A confusão entre palavras e coisas pode parecer demasiado básica para constituir um obstáculo sério, mas pensar isso seria um erro. Ao longo da história da filosofia, tal confusão tem feito uma carreira infame. E continua a fazer. A ideia de que a designação rígida implica o essencialismo resulta precisamente da incompreensão de uma das conquistas mais importantes da filosofia da segunda metade do século XX — a noção de designação rígida, que tem precisamente o efeito de nos permitir distinguir claramente as palavras das coisas. Estas linhas pretendem esclarecer esta confusão.
Filósofos como Kripke e Putnam introduziram a ideia de designação rígida. Há mais de um tipo de designação rígida, mas eu irei ignorar pormenores técnicos desse género, concentrando-me na noção mais habitual de designação rígida.
Antes de mais, o que é um designador? É um qualquer termo da linguagem que designe um objecto. Há dois tipos de designadores, entre outros: os nomes próprios e as descrições definidas. Um nome próprio é algo como “Lisboa” ou “Sócrates”; uma descrição definida é algo como “A capital de Portugal” ou “O professor de Platão”. Alguns filósofos defendem que os nomes próprios são designadores rígidos, ao passo que as descrições definidas nem sempre são designadores rígidos. Define-se um designador como rígido se, e só se, designa o mesmo objecto em todos os mundos possíveis em que esse objecto existe. Assim, o nome “Platão” é rígido se, e só se, designa Platão em todos os mundos possíveis em que Platão existe.
A expressão “mundos possíveis” não tem de ser entendida literalmente, como se estivéssemos a falar de universos paralelos ou de outros planetas. Estamos apenas a falar de possibilidades. A terminologia dos mundos possíveis torna o nosso discurso mais claro, mas não temos de aceitar qualquer ontologia especial para os mundos possíveis (apesar de podermos fazê-lo). Assim, dizer que Sócrates poderia ter sido egípcio é equivalente a dizer que há um mundo possível no qual Sócrates é egípcio; e dizer que Sócrates não poderia ter sido um chinelo de quarto é dizer que não há qualquer mundo possível no qual Sócrates seja um chinelo de quarto.
Que muitas descrições definidas não são rígidas é óbvio. Por exemplo, a descrição definida “O presidente da República Portuguesa” não é rígida porque designa seja quem for que ocupe este cargo — no mundo actual (o mundo efectivo ou em acto, isto é, tal como as coisas são) designa Jorge Sampaio. Mas se Cavaco tivesse ganho as últimas eleições presidenciais, a mesmíssima descrição definida designaria Cavaco Silva e não Jorge Sampaio. Assim, o designador “O presidente da República Portuguesa” não é rígido porque designa Jorge Sampaio no mundo actual, mas designa Cavaco Silva em alguns mundos possíveis.
Note-se que algumas descrições definidas são rígidas; por exemplo, “O número par primo” designa rigidamente o número 2. O contraste entre as descrições definidas e os nomes próprios é que estes últimos parecem sempre rígidos — se o são ou não é uma discussão da filosofia da linguagem. O objectivo destas linhas não é defender que os nomes próprios são designadores rígidos, mas antes mostrar que, mesmo que o sejam, isso não implica o essencialismo. E por que razão parecem os nomes próprios sempre rígidos? Porque “Jorge Sampaio” designa sempre Jorge Sampaio em todos os mundos possíveis, quer ele tenha ganho ou não as eleições, e quer ele seja português ou não e quer ele tenha optado ou não pela vida política. O nome “Jorge Sampaio” é por nós usado como uma etiqueta que aponta invariavelmente para a mesma coisa, seja ela o que for.
A tese da designação rígida dos nomes não se deve confundir com a tese obviamente falsa de que Jorge Sampaio não poderia ter tido outro nome. Claro que Jorge Sampaio poderia ter-se chamado “Eusébio Sampaio” ou “Jacinto Perdição” — bastava que os seus pais lhe tivessem dado esse nome. Mas repare-se que para fazer sentido o que acabámos de dizer temos nós de estar a usar o nome “Jorge Sampaio” rigidamente: caso contrário não estaríamos a dizer que esta pessoa, Jorge Sampaio, poderia ter tido outro nome; estaríamos antes a dizer que outra pessoa poderia ter-se chamado “Eusébio Sampaio”. Dizer que “Jorge Sampaio” é um designador rígido é dizer que quando usamos esse nome estamos sempre a falar da mesma pessoa — a pessoa que no mundo actual é o presidente da República Portuguesa. Mas é claro que essa pessoa poderia ter tido nomes diferentes.
