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Crítica
11 de Novembro de 2004   Filosofia da mente

Intencionalidade, comunicação e cognição (e alguns pequenos problemas)

Luís Milman

I. Intencionalidade: caracterização mais geral possível

Pretendo abordar o tema da intencionalidade e algumas de suas implicações, tarefa que, reconheço, não é das mais amenas em filosofia. Partirei assim da idéia-força de Franz Brentano sobre a natureza dos estados psicológicos, idéia em evidência junto à escola analítica desde a década de 60: em sua enunciação, a idéia não oferece dificuldade de compreensão: tudo aquilo que se dirige, é sobre, faz alusão, menção ou referência a alguma coisa possui a propriedade da intencionalidade.1

A idéia de intencionalidade tem importância e repercussão ampla para os estudo em filosofia da mente e da linguagem, pois (a) propõe um critério para distinguirmos entre o que é mental e o que não e (b) gera implicações lógicas para a compreensão dos processos cognitivos e comunicativos.

Esta caracterização diz respeito ao que os estados mentais são, às suas condições de individuação e reconhecimento, que os distingue dos fenômenos físicos. Não se pode falar da grande maioria dos fenômenos mentais ou das representações, sejam lá de que tipo forem, intransitivamente, ou seja, sem relacioná-los ao que se dirigem: se x representa, x representa alguma coisa; se dissermos que um indivíduo pensa, estamos dizendo implicitamente que pensa em algo; quando dizemos que alguém acredita, que acredita em algo, e assim quando vê ou ouve. Uma crença é uma crença porque concerne à propriedade de um objeto ou a uma relação entre objetos. Da mesma forma, um desejo, uma intenção, um temor, uma expectativa, etc.…

A intencionalidade parece ser uma propriedade — talvez a propriedade essencial — do conjunto de todas as representações (proferimentos lingüísticos, gestos, sinalizações e figuras). Daí se segue que (a) o problema teórico das representações é idêntico ao problema teórico da intencionalidade e (b) que há uma conexão necessária entre teorias sobre a linguagem e representações públicas e teorias sobre fenômenos mentais intencionais.

Disse anteriormente que a propriedade da intencionalidade é ontológica. Vou usar um exemplo simples para ilustrar esse ponto. A distinção entre Nicole Kidman e quaisquer de suas representações possíveis é inequívoca. A fotografia de Nicole Kidman é sobre um determinado indivíduo, mas Nicole Kidman não é sobre nada. Não ser sobre nada é a propriedade conversa da intencionalidade.

Esta diferença entre aquilo que é representado e aquilo que representa não se dissipa quando constatamos que uma representação pode ser sobre uma outra representação. Existem relações intencionais entre representações, digamos, relações intencionais de segunda ordem, nas quais uma representação (r) é sobre outra representação (r'). Nesse caso, a representação representada passa a ser um objeto. Exemplos: Um desenho feito sobre a fotografia do Papa e a nomeação (menção) de uma palavra. O primeiro caso se compreende imediatamente; o segundo requer duas pequenas explicações, entre usar e mencionar (uso e menção) e entre representações de estados intencionais: uso a palavra cadeira para falar sobre uma cadeira, por exemplo e menciono a palavra cadeira para falar sobre a palavra que uso ou posso usar para falar sobre uma cadeira. Por exemplo, estou mencionando a palavra “cadeira” quando digo que cadeira é uma palavra da língua portuguesa que designa um certo tipo de objeto normalmente usado como assento. Além disso, uma crença pode ser sobre uma outra crença. Por exemplo, acredito que quando era jovem, acreditava em mudar o mundo.Também aqui a crença na qual eu acreditava é o objeto de minha representação atual.

Há que considerar, nesse ponto, uma outra abordagem do assunto que, podemos dizer, agrega-se ao tema da intencionalidade. Frege dizia que quando falamos das coisas, o fazemos por meio de signos que possuem sentido e referência. A referência é a própria coisa designada e o sentido é um tipo de objeto abstrato, que ele chamava de modo de apresentação da referência ou pensamento. De qualquer modo, para Frege, o sentido determina a referência. Assim, símbolos, segundo fregianos, são coisas que se referem a outras coisas porque possuem sentido em certos contextos de cognição e fala. Em contextos especiais, como nos chamados contextos intencionais (enunciados nos quais ocorrem verbos como acredita, deseja, etc.s) ou enunciados indiretos (disse, nega, refuta, etc.…), símbolos não se referem às próprias coisas sob determinados aspectos, mas a objetos abstratos e complexos chamados por Frege de “sentidos” ou “pensamentos”.

Pensamentos não são psicológicos, na acepção de Frege; são entidades objetivas que existem do mesmo modo que a nota de um real que tenho em meu bolso. A diferença é que pensamentos são entidades relacionadas à linguagem e apenas à linguagem. Essa não é uma questão apenas ilustrativa aqui. Para o que importa entender, Frege dizia que não podermos ter acesso diretamente às coisas, que nosso conhecimento delas é sempre dependente de um pensamento, que as determinam, independentemente da existência ou não dessas coisas. E por quê ele dizia isto? Posso dizer que os marcianos congelados em meu quarto são gigantes e você pode dizer a mesma coisa. Logo, aquilo que dizemos expressa um mesmo pensamento, não privativo de nenhum de nós, mas comum a ambos e que pode ser verdadeiro ou falso.

Pensamentos são definidos como entidades objetivas, que podem ser verdadeiras ou falsas. Essa noção é problemática, porque Frege não deslindou suficientemente tal conceito do ponto de vista metafísico. Ele apenas constatou que compartilhamos de pensamentos idênticos e, por isso, essas entidades não são psicológicas. E também constatou que podemos nos referir ao mesmo objeto de modos diferentes. Por exemplo: Nicole Kidman e a ex-mulher de Tom Cruise são a mesma pessoa, mas pensar que Nicole Kidman é a mais bela atriz de Holliwood não é o mesmo que pensar a ex-mulher de Tom Cruise é a mais bela atriz de Holliwood. Afinal, posso saber quem é Nicole Kidman sem saber que ela foi mulher de Tom Cruise.

Wittgenstein, como Russell, chamava os pensamentos de proposições, (e na linha de Frege) disse que essas são definidas pela idéia de funções de verdade. Um enunciado tem sentido porque expressa algum tipo de proposição e essa possui uma mapa que mostra as possibilidades em que pode ser verdadeira ou falsa. Ele chamava esse mapa de tabela de verdade e pretendia que suas tabelas mostrassem precisamente todas as possibilidades em que enunciados são falsos ou verdadeiros, sem dizer se eles são falsos ou verdadeiros, porque a verdade (com exceção das proposições da própria lógica) são verdadeiras ou não em vista de sua relação com o mundo. Por isto (também) Wittgenstein disse que as proposições da lógica, por terem um mapa que mostra serem sempre verdadeiras, não possuem sentido.

Muitos teóricos definem pensamentos/proposições de formas diferentes: uns o tomam como sendo uma propriedade funcional de uma expressão (a expressão refere-se a algo porque desempenha um determinado papel em inferências com as quais se relaciona). Outros dizem que modos de apresentação não são sentidos, porque sentidos são o que duas expressões sinônimas preservam e existe uma lei da lógica que diz que se substituirmos uma expressão sinônima por outra, numa sentença, o valor de verdade da sentença não se altera. Mas se Frege estava certo, se você não sabe que Nicole Kidman e a ex-mulher de Tom Cruise são a mesma pessoa, então, para você, a sentença na qual ocorre “Nicole Kidman” pode ser verdadeira e a sentença na qual ocorre “a ex-mulher de Tom Cruise” pode ser falsa. Na perspectiva de Brentano, teríamos dois objetos intencionais distintos. Na de Frege, dois pensamentos distintos sobre o mesmo objeto.

Do ponto de vista intencional, quando dizemos que as palavras “Nicole Kidman” representam alguém determinado, estamos fazendo uso de uma noção intencional primária, estamos nos referindo (por meio de um pensamento ou não) à pessoa mesmo e somente a partir dessa noção de referência a algo é que a noção de intencionalidade de segunda ordem pode ser compreendida. Ou seja, quando falamos em intencionalidade, fazemos uma distinção entre coisas intrinsecamente intencionais (representações) e coisas intrinsecamente não-intencionais (objetos) que, de algum modo, mantêm relações entre si.

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II. Cognição, comunicação e realidade

Muitos contestariam certas noções que empreguei, como a de propriedade intrínseca. Para mim, existem propriedades intrínsecas e a intencionalidade é uma propriedade intrínseca das representações primárias. Essa discussão envolve estados, eventos, situações, que ocorrem em nível mental e suas relações (a) com os inúmeros tipos de atos comunicativos que os exteriorizam e (b) com fatos, eventos, estados, situações que ocorrem ou podem ocorrer no mundo extramental.

