, os conhecidos marcadores somáticos de Damásio, que simulam estados corporais que na realidade não estão a acontecer. Um modo que a evolução (cá está!) encontrou para poupar tempo e energia.

Na segunda parte, “Emotion, Belief and Appraisal”, procura-se distinguir e relacionar emoções básicas (biológicas, instintivas, pré-conscientes) e atitudes proposicionais mais complexas (culturais, verbalizadas, conscientes). Nesta secção temos um vislumbre do vibrante diálogo entre teorias cognitivas das emoções (embora nenhum destes autores assuma uma posição puramente cognitivista), que afirmam que as emoções têm conteúdo cognitivo, e teorias não cognitivas das emoções, segundo as quais as emoções são estados biologicamente básicos, sem conteúdo cognitivo. No primeiro artigo desta segunda parte, “Emotional Behaviour and the Scope of Belief-Desire Explanation”, Finn Spicer pergunta se as atitudes proposicionais, como desejos e crenças, produzem e controlam o nosso comportamento, como pretendia David Hume. Segundo Spicer as explicações cognitivistas (humianas) podem por vezes captar a forma como a acção decorre das emoções, mas existe um certo tipo de comportamento emocional, que funciona ao nível sub-pessoal, e que não é explicado pelo padrão humiano. No segundo artigo Jesse Prinz quer saber quais as emoções básicas (“Which Emotions are Basic?”). Para ele as emoções podem ser ao mesmo tempo corpóreas e socialmente construídas. A cultura influencia a formação de algumas emoções, mas mesmo estas pressupõem emoções biologicamente básicas. Aquelas emoções que normalmente consideramos básicas (felicidade, surpresa, medo, angústia — as nossas emoções verbalizadas) podem não ser biologicamente básicas, mas são certamente psicologicamente básicas. Ou seja, estas emoções consideradas básicas podem não ser inatas, mas antes o produto de outras emoções (ou estados corporais) ainda mais fundamentais, informadas por aspectos culturais. Em “Towards a Machiavellian Theory of Emotional Appraisal” Paul Griffiths acredita que tanto as emoções básicas como as emoções superiores podem ser compreendidas em termos de estratégias acerca daquilo que é bom para o sistema num determinado meio ambiente. No entanto, as emoções mais básicas fogem a uma eficaz classificação semântica. Griffiths diz que as devemos encarar como subconceptuais e, como tal, desenvolver vários níveis de “teorias de avaliação emocional”.

Na terceira parte, “Evolution and the Rationality of Emotions”, a mais revolucionária das quatro que compõem o livro, são-nos oferecidas algumas novas perspectivas sobre o que se entende por racionalidade e irracionalidade. Em “Evolution, Culture and the Irrationality of the Emotions”, Chandra Sripada e Stephen Stich avançam a hipótese de as emoções estarem ligadas a objectivos e valores mentalmente representados, a que chamam de “estrutura de valores” (value structure). Quando estas estruturas num organismo ou sistema são disfuncionais (i.e., ecologicamente mal adaptadas) conduzem naturalmente a emoções e a comportamentos irracionais. Sripada e Stich defendem, como se entende, uma concepção pragmatista e contextualista de racionalidade. Em traços gerais, é racional o que é favorável ao sujeito tendo em conta o meio ambiente em que este se insere e é irracional o que não lhe é favorável. Estes dois autores desmistificam também um pouco a ideia de evolução por selecção natural que alguns compreendem de forma ingénua. Segundo Sripada e Stich nem tudo o que evolui por selecção natural é bom. Do facto de as emoções serem desenhadas (designed) pela selecção natural não se segue que elas necessariamente desempenhem um papel positivo no processo de tomada de decisão racional.

De acordo com António Damásio o papel das emoções é o de reduzir o número de opções a serem avaliadas pela análise racional e não emocional de custo-benefício aquando do processo de tomada de decisão, ou como afirma Dylan Evans em “The Search Hypothesis of Emotion”, as emoções impedem que nos percamos em infindáveis explorações entre opções de acção potencialmente infinitas, providenciando-nos uma estratégia de busca adequada a cada problema com que nos deparamos (para este problema da escolha racional ver o paradoxo do burro de Buridan). No seu artigo, “The Role of Emotions in Ecological and Practical Rationality”, Matteo Mameli “arrisca” um pouco mais que Damásio e Evans afirmando que nos seres humanos a escolha entre diferentes vias de acção é sempre determinada pelas emoções. As nossas capacidades deliberativas foram construídas (mais uma vez a “ideia perigosa”) em cima das nossas capacidade emocionais e estão, por isso, inextrincavelmente ligadas a estas. É por esse motivo que apenas somos capazes de decidir quando ajudados pelas nossas emoções. De acordo com Mameli uma decisão nunca é puramente racional, são sentimentos inconscientes que determinam a acção. É fácil compreender as implicações éticas que uma teoria como esta poderá ter, nomeadamente em questões de livre-arbítrio e de responsabilidade moral.

Na quarta e última parte, a mais filosófica e interessante deste livro, Peter Goldie procura superar a perplexidade a que uma posição como a de Mameli nos conduz. No seu artigo, “Emotion, Reason and Virtue”, afirma que se é verdade que as emoções nos ajudam a conhecer o mundo que nos rodeia (como Damásio e Evans afirmam) também é verdade que elas podem encher esse nosso conhecimento de preconceitos e má-fé desvirtuando o nosso “horizonte epistémico”. Segundo Goldie, se estivermos na disposição emocional adequada veremos as coisas como elas são, o mesmo não se passa se estivermos num estado emocional alterado. Assim, como nunca nos encontramos num ponto de vista desapaixonado, exterior às nossas emoções, nunca poderemos vir a saber se as nossas emoções são as mais acertadas. Como tal Goldie afirma que devemos postular um requisito de virtude intelectual que reconhecemos como razoável, mas que não sabemos como justificar empiricamente. Um requisito normativo, portanto. Para sermos intelectualmente virtuosos devemos em primeiro lugar ser moralmente virtuosos e para isso devemos “afinar” as nossas emoções, competências, comportamento e hábitos. Para Goldie, os estados disposicionais das pessoas estão sob o seu controlo, mesmo que algumas emoções em particular não o estejam. Como tal, é possível responsabilizar alguém cujas emoções injustificadas estejam em dissonância com o mundo.

O que se percebe da leitura dos artigos que compõem este livro é que a imagem do cocheiro racional a controlar as emoções potencialmente desenfreadas caducou definitivamente. O cocheiro saltou fora da carruagem em andamento, os cavalos indomáveis tomaram o comando das rédeas confundindo-se com a própria carruagem. Cabe-lhes agora domarem-se uns aos outros, puxando pelos freios uns dos outros impedindo que uns puxem mais para um lado que para o outro. A estrada é estreita, o piso escorregadio e o cocheiro ficou apeado. Sem dúvida que a viagem se tornou muito mais emocionante.

Tomás Magalhães Carneiro

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