O essencialismo é a tese de que os objectos têm propriedades essenciais não-triviais. Que os objectos têm propriedades essenciais é evidente; a questão é saber se têm propriedades essenciais não-triviais. Por “propriedades essenciais triviais” entende-se as propriedades que um dado objecto tem de ter por razões exclusivamente lógicas. Por exemplo, Sócrates tem a propriedade essencial de ser Sócrates, e esta é uma ideia que dificilmente alguém quererá disputar, excepto por não perceber bem o que se está a afirmar. Outra coisa muito diferente é saber se Sócrates tem a propriedade essencial de ser humano, que é outra maneira de perguntar se Sócrates poderia ter sido outra coisa que não humano — um cão, ou um sapato, ou um planeta. Por exemplo, as doutrinas religiosas da reencarnação parecem comprometidas com a ideia de que as pessoas podem reencarnar sob diversas formas, o que é outra forma de dizer que Sócrates poderia ter sido um cão, ou um mosquito. O essencialismo é, pois, a ideia de que há certas propriedades não-triviais que os objectos têm e não poderiam deixar de ter.
Quem pensa que a designação rígida implica o essencialismo está a confundir palavras com coisas. A melhor maneira de se ver que a tese da designação rígida não implica o essencialismo é começar por admitir, a título de hipótese, a tese da designação rígida, e ver se depois somos forçados a admitir o essencialismo. E a resposta simples é que não somos. Vejamos porquê.
Admitamos que “Sócrates” designa rigidamente Sócrates. Isto significa que designa Sócrates em todos os mundos possíveis. Significa isto que estamos obrigados a defender que Sócrates não poderia ter sido um rato ou um automóvel? Não. Pois se tivermos razões para pensar que Sócrates poderia ter sido um rato ou um automóvel, ou seja, se pensarmos que em alguns mundos possíveis Sócrates é um rato e noutros mundos possíveis Sócrates é um automóvel, então tudo o que isto significa é que o nome “Sócrates”, por ser rígido, designa um rato em alguns mundos possíveis e um automóvel noutros mundos possíveis. Ergo: a designação rígida não implica o essencialismo.
Poderá aceitar-se que a designação rígida não implica o essencialismo, mas insistir que, de algum modo, a designação rígida reforça ou sustenta o essencialismo. Mas isto é falso. Na verdade, sem a designação rígida somos incapazes não apenas de exprimir ideias essencialistas, como também de exprimir ideias não-essencialistas. Vejamos porquê.
Tome-se um designador não-rígido, como “O presidente da República Portuguesa em 2004”. Tal como as coisas são, esta descrição designa Jorge Sampaio. Mas se nenhum designador fosse rígido seria impossível dizer que Jorge Sampaio não tem essencialmente a propriedade de ser humano, pois teríamos de dizer algo como “O presidente da República Portuguesa em 2004 pode não ser humano”. Ora, tudo o que isto quer dizer é que há mundos possíveis nos quais há um ser que obedece à descrição “O presidente da República Portuguesa em 2004” e esse ser não é humano — é, por exemplo, um extraterrestre (talvez porque fomos invadidos e conquistados). Mas o problema é que não estamos a falar de Jorge Sampaio; estamos a falar de outro ser que é presidente do país. Falhámos em exprimir a ideia de que Jorge Sampaio não é essencialmente humano, pois tudo o que dissemos foi que outro ser, que não Jorge Sampaio, ocupa num certo mundo possível o cargo presidencial que Sampaio ocupa no mundo actual. Mas sobre o próprio Jorge Sampaio fizémos silêncio.