Não é sequer remotamente plausível compreender a intencionalidade de palavras, enunciados, atos comunicativos ou discursos, sem que venhamos a entender como eles se relacionam com cognições (pensamentos, crenças e outros fenômenos que apresentam características primariamente intencionais) e, de alguma forma, com coisas extramentais. É verdade que a relação com coisas extramentais não ocorre sempre. Muitos acreditam em discos voadores, em Ets, em percepção extra-sensorial, em anjos protetores e coisas deste tipo. Tais coisas não são reais como as pistas que levam Sherlock Holmes a descobrir o assassino nos romances de Conan Doyle. São curiosidades mentais, vistas sob uma ótica lúcida e devemos saber lidar com elas teoricamente. Talvez sejam constructos de coisas reais, mas o que elas são de fato não é relevante. Relevante é detectar que a intencionalidade pode envolver conteúdos extravagantes.

A expressão “intencionalidade primária” marca a distinção entre o que é originariamente intencional e primariamente intencional (ver abaixo). Sustento que as nossas experiências comunicativas são ontologicamente dependentes das nossas experiências mentais e essas, por sua vez, são responsáveis pela apreensão ( mesmo aquelas distorcidas) cognitiva que temos do mundo sobre o qual falamos. E sustento que essas mesmas experiências nos colocam cognitivamente em relação com o mundo que existe independentemente de nós ou fora de nós, i.e., objetivamente nos dois sentidos.

Se os estados mentais são intencionais, admito, que haja capacidades mentais não-intencionais ou pré-intencionais, como as chama Searle (Searle, 1995: 196-221). Searle chama capacidades de estados, a partir de exemplos de como fazer coisas, de um know how (como saber abrir portas, como saber andar na direção de algo, que amanhã sucede o dia de hoje que o dia de ontem o precedeu, etc.… ). Tais capacidades, na verdade, são uma mistura de condicionamentos biológicos e sociais que interagem para tornar possível a intencionalidade, ainda segundo Searle. Considero tal ponto controverso, porque tais capacidades são adquiridas em vista de fazermos parte de um meio social e em parte são inatas e derivam de nossa constituição biológica. Sei jogar uma pedra no meu inimigo porque sei que tenho mãos e que a pedra pode ser lançada. Por isto, posso ter a intenção de lançar uma pedra sobre meu inimigo.

O problema aqui é definir esse know how como não-intencional ou delimitá-lo ao nível de (a) certas capacidades biológicas (não estados) e (b) sociais que possuímos. Sei caminhar, sei piscar os olhos, enfim, sei muitas coisas deste tipo porque simplesmente sou capaz de fazê-las sem que as tenha apreendido. Mas esse saber não é um saber que, é um saber como, porque não sei nada disso em virtude de me encontrar em tal ou qual estado mental. Faço tais coisas simplesmente porque as faço, em vista de determinantes contextuais biológicos e sociais (saber que hoje é diferente de amanhã) é um saber condicionado socialmente. Assim, a distinção apropriada seria entre estados intencionais e capacidades mentais, que seriam não- intencionais e estariam articuladas com os primeiros. Searle prefere falar em estados mentais pré-intencionais que constituem um background da intencionalidade. Penso que ele está errado em considerar capacidades de background como estados. No mais, concordo que a mente possui capacidades não intencionais.

III. Problemas ontológicos

Continuando: do compromisso metafísico com a atribuição de propriedades intencionais a representações, decorre que tais propriedades são inerentes à cognição e as atribuímos derivadamente, à comunicação. Temos aqui um lema:

Lema: Nossas línguas naturais não possuem semântica.

Ilustração do lema (com a matriz de seu enunciado, que é uma afirmação de Jerry Fodor):

Finalmente, o Inglês herda sua semântica dos conteúdos das crenças, desejos, intenções e de deste modo, ele é usado para expressá-los, como dizem Grice e seus seguidores. Ou, se você preferir (como eu), o Inglês não possui semântica. Aprender Inglês não é aprender uma teoria sobre o que as suas sentenças significam, é aprender como associar suas sentenças com os pensamentos correspondentes. Saber Inglês é saber, por exemplo, que a forma das palavras “existem gatos” é usada de modo padrão para expressar o pensamento que existem gatos. (…) e assim in(de)fini(d)tamente para muitos outros desses casos" (Fodor,1998a:9).

Tais propriedades lingüísticas são expressões de propriedades intencionais nas quais processamos a cognição. O Inglês é um meio expressivo, não um meio cognitivo, por isto, sua semântica e sintaxe são derivadas do meio representacional cognitivo que expressam.

Impõe-se imediatamente uma pergunta, nesse ponto. Derivadas de quê? De uma meio representacional universal, cognitivo, inato em sua arquitetura sintático-semântica, incrementado com a experiência (relações com o mundo) dos agentes que a possuem para pensar. Um meio representacional no qual os conteúdos dos estados intencionais são representações. Dessa forma, seus elementos constituintes são representações primárias (conceitos) e são tais conceitos que as representações das línguas naturais expressam.

A noção de intencionalidade não é opaca a um enfoque analítico, muito menos é impróprio tentar explicá-la em termos de noções acerca da natureza da mente, produzidas em nível hipotético-científico. Deixá-la intocada é torná-la mitificada. Trata-se justamente do oposto e posso alinhar alguns motivos para tanto: as questões concernentes á intencionalidade estão inseridas num nicho de problemas filosóficos contíguos, como a teoria do significado e seus vários temas (extensionalidade, intensionalidade, forma lógica, uso, entre outros), as teorias sobre a dinâmica cerebral (plasticidade, modularidade), bem como a metafísica (interacionismo, dualismo, monismo, anomalismo causal, teoria da identidade) e a epistemologia (como sabemos o que ocorre na nossa mente e o que ocorre na mente dos outros).

Processos mentais, sem deixarem de ser intencionais, são, hipoteticamente, processos com características passíveis de descrição por algum marco teórico aceito em pesquisas científicas. Sustento ainda que a idéia de que estados mentais não são físicos em tipo, mas que são físicos quando instanciados no cérebro. Não tenho dúvidas de que eles são processados neurofisiologicamente. Quando desejo, creio ou tenho alguma intenção, algo ocorre no meu cérebro e isto que ocorre realiza meus estados mentais. Ou seja, penso que podemos preservar a tese geral de Brentano, segundo a qual existem estados mentais e que estes são intencionais, sem desfigurá-la, com base na conjuntura explanatória exposta por Davidson e na idéia de causalidade formal (ver mais abaixo). E podemos fazer isto ao tentarmos encontrar modelos explanatórios que deslindem a intencionalidade e contribuam para a produção de conhecimento acerca de (a) como essa característica se configura; (b) como a mente funciona; (c) como a fenomenologia mental pode ser explicada sem que seja reduzida à física e (d) como a intencionalidade se articula com os demais problemas teóricos e filosóficos, alguns elencados acima.

Mas esse modo de pensar não é adotado por muitos filósofos. Essa seção trata de tentativas de expulsar a dimensão do mental do âmbito da ciência e, com ele, o âmbito intencional. Tais posições são defendidas por anti-intencionalistas. Eles defendem a tese de que a idéia de intencionalidade é tão somente um espectro metafísico produzido pela linguagem. E essa defesa está ligada à idéia de que nossas capacidades ou habilidades epistêmicas são decisivas no enfrentamento de problemas semânticos.

Dito de outra forma, estamos diante de um dilema, que Fodor apresenta com precisão (Fodor, 1998: 2–5): nos preocupamos ou com (a) o que é um conteúdo mental ou com (b) o que é possuir um conteúdo mental. Obviamente que os dois problemas são entrelaçados, porque se sei o que um conceito é, possuo o conceito. Mas, as questões, embora entrelaçadas, não são as mesmas do ponto de vista teórico, pois aqueles que dizem que possuir um conceito define o que um conceito é, dizem, com isso, que um conceito é justamente possuir certas habilidades que nos tornam aptos a usá-lo em situações comunicativas. Logo (1), para estes (cito Quine, Dennet, Dummet, Ryle, Strawson e Wittgenstein), um conceito não é um particular mental, mas uma certa capacidade de agir comunicativamente, em situações reativas (quando falamos ou entendemos o conceito). Logo (2), um conceito é o seu uso; uso são certas capacidades lingüísticas que, nessa perspectiva, são indispensáveis para que expliquemos como a comunicação é possível, porque as nossas capacidades lingüísticas são condicionadas por uma exigência: a de que qualquer capacidade constitutiva de uma linguagem é uma capacidade comportamental, disposicional ou manifesta. Isso fica claro na seguinte afirmação de Dummet

(…) O objetivo de uma teoria do significado é dar uma resposta a como uma linguagem funciona, em outras palavras, explicar o que, em geral, é efetuado por um proferimento de uma sentença na presença de um ouvinte que conhece a linguagem ao qual o proferimento pertence — um ato que é, mesmo no caso mais simples, de longe o mais complicado de todos o que fazemos. Portanto, a noção mesma de significado não necessita desempenhar qualquer papel importante numa teoria do significado; se ela o faz. Isto se deve apenas devido à conexão que se estabelece entre uma sentença e o seu emprego, ou seja, quando a proferimos e como nós reagimos verbalmente e de outra forma qualquer, ao seu proferimento (Dummet, 1995:21).

