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Crítica
15 de Setembro de 2005   Filosofia da mente

Discussão vívida

Matheus Martins Silva
O Mistério da Consciência
de John R. Searle
Tradução de André Yuji Pinheiro Uema e Vladimir Safatle
São Paulo: Paz e Terra, 1998, 235 pp.

Na atualidade o estudo da consciência ocupa uma posição cada vez mais significativa em diversas áreas como a filosofia, psicologia, ciências cognitivas e neurociência. É nessa linha de estudo que nos deparamos com este excelente livro de filosofia da mente, baseado em uma série de artigos de John Searle, um dos mais influentes e prestigiados filósofos contemporâneos, publicados no The New York Review of Books, no período entre 1995 e 1997. Nessa obra o autor de A Redescoberta da Mente (Ed. Martins Fontes) e Intencionalidade (Ed. Martins Fontes) analisa diversas abordagens do difícil problema da consciência e simultaneamente apresenta a sua própria solução para o problema em um interessante modo de se fazer filosofia: o ensaio-resenha.

Searle deixa bem claro que os livros resenhados não representam necessariamente os melhores sobre o tema, pois utilizou diversos critérios: alguns livros são excelentes, enquanto outros são sintomáticos como exemplos de equívocos cada vez mais freqüentes na filosofia da mente. Excetuando-se o primeiro e último capítulos, em que ele defende seus próprios pontos de vista, os restantes são dedicados aos outros autores abordados. Além de um estilo claro o filósofo demonstra um rigor lógico desconcertante, o que fica evidente nas suas discussões com Dennett e Chalmers.

O mapeamento das várias abordagens contemporâneas do problema da consciência é admiravelmente claro, o que torna o livro atrativo tanto para leitores já familiarizados quanto para leigos no assunto. O livro também é significativo por evidenciar como a filosofia pode ser diferente da mera citação de filósofos mortos, prática tão costumeira no Brasil e, acredito, também em Portugal.

No primeiro capítulo é apresentada a problemática central do livro: como os processos neurobiológicos causam nossos estados conscientes, que incluem desde uma dor de dentes até sentimentos de angústia? Searle entende que essa questão apresenta uma dificuldade invulgar por causa de alguns empecilhos. Além das dificuldades de ordem prática, como a enorme complexidade do cérebro, há muitas confusões teóricas que impedem a formulação correta das questões. Um obstáculo bastante peculiar ao nosso momento intelectual diz respeito a uma tendência contemporânea de encarar o cérebro como um computador (hardware) e a mente como um programa (software). As diversas teorias computacionais da mente associadas a esse modo de pensar encontram sua maior expressão na IA Forte (Inteligência Artificial Forte). A IA Forte afirma que qualquer sistema que implementasse o programa adequado poderia ter uma consciência. A consciência pode ser considerada pura e simplesmente um programa de computador, o que Searle nega. Outras teorias computacionais, como a IA Fraca (o computador pode nos ajudar a fazer simulações da mente) são aceitas por Searle.

A crítica que o autor faz do computacionismo é uma das partes mais interessantes do livro e constitui um de seus maiores méritos. Os argumentos do autor contra a IA Forte são avassaladores, sobretudo o seu já célebre Argumento do Quarto Chinês: a mente não pode ser simplesmente um programa de computador, pois os programas são totalmente sintáticos e a mente tem uma capacidade semântica, e como sabemos que a sintaxe tomada isoladamente é incapaz de produzir conteúdos semânticos, a mente não pode ser entendida como um programa de computador.

E ao contrário do que pensam muitos de seus críticos, Searle não quer afirmar com isto que os computadores nunca poderiam pensar, pois a IA Forte não se refere à capacidade de um hardware de produzir estados mentais, mas a tese bem diferente de que o programa executado por si só garantiria a vida mental. Outro argumento incontornável é o de que o cérebro, assim como a consciência, são orgânicos, mas a computação, de forma bem diferente, é um processo matemático abstrato que só possui sentido e existência relativamente a intérpretes conscientes. A IA Forte, que muitas vezes se orgulha de um pretenso materialismo, nem se aproxima disso, pois supõe que a sintaxe é uma propriedade física natural do mundo, o que é um equívoco.

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As resenhas de Searle são elucidativas e instigantes ao considerar cuidadosa e rigorosamente os argumentos apresentados pelos diversos autores. No capítulo dois, por exemplo, é analisada a proposta do cientista Francis Crick, que pretende resolver o problema da consciência a partir da percepção visual. A tese de Crick é que a sincronização de descargas neuronais relativas à percepção de um objeto, em torno de quarenta descargas por segundo (40 hertz), poderiam ser o correlato cerebral da consciência visual. Searle considera tal proposta interessante, pois parte da idéia de que para entendermos a consciência precisamos compreender detalhadamente o cérebro, apesar de insuficiente: mesmo que fosse comprovada tal correlação entre consciência e as descargas de 40 hertz isso ainda não nos ajudaria a entender a causa da consciência, não nos ajudaria a entender como funciona a consciência.

