O objectivo deste pequeno artigo é mostrar como a experiência mental de Frankfurt se insere no debate imemorial sobre o livre-arbítrio entre o compatibilista e o incompatibilista.
É natural pensar-se que uma pessoa só pode ser responsável por uma dada acção se essa mesma pessoa pudesse ter agido de outra forma. Há algo de estranho em condenar o comportamento de alguém que, por exemplo, comeu o bolo de anos de uma criança às escondidas, se essa pessoa não pudesse ter agido de outra forma. Se essa pessoa não tinha modo de evitar comer o bolo antes de este ir para mesa, dizer que procedeu de forma errada quando fez o que fez perde muito da sua força. O que nos parece mal, o que nos leva a olhar para essa pessoa com menos consideração, é o facto de acharmos que poderia ter tido mais em conta os interesses da criança, reflectido em como estes são mais importantes que a sua gulodice e, em vez de comer o bolo de anos, fechava a porta do frigorífico e comia outro bolo qualquer. É porque achamos que poderia perfeitamente ter feito algo assim que ficamos indignados com o comportamento que efectivamente teve.
Esta ideia, que quero explorar, pode ser assim enunciada:
Princípio de Possibilidades Alternativas (PPA): para que uma pessoa seja moralmente responsável por executar uma acção A é necessário que ela pudesse ter agido de outro modo.
Observamos neste princípio de possibilidades alternativas uma condição de liberdade para a avaliação da responsabilidade moral. O que de resto é natural, pois, intuitivamente, se a um indivíduo não lhe está aberto um dado caminho de acção, por que lhe é vedado pelo poder do estado, porque forças físicas maiores o impedem ou porque é vítima de certas compulsões psíquicas que o forçam, então não parece muito razoável dizer que agiu erradamente quando achamos que esse seria o caminho moral. O modelo de liberdade subjacente ao princípio de possibilidades alternativas é aquele no qual o agente tem ao seu dispor um leque de possibilidades de acção e tem controlo sobre qual delas faz sua.
Até 1969, altura em que Harry Frankfurt publica o artigo “Alternate Possibilities and Moral Responsability”, a discussão entre o compatibilista e o incompatibilista centra-se, de forma decisiva, na questão de saber exactamente como compreender a possibilidade de fazer de outro modo, isto é, como entender esta noção de controlo. O compatibilista defende que a liberdade e a responsabilidade moral é compatível com o determinismo, enquanto o incompatibilista defende que estes conceitos essenciais para uma vida humana se perdem num mundo determinista.
O problema para o incompatibilista é que o determinismo apresenta um mundo no qual nos é apresentado apenas um caminho pela frente. Um mundo é determinista se, e só se, o estado do mundo num dado momento particular da história desse mundo fixa o estado do mundo em todos os momentos subsequentes, de acordo com as leis da natureza. Posto isto, só há um estado possível das coisas, em cada instante. Um pouco como um comboio que percorre uma linha na qual nunca há bifurcações.
O incompatibilista questiona então como podemos ser responsáveis pelo que fazemos se não temos qualquer controlo sobre o que fazemos. Afinal, uma vez estando numa dada linha da vida, o que acontece não poderia deixar de acontecer, pois o determinismo significa que em nenhuma altura nos deparamos, na linha onde a nossa vida se desenrola, com uma bifurcação. E portanto perdemos a liberdade subjacente ao princípio de possibilidades alternativas, pois não temos controlo sobre as várias possibilidades de acção, visto que simplesmente não há mais de um caminho a seguir. Assim, parece plausível pensar, não há qualquer controlo a exercer. Portanto, para o incompatibilista não há responsabilidade moral num mundo determinado, visto que é pelo exercício deste controle que somos responsáveis.
O compatibilista, por sua vez, acusa o incompatibilista de analisar erradamente, e portanto ter uma concepção desadequada, do que é ter controlo sobre os nossos actos. Defende que a possibilidade de agir de outro modo deve ser analisada condicionalmente, deste modo: Se tivéssemos desejado fazer algo diferente do que fizemos, então teríamos feito algo diferente. O que importa para termos controlo sobre a nossa vida é que possamos fazer o que queremos fazer. O compatibilista, tradicionalmente, defende a noção de controlo em discussão, mas dá-lhe uma interpretação própria. Na medida em que os desejos e a vontade do agente fossem diferentes do que são, o agente teria agido de modo diferente e portanto teria seguido caminhos de vida diferentes. Assim, não só temos várias possibilidades de acção, como estas parecem estar sobre o controlo do agente, visto que dependem da vontade do agente.
E porque podemos fazer de outro modo, mesmo num mundo determinista, o compatibilista defende que somos por vezes responsáveis pelo que fazemos.
Esta análise condicional de possibilidades alternativas tem sido muito influente, mas não convenceu até hoje o incompatibilista. Este considera, como o autor destas linhas, que o compatibilista não vai ao fundo da questão, e tenta através de um artifício técnico ultrapassar uma dificuldade de fundo na sua posição. A intuição do incompatibilista é que não faz sentido dizer que poderíamos desejar outra coisa visto que isso não é compatível com uma linha da vida sem bifurcações. Se desejamos A, então não faz sentido dizer que poderíamos desejar B, dado que na linha da vida onde estamos, somos a pessoa que deseja A e não B. Isto é, dada a história pessoal até aqui, não é possível ter outros desejos que não os que temos, se o determinismo for verdadeiro. Dada a linha da vida onde estamos, num mundo determinista, não faz sentido dizer que poderíamos fazer de outro modo, pois tal significa que teríamos de ter desejos diferentes, e isso significa que teríamos de estar noutra linha da vida, como se pudéssemos saltar de uma linha de comboio sem bifurcações para outra, para que possamos chegar a um destino diferente, mas que partiu de uma estação que não a nossa.