Penso, ao contrário, que o problema do significado é metafísico, porque o assunto central é a constituição do significado e não como nós o empregamos em processos comunicativos. Dumme, sustenta que a questão é exclusivamente epistêmica e a considera um problema de aquisição e emprego de conceitos, reduzindo, ao tema da aquisição e do emprego de um signo, o tema de sua constituição.

Essa escola filosófica tem a tendência de reduzir a semântica dos estados intencionais à semântica das linguagens naturais e depois, reduzir a semântica das linguagens naturais a um conjunto indefinido de disposições e habilidades para agir e solucionar problemas comunicativos (no caso, por meio de ações e reações verbais e não verbais). Dito de outra forma, eles simplesmente invertem o lema de Fodor.

Os adversários da idéia segundo a qual há certos estados inerentemente intencionais costumam dizer que só há intencionalidade sob uma determinada condição prévia, a saber: quando usamos certas coisas com a intenção de que sejam sobre algo. Tal concepção é ou ontologicamente materialista e semanticamente operacionalista ou ontologicamente fenomenista e semanticamente operacionalista (não confundir com o conceito epistemológico do qual o operacionalismo se despreende)2. Em essência, tanto o fenomenismo (um cão é um constructo de sensações — os famosos sense data- produzido em meu cérebro) como o materialismo (um cão é um objeto físico e só pode ser descrito porque suas propriedades são físicas) procuram demonstrar que fenômenos intencionais não são intrísecamente mentais.

O operacionalismo explica o que uma coisa é pelo modo como a conhecemos. Em semântica, esse reducionismo epistemológico só reconhece seus próprios critérios. Pedras são pedras e estados mentais são estados sensoriais ou neurológicos ou comportamentais. Em nenhum dos casos há sentido em se falar em estados mentais como configurando uma zona ontológica de eficácia causal em vista de sua estrutura e propriedades próprias.

O problema aqui não é de preconceito cientificista, nem de reducionismo vulgar. Trata-se de uma questão teórico-metodológica e envolve uma complexa perspectiva analítico-conceitual sobre o que é e como pode ser descrito o mundo. Para os operacionalistas, admitir que existem coisas mentais (idéias, representações, significados) seria o mesmo que admitir que há entidades que intervêm em estados privados aos quais não se pode ter acesso, a não ser introspectivamente. E a ciência não se ocupa de estados privados, porque não é possível verificar a sua existência. A razão tem uma sólida base witttgensteiniana, no argumento da linguagem privada (ALP) (Wittgenstein, 1987:.§§ 243–315) mais especificamente à parte epistêmica do ALP: estados privados não são passíveis de descrição, uma vez que descrições são entidades da linguagem que possuem condições de verdade objetivas. A linguagem é pública e o mundo que ela descreve e procura explicar é o mundo dos estados e processos que podem ser (a) causalmente conectados e (b) física ou comportamentalmente descritos. Por isso, sustentam os operacionalistas que o conceito de “intencionalidade” é ilusório do ponto de vista científico e sua explicação, de algum modo, deve ser reduzida a explicações comportamentais e/ou físicas.

Um operacionalista dirá que uma pedra, por exemplo, pode ser uma representação ou não. Se ela for usada (a noção de uso aqui é operacional e não lógica) por um agente para representar uma árvore, a pedra representa uma árvore, mas não se pode dizer que pedras sejam intrinsecamente sobre árvores. A noção de uso, combinada com a noção de um agente de uso, parece fazer todo o trabalho de exorcismo com respeito à tese de Brentano: a distinção entre o que é uma representação (como no caso da pedra que é sobre a árvore) ou um fenômeno mental dirigido e o que não é, não nos compele a entificar um domínio de coisas que, em si mesmas, ou seja, independentemente do uso que fazemos delas, sejam sobre outras coisas.

Na linha operacionalista, quando se diz que representações públicas ou certos fenômenos mentais são essencialmente sobre algo, se obscurece a natureza relacional-operacional das propriedades intencionais. E isto porque não seria correto explicar a relação intencional sem que mencionássemos o agente que faz uso de uma representação. Uma fotografia ou uma imagem mental poderiam, em certas circunstâncias, representar Nicole Kidman para alguém que sabe quem é Nicole Kidman, mas a relação entre Nicole Kidman e (sua) fotografia (ou sua imagem mental) não é evidência de que há uma propriedade intrínseca, inerente à fotografia ou à imagem mental, que as faz ser sobre Nicole Kidman. É a epistemologia e seu rebento semântico, a teoria do uso que decidem se uma fotografia representa alguém, pois a mesma imagem pode não representar Nicole Kidman numa circunstância distinta, inclusive para a mesma pessoa. Representações não são intencionais simpliciter.

Três aparentes vantagens do operacionalismo quando referido ao problema da intencionalidade, são claras: ele parece ser capaz de (a) explicar como qualquer coisa pode representar qualquer outra coisa (o perfume preferido de Nicole Kidman representa Nicole Kidman, uma pedra representa uma árvore, uma seqüência de sons pode representar alguma coisa para alguns e nada representar para outros indivíduos); (b) qualquer coisa pode representar qualquer outra coisa, numa situação comportamental e (c) sabemos, ou ao menos podemos saber quando tal representação representa esse objeto, com base em parâmetros públicos, intersubjetivos e evidenciais, ou seja, por meio da observação do comportamento objetivo, aberto das representações em uso.

Os operacionalistas acreditam que falar em estados intencionais nos compromete com a existência de coisas perniciosas do ponto de vista científico, como representações ou conteúdos mentais, e objetos abstratos, que fazem parte dessa classe de coisas, para eles, opacas teoricamente. Para Quine, por exemplo, o eliminiativismo é uma decorrência natural da nossa atitude científica com relação aos estados intencionais: nem o discurso sobre significados nem o discurso sobre crenças pode ser levado a sério quando nossos interesses são teóricos. A maneira intencional de falar (a maneira dos significados e das crenças) não possui estatuto científico, mesmo que configure um discurso essencial às nossas vidas práticas e (logo) façam parte do que ele chama de “nosso sistema conceitual de grau B” (Quine, 1960).

IV. Crenças e ambigüidade

Quine, ao que se sabe,3 foi quem pela primeira vez aplicou a teoria das descrições definidas de Russell ao caso das atribuições de atitudes proposicionais (estados intencionais), para acentuar sua opacidade semântica e, ao final, ontológica. Ele observou uma característica das expressões de tais estados: seus relatos são ambíguos: eles podem ser interpretados ou de modo nocional (de dicto) ou relacional (de re). Em outros termos, tais atribuições devem ser entendidas como sendo referidos a conceitos (ou, ainda, a conteúdos nocionais e pensamentos) ou às coisas mesmas. Na sentença “Ortcutt acredita que alguém é um espião” há duas interpretações possíveis: (a) de re e (b) de dicto; a diferença entre ambas está no escopo do quantificador existencial: em (a) “alguém” se aplica há um indivíduo específico e em (b) a nenhum indivíduo específico, mas a qualquer indivíduo.

1. interpretação de re : Alguém é um espião e Ortcutt acredita que o espião é x. 2. Interpretação de dicto: Ortcutt acredita que há espiões.

De tal modo, se Ortcutt acredita que alguém é um espião, Ortcut encontra-se num estado mental (uma crença) confuso. Acentuo: trata-se de um estado confuso e não de uma confusão mental provocada por estados mentais distintos. Trata-se de um e do mesmo estado mental que é ambíguo: ele aceita duas interpretações ao menos. No argumento de Quine, este é o ponto que interessa.

Se uma crença admite duas interpretações ao mínimo, não pode ser verdadeira para quem possui a crença, muito menos para quem a atribui a um terceiro; logo não pode ser uma crença, porque crenças, por definição, ou são verdadeiras ou são falsas e não posso crer em algo que admite (para mim ou para outra pessoa) diversas interpretações. A ambigüidade que Quine atribui à linguagem sobre as crenças transfere-se para as crenças enquanto tais e seria uma calamidade conceitual para um intencionalista admitir a ambigüidade dos estados mentais.