Outras propostas, como a de Roger Penrose, analisada no capítulo quatro, não são tão felizes. Penrose defende que uma teoria mecânica quântica do cérebro poderia tornar possível explicar a consciência de um modo que a física clássica não poderia, pois precisaríamos de algo não-computável, o que encontraríamos no nível subneuronal: os microtúbulos nos neurônios. Após demonstrar detalhadamente a insuficiência dos argumentos de Penrose, Searle enfatiza que apesar de fascinantes, suas propostas são utópicas.

Mas o maior atrativo do livro certamente diz respeito às polêmicas discussões com Daniel C. Dennett e David J. Chalmers, nos capítulos cinco e seis respectivamente. São apresentadas críticas de Searle aos livros desses autores e em apêndice suas respostas e réplicas de Searle. O livro de Dennett criticado por Searle é Conciousness Explained. A discussão é vívida, repleta de rigorosos argumentos e embates diretos.

Searle argumenta que diferentemente das demais abordagens do problema da consciência, a abordagem de Dennett não contribui para o problema em discussão, pois ele simplesmente nega a existência da consciência. Apesar de manter o vocabulário da consciência ele nega sua existência. De fato, o leitor pouco familiarizado com ideias tão contra intuitivas pode ficar assustado: a partir do antimentalismo extremo de Dennett não existe nenhuma diferença real entre nós e zumbis, já não há estados conscientes internos, ao contrário, postular entidades internas especiais seria apenas obscurantismo.

Dennett por sua vez faz diversas afirmações, como a de que pode sim negar o quale, o conteúdo dos estados subjetivos, “aquele sentimento” e que por outro lado, insistir nesse sentimento gera paradoxos por todo lado, como é o caso de Searle. Searle replica que os paradoxos apresentados por Dennett sobre neurobiologia não demonstram que não temos estados conscientes. O leitor talvez fique um pouco decepcionado com Dennett, que apesar de sua estatura intelectual, nos seus piores momentos demonstra um tom retórico e estridente que não corresponde à melhor tradição analítica.

A discussão com David Chalmers é igualmente polêmica e elucidativa, por apresentar os pontos fortes e fracos das propostas de ambos os autores. O livro criticado por Searle é The Conscious Mind, obra em que Chalmers defende o que ele chama de “funcionalismo não-redutivo”, posição em que combina o funcionalismo — a visão de que os estados mentais são estados físicos definidos como funcionais devido às suas relações causais — com o dualismo de propriedades — a visão de que os termos mental e físico designam duas propriedades diferentes de uma mesma substância, como um ser humano. A união entre dualismo de propriedades e funcionalismo se dá pelo princípio da coerência estrutural: a consciência é espelhada pela estrutura da organização funcional e vice-versa.

Mas o que faz o estado funcional provocar a consciência? A “informação”: qualquer “diferença física que faz uma diferença no mundo” é informação. Mas se as microondas contêm informação por provocar mudanças num alimento, então elas produzem consciência. Portanto a consciência está em toda parte! Essa posição se chama pampsiquismo.

O pampsiquismo parece tão contra-intuitivo quanto absurdo, mas Chalmers não vê nada de absurdo na idéia de termostatos conscientes, antes disso, somos nós que devemos explicar por que os termostatos não poderiam ser conscientes. Chalmers também diz que parece igualmente implausível que uma massa cinzenta como o cérebro gere consciência. Searle replica que somente os biologicamente desinformados negariam o fato bruto da natureza de que a consciência seria causada pelo cérebro. No fim das contas, a posição de Chalmers aparenta ser mais uma redução ao absurdo da combinação de funcionalismo e dualismo de propriedades do que uma teoria razoável. Cabe ao leitor tirar as suas próprias conclusões.

No último capítulo, Searle aponta a abordagem correta que tornaria o “mistério” da consciência no problema da consciência. Para o autor, o maior obstáculo em se obter uma explicação satisfatória da consciência se deve a um conjunto de categorias cartesianas obsoletas e pressuposições errôneas que herdamos de nossa tradição filosófica e religiosa. Partimos da idéia equivocada de que o vocabulário que contém termos como “mental” e “físico” de maneira distinta é razoável por si mesmo e tentamos entender a consciência nesses termos.

A proposta de Searle é rejeitar esse vocabulário (o que inclui não só o dualismo como também o materialismo reducionista) que apesar de intrinsecamente problemático é ainda muito comum nas ciências cognitivas, e nos lembrarmos de que a consciência é tanto um fenômeno físico como um estado qualitativo e subjetivo. A consciência é um fenômeno natural e biológico causado pelo cérebro, mas que diferentemente de outros fenômenos físicos possui um estatuto ou modo de existência de primeira pessoa. Uma montanha tem um modo objetivo de existência, uma ontologia de terceira pessoa, porque seu modo de existência não precisa ser experienciado por nenhum sujeito enquanto uma dor de dentes tem um modo subjetivo de existência, uma ontologia de primeira pessoa, e só existe enquanto experienciada por um sujeito.

Desta forma Searle transforma o “enigma” da consciência no problema da consciência e apresenta um sólido e naturalizado programa de pesquisa para futuras investigações do problema mente-corpo. A escrita de Searle é clara e elegante e o livro é certeza de leitura prazerosa, capaz de prender a atenção do leitor do início ao fim. Leitura obrigatória para quem aprecia boa filosofia.

Matheus Martins Silva

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ISSN 1749-8457