Nesta discussão, note-se, tanto o incompatibilista como o compatibilista aceitam que é necessário para a responsabilidade moral a existência de possibilidades alternativas. Onde discordam é na compreensão desta possibilidade.
Aqui entra Harry Frankfurt. Este importante filósofo contemporâneo acha que podemos simplesmente deixar toda esta discussão de lado, pois pensa que podemos separar a questão da responsabilidade moral da questão das possibilidades alternativas. Para este filosofo, é possível ser moralmente responsável por uma dada acção mesmo que não tivesse sido possível agir de outra forma. Portanto, nega o princípio de possibilidades alternativas. O argumento de Frankfurt contra o princípio de possibilidades alternativas baseia-se na ideia de que há certas circunstâncias, C, na qual uma pessoa executa uma dada acção tal que, apesar de C tornar impossível que ela evite executar essa acção, não levam de modo algum a que a execute. Como C não tem qualquer papel no que o agente faz, ele teria agido exactamente da mesma forma caso C não se verificasse. Assim, o facto de o agente não poder agir de outra forma em nada é relevante para o que ele de facto fez, e portanto não pode desculpá-lo pelo que fez. Assim, o agente é responsável e, no entanto, não poderia fazer de outro modo.
O que precisamos então é de uma experiência mental, na qual:
A) Existe uma circunstância C tal que o agente executa A e não poderia deixar de executar A; B) C em nada contribui para que o agente faça A.
Passo então à descrição de tal experiência mental.
Imaginemos que Black, membro de uma poderosa associação criminosa, contrata Jones para matar o Presidente. Jones foi eficaz no passado e continua a ser o melhor atirador que se conhece. Contudo, Black tem algumas razões para desconfiar da dedicação e lealdade de Jones neste momento — constou que Jones quer abandonar a profissão. Mas Jones é tão valioso que Black quer ter a certeza. Assim, sem que este saiba, manda os seus cientistas instalar no cérebro de Jones um dispositivo que vigie os estados cerebrais deste — um neuroscópio. Caso o neuroscópio dê alguma indicação de que Jones não vai matar o presidente, coisa que o neuroscópio consegue fazer com suprema precisão, este põe em acção um mecanismo que faz Jones decidir matar o presidente. Contudo Black não quer somente certificar-se que Jones mata o presidente; quer saber se Jones vai continuar ou não a trabalhar com ele no futuro. E o melhor indicador disso é Jones decidir por si matar o presidente. Por isso, o dispositivo está de tal forma montado que se Jones não mostrar qualquer inclinação para não matar o presidente, o dispositivo não intervém, e tudo acontece como aconteceria se o neuroscópio lá não estivesse.
Suponhamos agora que Jones decide, por si só, baseado nas suas próprias razões, matar o presidente e de facto realiza este acto. Neste caso, o dispositivo não entra em acção e tudo acontece como aconteceria se Black não tivesse pedido aos seus cientistas para monitorizarem Jones.
A moral da história, ao que parece, é que Jones agiu como agiria caso o dispositivo não tivesse sido implantado, e portanto caso pudesse ter agido de outro modo. E se é responsável num caso, então também seria no outro, visto que a diferença entre os dois casos não surge — apesar de, tal como o caso ocorreu, Jones não poderia ter decidido nem poderia ter agido de modo diferente.
Black e o seu neuroscópio oferecem uma circunstância na qual o agente age de certa forma, não poderia deixar de agir dessa forma, e no entanto as circunstâncias em nada contribuem para o modo como agente agiu. Assim, Frankfurt dá um contra-exemplo ao princípio de possibilidades alternativas, mostrando que não é uma condição necessária para ter responsabilidade moral que estas existam.
Não é meu propósito aqui avaliar esta experiência mental — deixo isso para o leitor. Noto apenas que a discussão é tremenda e está bem viva nos dias que correm. E há uma razão substancial para isso. Antes das experiências mentais de Frankfurt, havia a suspeita, a que já aludi, de que o incompatibilista tinha uma vantagem dialéctica na questão do livre-arbítrio e da responsabilidade moral em relação ao compatibilista. O incompatibilista sempre apresentou uma noção de controlo baseada em possibilidades alternativas, que parecia natural — a sua linha da vida tinha bifurcações, enquanto a do compatibilista não tinha. Cabia a este então o ónus da prova e mostrar como uma linha da vida sem bifurcações poderia ancorar as nossas intuições de possibilidades alternativas. E, com alguma razão, o incompatibilista achava as explicações do compatibilista algo retorcidas mas, mais importante, implausíveis. Parecia que os tecnicismos deste deixavam sempre a intuição incompatibilista intacta.
Mas Frankfurt responde ao fogo com fogo, ou melhor, à intuição com a intuição, nivelando o terreno. As experiências mentais de Frankfurt parecem desocupar os ombros cansados do compatibilista, mostrando que este não precisa de defender a existência de possibilidades alternativas num mundo determinista para haver responsabilidade moral. E, além disso, consegue fazê-lo com um argumento assaz intuitivo, a que o incompatibilista tem de responder.
Miguel Amen