Para Quine, isto não é uma calamidade, porque ele não é intencionalista, ele não tem problemas com a ambigüidade lingüística, muito menos mental: para ele, todos os relatos sobre estados intencionais que possuem um valor de verdade são de dicto, porque devido ao escopo do quantificador que se segue ao verbo intencional, tais enunciados possuem um valor-verdade definido. Não há atribuição mentalista isenta de ambigüidade. Se há um espião apenas, o enunciado sobre a crença de Ortcutt é verdadeiro. Já as chamadas interpretações de re de atribuições de crenças, não podem ser verdadeiras porque possuem uma variável no escopo do quantificador (x) que se segue ao verbo intencional e dizem respeito a um indivíduo ou objeto não identificado.4

Entretanto, é preciso destacar que aceitar o que Quine diz sobre relatos intencionais não implica aceitar que crenças enquanto tais sejam ambíguas, como ele afirma; nem aceitar qualquer forma de operacionalismo ou eliminativismo mental, que ele defende. Não haveria dificuldades maiores em se aceitar o operacionalismo, se este não apresentasse um problema sério: seus atrativos teóricos são logicamente dependentes de duas noções interconectadas: a noção de aquisição de um conceito e a noção de uso, que fazem com que incorporaremos conceitualmente aquilo que, em medida razoável, sabemos sobre nossas habilidades para fazer certas coisas, inclusive expressar o que pretendemos, àquilo que, de um modo geral, caracteriza nossa arquitetura mental. Para esse fim, descrições operacionais mostram-se deficientes, porque, da sua adoção, resultam dificuldades conceituais acentuadas.

Vejamos alguns casos: é óbvio que aprendemos a usar linguagens públicas, sejam estritamente lingüísticas ou, de forma ampla, sistemas representacionais figurativos ou sonoros. Mas não podemos estender as noções de uso e aquisição conceitual, aplicáveis à linguagem, ao campo das intenções, desejos, medos e crenças. Darei dois motivos: (a) usar pressupõe, como dizia Wittgenstein, seguir uma regra, uma instrução. E seguir uma regra é uma atividade pública por definição. Wittgenstein tinha razão quando dizia que nenhum indivíduo pode seguir uma regra que só é válida para ele próprio. Mas os estados mentais que citei acima são instanciados, ocorrem e não são dependentes de qualquer tipo de regras. Temo o escuro; desejo, hoje, comer aquela maçã que deixei de comer ontem. Nesses casos, não estou usando tais estados, nem seguindo regras. E se não estou segundo regras nem “usando” estados mentais, a intencionalidade desses estados não deriva da noção de uso ou de seguir uma regra. Tem sentido dizer que uma crença representa tal situação, mas não tem sentido dizer “uso essa crença para crer (?!) em tal situação”, ou “creio em tal e tal coisa porque aprendi a usar essa crença deste modo e não de outro”.

Essa é a linha de argumentação anti-operacionalista de Fred Dretske, Richard Heck Jr. e Jerry Fodor.. É correto afirmar que elocuções, proferimentos, gestos ou a produção de figuras são atividades comunicativas e que estas expressam estados cognitivos, segundo certas regras que seguimos. Nesse sentido, é coerente afirmar que ações desse tipo significam aquilo que pensamos. Mas dizer o contrário é claramente um absurdo, no qual incorrem operacionalistas por razões anti-metafísisicas.

Se prestarmos atenção nesse ponto, há realmente assimetrias notáveis entre usar uma linguagem e estar envolvido com algum estado cognitivo. “Uma coisa é supor que somos capazes de possuir pensamentos que somos incapazes de expressar numa linguagem; mas conversamente, que seríamos capazes de expressar um conteúdo sem que fossemos também capazes de possuir pensamentos com o mesmo conteúdo é um absurdo” (Richard Heck Jr, 1997:18). Jerry Fodor acentua que somente pensamentos são suscetíveis do que ele chama de “avaliação semântica”:

Há, por exemplo, dois pensamentos que a expressão “todos amam alguém” pode ser usada para pensar, e, por assim dizer, o pensamento é solicitado a escolher entre eles; não é permitido ser indiferente a dois possíveis arranjos de escopos de quantificadores. Isto porque sans desambiguação, “todos amam alguém” não consegue especificar algo que é suscetível à avaliação semântica. E suscetibilidade à avaliação semântica é uma propriedade que pensamentos possuem essencialmente. Você não pode, para ser preciso, dizer em sua cabeça “todos amam alguém” e permanecer completamente descompromissado com respeito a qual dos quantificadores possui qual escopo. Isto apenas mostra que dizer coisas em sua cabeça é uma coisa e pensar em coisas é bem outra. (Fodor, 1998b:64-5).

Richard Heck Jr. constata que falar sobre algo sem que possamos pensar sobre o que falamos é conceitualmente insustentável. Fodor, numa linha distinta de raciocínio, vai mais longe. Ele defende que nossas crenças, desejos e outros estados intencionais são semanticamente unívocos, diferentemente das expressões lingüísticas. Mas, no exemplo que nos oferece, o problema é a distinção entre a ambigüidade lingüística (que é real) e uma alegada ambigüidade mental (que não existe). Tal problema, ao nível lingüístico, só pode ser esclarecido com a aplicação de uma teoria sobre a forma lógica da generalidade múltipla com relações. Quando dizemos “todos amam alguém” podemos estar dizendo ou que (a) há um indivíduo que todos amam — o quantificador existencial está no escopo do quantificador universal — ou que (b) para todos indivíduos, há pelo menos um indivíduo que é amado. O significado de (a) é diferente do significado de (b). E não temos como eliminar desta fórmula linüística a ambigüidade.

Fodor afirma que a expressão “todos amam alguém”, por sua forma, é inerentemente ambígua. E algo que é inerentemente ambíguo não pode ser pensado.

Chego à moral de que “todos amam alguém” não é um possível veículo do pensamento. O mais perto que você chega ao pensar em Inglês é pensar em alguma regimentação ambiguamente livre do Inglês (…). Talvez, por exemplo, aquilo que está em sua cabeça quando você pensa que “todos amam alguém”, na interpretação na qual “todos” possui um escopo amplo, ou seja, “todo x, algum y, x ama y”. Esta é o tipo certo de interpretação feita por qualquer pessoa, e se o for, não teríamos necessitado de Frege para nos ensinar sobre variáveis ligadas. Talvez a intuição lhe diga que você pense em seqüências de palavras, mas há uma boa razão para pensar que isto está errado.

A boa razão é que, para Fodor, há expressões da linguagem natural para a qual contamos com procedimentos lógicos para torná-las não ambíguas. Mas, em nível cognitivo, ao nível de uma linguagem mental, não pode haver ambigüidade. Para ele simplesmente não podemos pensar que “todos amam alguém”, embora possamos dizer isto em nossas cabeças, em Inglês, por exemplo. Tal expressão não expressa pensamento algum. Posto do modo não regimentado, ela pode ser interpretada de duas formas, dependendo, cada uma delas, do escopo ao qual se aplica o quantificador. Pode ser que haja uma interpretação regimentada correta para este caso, mas para chegar a ela precisamos de uma sofisticada teoria sobre a forma lógica das proposições quantificidas com relações. E quando pensamos, simplesmente pensamos de modo que os veículos do pensamento não admitem ambigüidade. Conclusão: não podemos pensar numa língua natural porque essas não prescindem de um teoria que as torne não-ambíguas. Não pensamos que “todos amam alguém” em uma linguagem mental porque a expressão solicita uma interpretação, que apenas uma teoria é capaz de fornecer. E, na linguagem mental, simplesmente pensamos, sem teoria alguma sobre generalização múltipla.

A tese de Fodor, ilustrada por seu exemplo, é simples: enquanto podemos dizer muitas coisas com uma e apenas uma expressão de uma linguagem natural e, neste plano, permanecermos na dimensão da ambigüidade (enquanto tais linguagens são polissêmicas ou inacessíveis á avaliação semântica) a linguagem da mente é inerentemente unissêmica. Assim, dizer em Português, na minha cabeça, que todos amam alguém não é o mesmo que pensar que todos amam alguém, porque “todos amam alguém” não é, como Fodor afirma, suscetível de avaliação semântica. Fodor apenas está afirmando que, quanto ao pensamento e sua relação com as linguagens naturais, como o Inglês e o Português, é obviamente possível expressar conteúdos mentais nas linguagens naturais; mas, por outro é obviamente impossível fazer dos veículos das linguagens naturais os veículos do pensamento.

Torna-se notório o problema de se operacionalizar a cognição, fazendo-a dependente da comunicação, como de fato o fazem todos que defendem a hipótese segundo a qual o pensamento é idêntico à fala subvocalizada (pensar é igual a falar em silêncio consigo mesmo, como disse Sócrates, em outro contexto e alguns filósofos atuais continuam dizendo, na falta de uma teoria sobre a cognição).