Temos assim de concluir que a designação rígida não só não implica o essencialismo, como não é uma doutrina “amiga” do essencialismo. Na verdade, é uma doutrina tão “amiga” do essencialismo como do não-essencialismo, pois é a condição de possibilidade para exprimirmos ambas as teorias. Sem a designação rígida não podemos dizer que Jorge Sampaio não é essencialmente humano, com o sentido que realmente queremos, pois se “Jorge Sampaio” não fosse um designador rígido, dizer que Jorge Sampaio não é essencialmente humano é dizer a trivialidade de que noutros mundos possíveis há outros seres que têm propriedades diferentes das propriedades que Jorge Sampaio tem no mundo actual — mas isto não é a doutrina anti-essencialista que se tem em mente.
De onde vem então a confusão? De um longo hábito idealista e antropocêntrico de confundir palavras com coisas, como se o mundo se conformasse às nossas ideias e teorias. Uma pessoa pode sentir um certo conforto anti-essencialista dizendo que “Jorge Sampaio” não é um designador rígido, pensando que isso nega o essencialismo; mas, na verdade, essa pessoa está a confundir palavras com coisas, pois não será capaz de exprimir a ideia de que este mesmo ser que no mundo actual é um ser humano não é um ser humano noutro mundo possível. Confunde palavras com coisas porque não consegue exprimir a ideia correcta (a ideia metafísica de que o ser que no mundo actual é um ser humano é noutros mundos possíveis não-humano) mas pensa que sim porque exprime a ideia linguística de que o ser que no mundo actual é referido pelo nome “Jorge Sampaio” não é o mesmo ser que noutro mundo possível é referido com o mesmo nome.
Assim, o grande valor da ideia de designação rígida não é apoiar o essencialismo, mas sim distinguir as palavras das coisas e permitir clarificar o nosso pensamento. Contudo, é um facto que quem aceita a designação rígida em geral aceita o essencialismo — mas isto é só porque as doutrinas não-essencialistas são sempre doutrinas baseadas na confusão entre palavras e coisas, confusão que a designação rígida dissipa. Ser anti-essencialista não é defender que há um mundo possível com um ser que ocupa os cargos de Jorge Sampaio, é parecido com ele, etc., mas não é humano; ser anti-essencialista é defender que este mesmo ser, que designamos por “Jorge Sampaio” e que é humano no mundo actual, é um sapato em certos mundos possíveis. O que se passa é que, dito com esta clareza, as nossas intuições metafísicas vêm a tona. Todos temos estas intuições metafísicas: achamos que Jorge Sampaio não poderia ter sido um chapéu. É claro que é possível recusar tais intuições; mas essa recusa não pode passar por recusar a designação rígida — pelo contrário, o anti-essencialista tem de aceitar a designação rígida para poder garantir que ao dizer “Jorge Sampaio poderia ter sido um elefante” está a falar do mesmo ser que no mundo actual é humano, e não de outro ser qualquer noutro mundo possível qualquer.
O artigo “The Meaning of “Meaning””, de Hilary Putnam, contribui talvez para esta confusão relativamente à designação rígida porque nesse artigo o essencialismo das substâncias está suposto mas nunca é defendido. O artigo é sobre a designação rígida de termos para categorias naturais, como “água”, que ele pensa que funcionam como nomes próprios, isto é, rigidamente. E Putnam precisa do essencialismo como pano de fundo para expor a sua ideia — porque sem essencialismo é mais difícil explicar a designação rígida de termos para categorias naturais. Contudo, o essencialismo não é realmente necessário para defender a rigidez de termos como “água”, nos moldes em que o faz Putnam, e é fácil ver como se podem mudar os seus argumentos para o conseguir.
O trabalho de Kripke (“Identity and Necessity” e Naming and Necessity) contribui menos para a confusão, mas também não ajuda muito, pois Kripke defende as duas coisas: a designação rígida e o essencialismo. Por isso, fica-se com a sensação de que as duas teses são interdependentes. Espero que a sua verdadeira interdependência tenha ficado clara: a designação rígida é necessária para exprimir o essencialismo e o anti-essencialismo, mas não implica nenhuma das duas ideias.
Desidério Murcho