Assim, o problema se oferece de tal modo que alguma caracterização intencional rigorosa de estados mentais torna-se necessária para fundamentar uma teoria que seja capaz de preservar nossas intuições sobre a intencionalidade pré-lingüística, intríseca ou extrínseca. Eventos comunicativos são pragmáticos (na tradição dos estudos em linguagem, a pragmática leva em conta os aspectos do uso da linguagem, uso que está envolvido numa rede de circunstâncias interpessoais e condições de sociabilidade condicionantes dos atos comunicação, além da intencionalidade — contexto, teorias de background, indexicalidade, pressuposição, implicaturas e ênfase). Tais transações articulam-se e produzem-se ao nível do comportamento aberto em que operam certos padrões adquiridos que se conectam aos estados cognitivos5.

Não é necessário, por outro lado, estar envolvido em nenhuma situação comunicativa para que alguém possua desejos e crenças. Organismos com capacidade cognitiva e perceptiva podem possuir desejos, crenças, intenções, etc.… sem que, para isto, participem de nenhuma situação comunicacional. Tais estados são intrísecos. Antes de serem usadas socialmente, representações estão ativas naquilo que, segundo Dretske são “processos cognitivos socialmente isolados”:

[o ponto de vista] faz a existência deste pensamento intralingüístico e socialmente isolado não apenas possível, como ainda, se posso arriscar, uma conjectura empírica amplamente espalhada. Esse pensamento existe em certos animais e em crianças pré-lingüísticas. O ponto de vista do qual estou falando concebe o pensamento como sendo uma espécie de representação e a representação como um fenômeno natural que não mantém qualquer relação essencial com a linguagem (natural) e com o contexto social. Alguns pensamentos podem possuir um caráter social, outros podem depender da linguagem (natural), mas isto é porque eles são os pensamentos que são. O pensamento em si é socialmente neutro (Dretske, 1993:190).

Isto equivale a ser capaz de identificar o conteúdo (o pensamento, a proposição) que a representação pública expressa. Uma parte da história de ser capaz de conhecer o significado é, como veremos, é ser capaz de dominar um sistema estruturado sintaticamente. A outra parte: teorias representacionalistas devem produzir hipóteses acerca dos vínculos representações-mundo. Há alguns termos técnicos usados tradicionalmente (desde Frege e Russell) para designar os itens do mundo não-representacional ao qual se vinculam as representações. “referência”, para os itens designados pelos constituintes sintáticos das proposições que elas expressam — nomes de particulares (ou próprios) e nomes de propriedades — e “valores de verdade”, “fatos”, possíveis fatos, para os itens que correspondem às proposições. Por outro lado, o conteúdo das proposições (seu sentido, como dizia Frege) corresponde às suas condições de verdade, ou seja, àquilo que tornaria uma proposição verdadeira. Um exemplo: na sentença (símbolo) “Os titãs eram filhos de Urano”, as condições de vedade (conteúdo/proposição) são que os titãs são filhos de Urano, e o que torna a sentença verdadeira, é que os titãos sejam efetivamente filhos de Urano.No caso, temos uma representação pública (um símbolo sentencial), um conteúdo (a proposição que ele expressa) e um valor-verdade, no caso o falso, porque não há titãs nem Urano, ou nenhum fato que corresponde ao conteúdo que a sentença expressa.

Uma hipótese genérica sobre as representações tem implicações empíricas. E não há questão mais premente para uma hipótese deste tipo do que enfrentar os problemas que advêm da presença de representações em situações cognitivas ou comunicativas de fato. Consideremos as expressões: “Sou destro” elicitada por dois falantes ( F e G) do Português: na medida em que a expressão envolve um pronome pessoal, sua condição de verdade (o fato ou situação que ela enuncia) depende da referência de suas partes constituintes.

Como a referência de “sou” é distinta nas duas ocorrências da expressão, o significado das duas é distinto. Neste caso, dizemos que a condição de verdade de cada uma das ocorrências é distinta, embora tenhamos, ao nível lingüístico, a mesma representação envolvida. Dizemos que, nestes casos, o significado não é apenas intrínseco à representação: ele também é pragmaticamente dependente da circunstância indexical em que a representação é usada. Daí a necessidade de explorar os fatores pragmáticos que determinam o entendimento dos atos comunicativos. Isso fica evidente na caracterização proposta por Stalnaker para as representações lingüísticas:

A sintaxe estuda sentenças, a semântica estuda as proposições. A pragmática é o estudo dos atos lingüísticos e dos contextos nos quais são executados. Há dois problemas principais a serem resolvidos no âmbito da pragmática: primeiro, definir os tipos de atos de discurso e produtos de discurso; segundo, caracterizar os traços do contexto de discurso que ajudam a determinar a proposição que está sendo expressa por uma sentença dada. Especificar as regras que vinculam as sentenças de uma linguagem natural com as proposições que elas expressam é um problema afeto à semântica. Na maior parte dos casos, porém, tais regras não vincularão sentenças diretamente a proposições, mas vincularão sentenças a proposições relativamente a características do contexto no qual a sentença é usada. Tais características contextuais são parte do objeto da pragmática. (Stalnaker, 1978: 383).

Em defesa da semântica intencional primária, cognitiva, — e da sua decorrência mais óbvia, a de que o pensamento em si é socialmente neutro, pode-se resumidamente listar os seguintes pontos: (a) representações são cognitivamente ativas em nossa fase pré-verbal e em animais. Não é incorreto atribuir propriedades cognitivas a crianças em fase pré-verbal ou em animais; (b) necessariamente aprendemos a usar uma linguagem pública, mas não aprendemos a ter intenções, desejos, medos e crenças; (c) atos lingüísticos expressam estados cognitivos, mas estados cognitivos não expressam nada. Conteúdos proposicionais não possuem significado, eles são o significado (aquilo que é expresso) de representações públicas. Estados mentais, enquanto tais, não significam nada. O que o meu desejo de viajar a Paris expressa? Este desejo, como qualquer outro, é algo que expressamos por meio de representações públicas, mas ele não é a expressão de coisa alguma; ele simplesmente é o que é; (d) crenças, desejos e outros estados intencionais são cognitivamente unívocas, diferentemente das expressões lingüísticas que os expressam.

O significado da um ato expressivo decorre necessariamente de sua condição de ser uma expressão, um dicto em sentido amplo, uma externalização de um estado mental cujo traço característico, enquanto expressão comunicativa, é cumprir fins sociais; ou seja, que decorre necessariamente de sua condição de veículo de uma representação originária.

Explicar a intencionalidade da mente pela intencionalidade das linguagens públicas seria o mesmo que fazer os vagões de um trem puxarem sua locomotiva. Nesse caso, o que impede que isso ocorra (em circunstâncias normais, obviamente) são as leis da física. No caso da relação entre mentalidade e comunicação, são as leis da lógica e a ausência de preconceitos metafísicos.

Quando um veículo x carrega informação sobre y, o conteúdo de x é a informação que x carrega sobre y. Em transações comunicativas, temos a intenção de usar e usamos veículos para transmitir informações. Devo possuir uma certa destreza no uso de veículos (sinais, marcas, etc.…) físicos dos quais sou capaz de dispor de modo recorrente e segundo certas regras e que eu saiba, ou pelo menos suponha, que meu destinatário possui a mesma destreza de uso com relação a estes mesmos veículos. Na descrição de um ato de comunicação, estão envolvidos necessariamente os seguintes conceitos: intenção, veículo e informação.

Atos comunicativos são intencionais porque são vinculados a estados não comunicativos, como intenções (e crenças e desejos e outros eventos deste tipo). Intenções e crenças são tipos de estados ligados causalmente a atos de comunicação e a cursos de ação que elegemos como relevantes em vista de certos propósitos previamente definidos. Eles mantêm relações de antecedência-conseqüência com ações. Mesmo que não sejam causas no sentido físico de “causa”, há uma propriedade relacional que podemos chamar de causal-com-restrições, que vincula estes eventos não comunicativos a ações comunicativas, nas quais informações são dirigidas de um sujeito a outro.

Admitamos que a noção de causa natural corresponde a um esquema nomológico, segundo o qual, em condições ideais, o enunciado “x causa y é uma lei natural”, equivale por definição ao enunciado: “a ocorrência do evento x é uma condição necessária e suficiente para a ocorrência do evento y”. O problema é que no domínio da psicologia, entendida aqui como teoria sobre os vínculos entre estados mentais e o comportamento, não contamos com um modelo assintótico para enunciados desse tipo, em que eventos mentais sejam condições necessárias e suficientes para comportamentos e ações. Por outro lado, não podemos negar, com base na imensa evidência disponível, que os últimos estejam, de algum modo, conectados a eventos mentais, por relações de antecedência-conseqüência.

Alguns partem dessa anomalia para defender a tese de que o âmbito do mental é ou encapsulado numa ontologia especial, avessa à causalidade da natureza ou, no melhor dos casos, suspeito de existir na condição em que pensamos que existe quando usamos a nossa “linguagem de grau B”, ou seja, trata-se de uma mera projeção de nosso comportamento ou disposições comportamentais.

Há, no entanto, saídas racionais deste impasse, que, se inevitável, ou teria o efeito lógico de banir o âmbito do mental do horizonte científico ou de isolar, para este âmbito, uma ciência correspondente, para a qual a noção de causa seria dispensável. Em qualquer das alternativas, os resultados são inaceitáveis para fins teóricos.

Em “Mental Events”, Donald Davidson apresenta uma solução possível para o impasse. Para ele, a idéia da inapreensibilidade dos fenômenos mentais por leis físicas é elusiva com relação à própria noção de lei causal:

Causalidade e identidade são relações entre eventos individuais, não importando o modo pelo qual são descritos. Mas leis são lingüísticas; e assim eventos podem instanciar leis e, conseqüentemente, podem ser explicados ou preditos à luz de leis, apenas na medida em que são descritos de um ou de outro modo. O princípio da interação causal lida com eventos em extensão, sendo, portanto, cego para a dicotomia fisíco-mental. O princípio do anomalismo do mental concerne a eventos descritos como mentais, pois eventos são mentais apenas enquanto (eventos) descritos. O princípio do caráter nomológico da causalidade deve ser lido com cuidado: ele diz que quando eventos são relacionados como causa e efeito, eles possuem descrições que instanciam uma lei. Ele não diz que cada enunciado singular verdadeiro de causalidade instancia uma lei (Davidson, 1980:. 215).

Davidson afirma que descrições mentalistas não implicam que um evento mental x não possa ter curso no mundo governado pela causalidade física. Decorre daí que o princípio davidsoniano da interação causal anômala é receptivo à conexão causal de eventos mentais e eventos físicos. Ações, não esqueçamos, são eventos físicos e esta pode ser uma saída para quem deseja evitar o mero reducionismo materialista ou o dualismo cartesiano, dos quais decorrem indesejáveis dificuldades epistemológicas. Mas há outros, como a noção e causalidade formal, ceteris paribus, que veremos mais adiante.

Resumindo: uma crença x apresenta duas características importantes: (a) é um evento psicológico que possui conteúdo representativo e (b) funciona como causa para um curso de ação. É claro que a descrição desses estados intencionais, como de resto, de todos os demais eventos psicológicos intencionais, requer a referência aos seus conteúdos e ao seu papel causal. Não há intenções ou desejos intransitivos, mas intenções de fazer ou deixar de fazer tal ou tal coisa. Não há ações descoladas causalmente de fenômenos mentais.

Esses conteúdos não são objetos. São configurações mentais de conceitos ou de relações entre conceitos na mente de um organismo cognitivamente apto. Um objeto, em sentido amplo, é extralingüístico e é aquilo que faz uma configuração destas, uma crença, digamos, ou um enunciado declarativo, serem verdadeiros ou falsos. Objetos apresentam-se ou podem se apresentar à cognição sob certa condição ou relação a alguém que pensa.

Se segue à conclusão de tudo isto que, diferentemente dos objetos, conteúdos representativos não envolvem a ocorrência de objetos sob certas condições ou em relações ocorrentes com outros objetos. Um conteúdo representativo envolve ou a mera possibilidade de tais ocorrências entre objetos existentes ou a mera possibilidade lógica de que ocorram entre objetos que se sabe não existem — objetos de dicto apenas, a exemplo de entidades ou propriedades, como Pégaso, a paz mundial e o maior número natural.

Dizemos que uma proposição possui propriedades sintáticas que as habilitam a ser usadas em raciocínios e a transmitir informação sobre o mundo. Dizemos, por exemplo, que os Andes são maiores que os Pirineus e isto que dizemos (a proposição que esse enunciado veicula) tem uma determinada estrutura interna, que é expressa pela estrutura externa da sentença. Se não tivesse a estrutura lógica que possui, a sentença “os Andes são maiores que os Pirineus” não seria a expressão de uma proposição, mas uma seqüência sem sentido de sons e uma mera seqüência de sons não nos comunica nada e não serve para pensar em nada.

Desde Platão e Aristóteles, mas especialmente depois de Frege, no final do século XIX, que introduziu as noções lógicas contemporâneas, tornou-se imprescindível pensar em todos os sistemas representacionais como sendo estruturados internamente a partir de propriedades composicionais de seus itens constituintes. Aplicada abrangentemente, o chamado Princípio da Composicionalidade condiciona qualquer idéia de representação que possamos formular coerentemente.

Do ponto de vista cognitivo, tais propriedades são indispensáveis para a compreensão de como somos levados de certos pensamentos iniciais para outros pensamentos, em cadeias inferenciais que configuram processos progressivamente complexos. As propriedades formais das representações são causalmente responsáveis por tais processos que nos levam a (i) a fazer inferências segundo determinadas leis e (ii) a agir em conformidade com tais pensamentos. Assim, chamo um processo representacional de “progressivamente complexo” na medida em que podemos rastrear as propriedades combinatórias dos itens envolvidos na implementação das possíveis representações do mundo em nível cognitivo, representações que são causalmente responsáveis pelos cursos de ação no mundo. Para que tais processos possam ser teoricamente descritos, portanto, é necessário atribuir propriedades sintáticas às representações que deles fazem parte na condição de itens constituintes.

A responsabilidade causal, em jogo aqui como hipótese explanatória é uma função das propriedades que tais itens da cognição possuem para encadear-se segundo leis lógicas. Tal causalidade não é física, mas sintática ou formal e somente representações as possuem. A causalidade formal é codificada em instâncias de representações-tipo: “o imput representacional A causa o output representacional B” é uma instrução mecanizável do tipo exclusivamente sintático e pode ser executada por computadores digitais simples (essa afirmação não se esgota no âmbito doxástico, mas têm aplicações conhecidas desde Alan Turing e sua máquina). A sintaxe binária explica como tal procedimento é possível dadas as propriedades combinatórias de A e de B. Nesse sentido (amplamente aceito em computação aplicada e em teorias sobre a inteligência artificial) dizer que A causa B é dizer que A é formalmente a causa de B.

Conclusão: a composicionalidade é inerente ao conteúdo de estados mentais, porque todas as proposições devem ser computáveis. A teoria da representação deve distinguir entre o plano da estruturação do conteúdo representacional (a proposição) e o plano da estruturação das possíveis expressões do conteúdo representacional (lingüísticas e não-lingüísticas). Tal hipótese traça uma distinção decisiva: ao localizar o conceito de representação em dois níveis, a saber: (a) ao nível estruturado e sintático da proposição, no qual se operam processos de inferências, expressos em interações comunicativas, por distintos sistemas expressivos e (b) ao nível do conteúdo conceitual dos itens que constituem as proposições. O problema da determinação do conteúdo dos itens que constituem um sistema representacional de ordem derivada, comuncativo e público portanto, é a questão de se saber o que faz de uma representação pública o veículo de um conteúdo proposicional cognitivo.

Perguntas novas podem proliferar aqui. Mas é óbvio que propriedades estritamente cognitivas são distintas de propriedades comunicativas e que é preciso estabelecer as relações apropriadas entre as últimas e as primeiras. Esta é uma das tarefas, senão, a tarefa, da semântica em sentido amplo.

Há muitas questões conceitualmente complexas envolvidas nesse ponto crucial do problema e penso que a melhor teoria disponível é a teoria atomista e informacional do significado, entre outros, defendida por Dretske, Fodor e Lepore. Muitos confundem essa teoria com uma posição atomista acerca da psicologia e isso é um erro. O atomismo semântico e informacional não é incompatível com o holismo epistemológico ou psicológico. Tratei desse tema num texto exaustivo6 e aqui vou apenas lembrar de seu eixo central.

Em suma, os atomistas dizem o seguinte: o problema está ligado à busca da determinação e da invariância do componente semântico de uma expressão lingüística; a ocorrência de uma palavra x é a expressão de seu conteúdo e o conteúdo de x é uma representação mental: duas ocorrências da mesma palavra possuem o mesmo conteúdo, independentemente de serem usados por falantes que não compartilham da mesma teoria ou da mesma ideologia. Mesmo da incompatibilidade de dois sistemas de crenças (teorias e ideologias) não se conclui que ambos sejam incomensuráveis cognitivamente, ou seja, naquilo que concerne ao seu conteúdo semântico ou significado. Discordar sobre a adequação de teoria neste ou naquele caso pressupõe que os sujeitos da discordância possam convergir quanto ao conteúdo de suas divergências. E essa convergência, mesmo em meio a muitas divergências, pressupõe a invariância e a constância do conteúdo semântico das representações usadas pelos sujeitos discordantes. Concluímos daí que o conteúdo de uma crença não é condicionado pela eventual rede de crenças com as quais a primeira se relaciona. E concluímos mais: que há um distinção interna entre estados intencionais: uma distinção entre seu modo psicológico (crenças, desejos, etc.…) e seu conteúdo, que os integra e que os fazem dirigir-se a algo.

Os atomistas dizem que, ao nível da constituição do conteúdo representacional, ou seja, ao nível da elaboração de hipóteses nomológicas sobre a determinação do conteúdo representacional, devemos levar em conta que dois falantes da mesma língua ou de línguas e/ou idiomas intertradutíveis (como o Português e o Inca) por exemplo, significam o mesmo fenômeno com a palavra “luz”( em Português) e “tapale” (em Inca), mesmo que discordem acerca do que o fenômeno luz seja. Em outras palavras, mesmo que possuam diferentes crenças sobre o que a luz é. Para um curandeiro inca da América pré-colombiana, luz era uma manifestação da bondade do deus Tala, enquanto para um cientista contemporâneo, luz é radiação eletromagnética. No entanto, ambos sabem que “luz” e “tapale” significam luz. Há um núcleo semântico invariável que sustenta as distintas possíveis interpretações da palavra luz em situações diversas por falantes diversos. Tal núcleo garante que, apesar de discordarmos de tudo sobre a luz, sabemos o que a palavra “luz” significa na sua origem: um determinado fenômeno que causa em nós uma representação mental específica quando estamos diante dele.

É isto que distingue as posições dos atomistas das posições dos holistas com respeito à determinação e à variação do significado. Para os últimos, o conteúdo é indeterminado e variante porque é dependente de relações intrateóricas dos conceitos/conteúdos e ou palavras/elocuções. Ou seja, os holistas acreditam que o conteúdo é condicionado pelo modo psicológico do qual participa. Se minha crença x se relaciona com um conjunto indefindo de crenças, tal relação condiciona o conteúdo de minha crença. Um atomista diz o contrário. Que o sistema de crenças não intervêm na constituição do conteúdo de uma crença específica. Por essa razão, um atomista por ser um holista com relação à existêcia necesária de mais de uma crença e permanecer no atomismo de conteúdo.

Já os defensores da idéia segundo a qual a compreensão de unidades significativas é inteiramente dependente de rede de representações que integra, aceitam, explícita ou implicitamente, o Holismo Semântico (HS). Um holista dirá que símbolos significam em função de relações que mantêm com outros símbolos. Ou seja, que para um indivíduo A, “água1” significa água porque essa expressão é usada na inferência água mar. E para um indivíduo B, “água” significa água porque é usada na inferência água chuva e mar. O significado da palavra “água2” seria, obviamente indeterminado, por que dependeria do tipo de inferência na qual está envolvida. O significado de um signo qualquer seria oscilante, porque dependeria de oscilações inferenciais daqueles que usam signos.

Segundo os holistas, condicionamentos inferenciais, epistêmicos incidem sobre o significado e impedem a determinação do conteúdo do que dizemos. Essa tese é obviamente indesejável para quem defende uma idéia atomizada do conteúdo de um signo: não poderíamos saber se quando dizemos agora algo para um interlocutor, este entende o que queremos dizer ou se entende algo apenas parecido ou mesmo algo inteiramente diverso.

O indeterminismo seria uma conseqüência teoricamente indesejável do holismo, mesmo que muitas vezes e de fato desejemos dizer algo com algum signo e aquilo que queremos dizer seja entendido de modo diverso. E não me refiro a situações nas quais estão envolvidas ignorância de vocabulário ou o uso de jargões especializados. Refiro-me ao nosso dia-a-dia, a casos como aqueles em que é comum ouvirmos “mas o que você quis dizer mesmo com isso?”. Assim, o holismo parece ser uma resposta a esta não infreqüente discrepância entre dicção e compreensão.

Deste modo, para tornar a aceitação do holismo inevitável, seria necessário sustentar que o seguinte argumento, ou Argumento Holista (AH) é conceitualmente impositivo:

Argumento Holista

1. O conteúdo semântico de uma unidade significativa S (um símbolo, uma representação mental) é determinado pelas relações (inferenciais/ epistêmicas) de S com todas as unidades significativas que integram a linguagem L ou sistema de representações a qual S pertence.

2. Para determinar o significado de S, é necessário determinar s relações de S com todas as expressões da linguagem L da qual S é parte.

3. É impossível determinar as relações que S mantém com todas as demais expressões de L, porque L é infinita.

4. Não podemos determinar o significado de S.

5. O significado de S é indeterminado.

O HS só é desastroso para um atomista, porque um atomista acredita que o significado de um signo é fixo. O HS, além disso, não deve ser necessariamente entendido radicalmente, ou levado a ser interpretado por suas últimas conseqüências, essas sim desastrosas evidentemente, porque aí ninguém entenderia sequer a si próprio.

O que todo holista defende é um HS suave, no qual a indeterminação passaria a ser tolerável e não apresentaria os efeitos nocivos do HS radical. Podemos desonerar a carga da indeterminação e sustentar que a impossibilidade da determinação do conteúdo não impede que haja conteúdo, não se seguindo assim a estrita impossibilidade da compreensão do que pessoas dizem umas às outras ou de uma margem de constância do conteúdo daquilo que dizemos em momentos distintos. O que se seguiria seria a impossibilidade da semântica determinada, na qual signos possuem significados fixos.

Segundo essa versão suave do HS, a identidade de significado é aplicável como idéia aproximativa de conteúdo e de similaridade ou semelhança de significado. Quando profiro o enunciado p, você entenderia aproximadamente que p e não exatamente que p. O p que você entende é semelhante em significado ao meu proferimento de p. A semelhança é garantida por fatores lógicos, pragmáticos e epistemológicos, ou se preferir, pelo tipo de jogo de linguagem no qual p é proferido e compreendido. Enfim, é a semelhança do significado que sustenta a possibilidade da compreensão do que dizemos uns aos outros, além de garantir aquelas características de estados cognitivos e atos de comunicação que, no caso de uma leitura estrita do holismo, estariam interditadas. Aqui se defende uma concepção ou aproximativa ou probabilística ou contextualista ou interpretativista do significado.

Bem, até aqui parece que o HS é o conhecimento assentado sobre a semântica. Mas só parece: um holismo atenuado pela noção de proximidade ou semelhança de significado não é, por si só, impositivo. Primeiro porque cabe ao holista o ônus de provar o que torna duas emissões lingüísticas semelhantes em significado e, para começar, eles devem explicar o que é ser semelhante neste caso. Ser semelhante é uma propriedade que, qualquer coisa pode possuir quando relacionada a qualquer outra coisa, por estipulação. Meu gato e minha prima são semelhantes porque, por estipulação, meu gato e minha prima me fazem lembrar de minha infância.

Mas digamos que um holista possa construir um conceito mais firme de semelhança, para propósitos explanatórios, que vença o caráter meramente estipulativo e, por isso, indevido teoricamente. Talvez o conceito de semelhança seja fixado com base no conceito de uso: duas expressões possuem significado semelhante se são usadas de modo semelhante. Obviamente o problema se transfere para o deslinde teórico da idéia de uso e essa parece ser uma tarefa para qual filósofos da linguagem tem uma especial predileção wittgensteiniana, embora nada do que eles sustentam pode ser aceito como indisputado, como acima já vimos.

Deste modo, as inconsistências holistas mais salientes são as seguintes: (a) a verdade do holismo implica a sua própria falsidade e ninguém lúcido pode pretender defender uma teoria que se auto-refuta, como demonstra o Argumento Holista (AH); (b) o holismo é incapaz de explicar como alguém pode mudar de opinião acerca de algo que acredita ser verdadeiro, sem mudar de opinião acerca de tudo o que acredita ser verdadeiro; (c) o holismo impede que duas pessoas possuam pensamentos idênticos (façam referência às mesmas coisas, possuam desejos idênticos, etc.…), porque a identidade de um pensamento (de referência, de desejos) requer a identidade de todos e não há duas pessoas capazes de coincidir em tudo aquilo que pensam (a que fazem referência ou desejam).

Não é necessário tecer mais comentários sobre a nocividade de (a); por sua vez, (b) colide frontalmente com aquilo que a maior parte de nós faz habitualmente, a saber, conserva algumas opiniões sobre certas coisas, enquanto muda de opinião sobre certas outras coisas e (c) acarreta um solipsismo inviabiliza a comunicação e torna indecifrável tudo o que os outros pensam. Portanto, a questão é saber se (e porquê) o holismo semântico apresenta de fato tais características nada recomendáveis.

Um holista pode defender-se da acusação de insanidade. Stich, por exemplo, diz “que ninguém jamais endossou explicitamente essa versão radical de Holismo. (…) o anti-holismo de Fodor é dirigido contra um 'espantalho'” (Stich, 1991:.69). Em certa medida, Stich tem razão, se considerarmos que o holismo criticado por Fodor e Lepore (o espantalho), é uma construção radicalizada que raramente é defendida. Mas o ponto que o espantalho de Fodor e Lepore suscitam é que tal construção subjaz aos enfoques relativistas e cientificamente céticos em semântica. É este espantalho que pretende justificar a tese de que não há solução teórica localista (atomista e muito menos funcionalista) para a semântica. Os holistas podem não admitir explicitamente que a ausência de soluções localistas em teoria do significado implica a ausência de qualquer solução para a semântica. Mas isto não torna o HS menos destrutivo para uma agenda teórica voltada para a solução de problemas semânticos.

Mas daí não se segue que as propriedades semânticas sejam determinadas porque (a) localizadas em símbolos individuais e (b) o conteúdo de cada símbolo individual é independente do conteúdo de qualquer outro símbolo. A falsidade do holismo não acarreta, em princípio, a falsidade de uma semântica inferencial estrita, conhecida como semântica do papel funcional (SPI). O problema do funcionalismo semântico é outro: sua aceitação depende de que possamos defender ou uma idéia de analiticidade (inferência necessária) — que depois de Quine, caiu em desuso,- ou uma idéia de contexto ideal de inferência que, como veremos, é falsa.

Quine está certo quando afirma que de fato não há enunciados analíticos, como pensavam os positivistas lógicos, ou seja, enunciados que são verdadeiros a priori ou logicamente verdadeiros, porque basta saber qual é o significado dos seus termos para verificar sua verdade. Um exemplo: todas as mulheres são do sexo feminino. Para Quine, este enunciado é verdadeiro, mas não porque o significado de ser mulher é idêntico ao significado de ser do sexo feminino. Esse enunciado é verdadeiro em um contexto, mas não em todos os contextos. A razão é fácil de compreender: não conhecemos nenhuma mulher que não seja do sexo feminino, mas isto não faz que necessariamente mulheres sejam do sexo feminino. Pode haver um mundo no qual algumas mulheres sejam em tudo semelhantes às mulheres do nosso mundo e que pertençam, algumas ao sexo deminino (que não existe em nosso mundo) e outras ao sexo feminino. Há diferenças entre os sexos feminino e deminino (digamos que umas são férteis e outras inférteis por constituição genética). Esse mundo que não conhecemos é um mundo possível e nele há essa divisão entre tipos de mulheres. Logo, o enunciado todas as mulheres são do sexo feminino não é verdadeiro a priori, mas, como qualquer outro enunciado, é verdadeiro em virtude da experiência que temos, ou seja a posteriori.

Quine, nessa mesma linha defendia que a verificação de qualquer enunciado é teoricamente dependente e o exemplo dado acima ilustra essa afirmação. Assim não há inferências necessárias (se mulher então feminino). E se não há inferências necessárias, o significado de um termo é correlato das inferências contingentes nos quais ele é usado. Logo, não há persistência de significado e (logo) o significado não pode ser alvo de uma teoria sobre sua constituição, porque sempre dependemos de uma situação intrateórica ou intracontextual variável para captar o que um termo significa. Observe-se que Quine é um filósofo lúcido: ele não diz que termos não possuem significado. Ele diz que não podemos construir uma teoria sobre o significado.

Ao contrário do que possa parecer, o holismo de Quine não destrói a semântica inferencialista, nem a atomística, embora seja correta a sua crítica à noção de analiticidade epistêmica. E a noção-chave aqui, para compreender esse aspecto do problema, é o que queremos dizer com constituição do significado. Adeptos de uma semântica inferencial dizem que o que constitui o significado é a relação de um signo com um ou mais signos, mas não são obrigados a dizer que tais relações são necessárias. Se o fizessem, a crítica quineana tornaria tal concepção falsa. Adeptos da semântica atomística afirmam que o significado é constituído por uma relação extrínseca com um e apenas um não símbolo. E Quine, estritamente diz que não podemos falar em constituição do significado porque nos deparamos com o problema de relações de signos com todos os demais signos de uma linguagem ou de uma teoria.

Se falamos de constituição de significado e somos inferencialistas, a única saída é dizer que em um determinado contexto, se p então s constitui o significado de p e se p então q constitui o significado de p em outro contexto. E que numa situação ideal, o significado de p é constituído por uma relação inferencial constante, o que implica admitir que nessa situação ideal todos fazem as mesmas inferências. Mas o problema é definir qual é a situação ideal. Em semântica, dadas as condições nas quais inferências são feitas, não contamos com nenhum modelo ideal no qual sempre as mesmas inferências seriam feitas por todos. Por isso, não são inferências que constituem o significado, porque não há, na perspectiva oferecida pela SPI, um modelo ideal de inferência constitutiva do significado.

Resta-nos, assim, a constituição do significado em nível atomístico e, nesse nível podemos afirmar que o significado de um termo é constituído por uma e apenas uma relação nômico-causal com algo no mundo. E que um enunciado pode ser analítico a posteriori, por razões causais e não epistemológicas, quando a mesma coisa no mundo causa duas representações morfologicamente distintas. Por exemplo: solteiro e não casado são termos sinônimos, porque causados por pessoas que possuem a mesma propriedade. Trata-se de um enunciado analítico por razões causais e não epistemológicas.

Conclusão: a semântica holística é autodestrutiva, a semântica molecularista é falsa e o atomismo, até prova em contrário, é a única doutrina conhecida que pode nos acenar com uma teoria sobre a constituição do conteúdo intencional de nossos estados mentais e da identidade de significado de termos distintos. E o mais radical dos quineanos em matéria de propriedades inferenciais, epistêmicas ou doxásticas pode, sem contradizer-se, sustentar que as propriedades semânticas são atomísticas. Você pode dizer que se alguém possui uma crença, então necessariamente possui pelo menos alguma outra com a qual ela está relacionada inferencialmente. Mas não pode afirmar que os conteúdos de tais crenças, estejam necessariamente relacionados a outros conteúdos. Crenças podem ser holísticas, mas conteúdos são atomísticos.

Luís Milman

Notas

  1. A obra de Brentano pode ser vista como divisor de águas para a filosofia da psicologia. Seus textos foram publicados em 1874, sob o título de Psychologie von empirischen Stanpunkunt (Psicologia de um ponto de vista empírico). A tradução inglesa adotada pelos comentadores mais recentes é Psychology from an Empirical Standpoint, London, Routledge & Keagan Paul, 1973. A obra foi concebida para conter 6 (seis) volumes, mas apenas os dois primeiros foram publicados, sob os títulos (aqui referidos em inglês) de Psychology as a Science e Mental Phenomena in General. Alguns de seus comentadores contemporâneos, para referência de leitura são Roderick Chisolm, Realism and the Background to Phenomenology, Glencoe, The Free Press, 1960, L.L. McAlister (ed), The Philosophy of Brentano, London, Duckworth, 1976; David Carrr, em “Intentionalitiy”, in: E. Pivcecic (ed), Phenomenology and Philosophical Understanding, London, Hutchinson, 1975 e David Bell, Husserl, The Arguments of the Philosophers, Routledge, London and New York, 1990.
  2. Estritamente, o operacionalismo decorre de uma idéia epistemológica, o (instrumenalismo) e não semântica. No entanto, a semântica, pelo menos a semântica tal como muitos pensadores a praticam, desde Dewey, Peirce, Wittgenstein, os neopositivistas e Quine, certamente e toda a tradição behaviorista, é condicionada pela epistemologia e, sobretudo por uma modalidade ou outra de instrumenalismo, que, em linhas gerais, é a tese segundo o qual teorias servem para fazer predições e, a partir delas, para que possamos extrair enunciados singulares que possuem eficácia prática.
  3. Willard Quine, “Quantifiers and propositional attitudes”, in: Journal of Philosophy, 53, 1957.
  4. Há outros autores — o mais conhecido é Tyler Burge — que se dedicaram à distinção entre enunciados de re e de dicto, mas essa discussão ampliada não é relevante para meus propósitos nesse ensaio. Tais discussões envolvem indexicais, nomes próprios e a possibilidade de sermos cérebros numa cuba ou softwares programáveis, tema sobre o qual há um estudo específico nessa coletânea. Para uma visão do problema e suas conexões com as questões filosóficas que referi, recomendo o execelente estudo de Kenneth Taylor, “De re and de dicto: against the conventional wisdom”, in: Philosophical Studies, 16, Language and Mind, 2002.
  5. A título de menção, cito as teorias (i) das implicaturas e relevância conversacionais de Grice, Sperber Wilson e Gazdar, (ii) das pressuposições e dos mundos possíveis de Montague e Stalnaker, (iii) dos contextos, de Hungerland e (iv) da indexicalidade, de Bar-Hillel, inter alia.
  6. Cf. Luís Milman, A Natureza dos Símbolos. Explorações Semântico-filosóficas, Porto Alegre, Editora da Universidade, UFRGS, 1999.

Referências

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ISSN 1749-8457