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Crítica
14 de Março de 2006   Metafísica

Nominalismo

Michael J. Loux
Tradução de Vítor Guerreiro

O termo “nominalismo” refere-se a uma abordagem reducionista de problemas sobre a existência e natureza de entidades abstractas; opõe-se portanto ao platonismo e ao realismo. Enquanto o platónico defende um enquadramento ontológico em que coisas como propriedades, géneros, relacões, proposicões, conjuntos e estados de coisas são tomadas como primitivas e irredutíveis, o nominalista nega a existência de entidades abstractas e tipicamente procura mostrar que o discurso sobre entidades abstractas é analisável em termos do discurso sobre concretos particulares da experiência comum.

Em diferentes períodos, diferentes assuntos forneceram a direcção ao debate entre nominalistas e platonistas. Na idade média, o problema dos universais era de importância axial. Nominalistas como Abelardo e Ockham insistiam em que tudo o que existe é particular. Argumentavam que o discurso sobre universais é um discurso sobre certas expressões linguísticas — as expressões de aplicação geral — e procuraram fornecer uma explicação da semântica de termos gerais suficientemente rica para acolher a ideia de que os universais devem ser identificados com estes.

Os empiristas clássicos seguiram os nominalistas enquanto particularistas, e procuraram identificar os tipos de representação mental associada aos termos gerais. Locke argumentou que estas representações têm um conteúdo especial. Chamou-lhes “ideias abstractas” e afirmou que estas se formam subtraindo às ideias de particulares os atributos específicos dos particulares em questão. Berkeley e Hume, contudo, atacaram a doutrina de Locke da abstracção e insistiram em que o conteúdo das ideias que correspondem a termos gerais é inteiramente determinado e particular, embora os termos sejam usados pela mente como representantes de outras ideias particulares do mesmo tipo.

Um âmbito mais vasto de matérias dominou a recente discussão ontológica, e o interesse pela existência e estatuto de coisas como conjuntos, proposições, eventos e estados de coisas veio a tornar-se tão importante quanto o interesse pelos universais. Além disso, a natureza do debate mudou. Enquanto há filósofos que apoiam uma abordagem nominalista para todas as entidades abstractas, um tipo mais comum de nominalismo é o que reconhece a existência de conjuntos e procura reduzir a discussão sobre outros tipos de entidades abstractas a uma discussão sobre estruturas em teoria dos conjuntos, cujos componentes últimos são particulares concretos.

1. Introdução

Numa acepção, “nominalismo” refere-se a um grupo de temas filosóficos e teológicos relacionados entre si, e de um modo geral articulados por alguns pensadores de finais do século XIV, influenciados por Guilherme de Ockham. Estes pensadores expressavam dúvidas acerca da metafísica aristotélica, em particular acerca da sua eficácia em provar a existência de Deus. Concederam prioridade à fé sobre a razão e enfatizaram a omnipotência divina de maneiras que em ética levaram frequentemente à teoria dos mandamentos divinos e a um cepticismo geral acerca do nosso conhecimento tanto das relações causais como da distinção entre substância e acidente.

Usado deste modo, o termo tem a sua raiz no seu uso mais comum, referindo-se a uma orientação teórica geral face a questões sobre a existência e natureza de entidades abstractas, uma orientação exemplificada pelo trabalho do próprio Ockham. Os que são nominalistas neste sentido rejeitam uma interpretação platónica ou realista do discurso sobre coisas tão diversas como propriedades, géneros, relações, proposições, conjuntos, estados de coisas e modalidade. Frequentemente se diz que o nominalista sustenta a ideia de que o tipo de discurso em questão é metalinguístico e que a discussão sobre as chamadas entidades abstractas é na verdade apenas uma discussão sobre nomina ou expressões linguísticas. Caracterizado deste modo, o nominalismo é por vezes tomado em oposição ao conceptualismo, outra abordagem reducionista a questões ontológicas sobre entidades abstractas. A justificação é que enquanto o conceptualista insiste na necessidade de referir a acção de representação conceptual para acomodar o discurso recalcitrante, o nominalista nega-o. Mas, em primeiro lugar, nem todos os que se intitulam “nominalistas” sustentam uma interpretação metalinguística do discurso em questão; e, em segundo lugar, uma vez que poucos filósofos consideraram possível caracterizar a linguagem sem fazer referência à actividade conceptual, tomar o nominalismo como uma perspectiva oposta ao conceptualismo gera a conclusão de que poucos pensadores normalmente tidos por nominalistas merecem a etiqueta. Em consonância, tornou-se hábito entender como nominalista qualquer abordagem reducionista de questões ontológicas sobre entidades abstractas que se oponha à perspectiva platonista.

2. O período medieval

A orientação a que chamamos nominalista reporta-se tipicamente aos debates medievais sobre universais. Uma fonte importante destes debates foi o comentário de Boécio ao Isagoge de Porfírio, onde encontramos uma discussão pormenorizada do estatuto ontológico dos universais. O comentário de Boécio tornou-se um texto axial para os filósofos medievais, e no século XII o debate sobre os universais tinha-se tornado um tópico dominante das preocupações filosóficas. Emergiram duas perspectivas opostas. Uma, defendida por Guilherme de Champeaux, era uma forma extrema de realismo. Nesta perspectiva, um género ou espécie é literalmente o mesmo em todos os seus exemplos; os indivíduos abarcados pelo mesmo género distinguem-se pela adição de formas à essência comum, sendo essas formas predicados da essência. A perspectiva oposta, defendida por Roscelin de Compiègne, representava uma versão extrema de nominalismo. Insistindo em que todas as entidades são particulares, Roscelin argumentava que a discussão sobre universais é meramente uma discussão sobre expressões linguísticas que se podem aplicar a uma quantidade de particulares diferentes, aderindo a uma interpretação austera das expressões linguísticas para a qual os universais são meros flatus vocis ou vocalizações.

Abelardo atacou as duas versões. Argumentou que uma vez que as formas que alegadamente diversificam qualquer essência comum são contrárias, o raciocínio de Guilherme compromete-nos com a ideia de que uma entidade singular pode exemplificar simultaneamente propriedades incompatíveis; e apelou à definição aristotélica de universal como aquilo que pode ser predicado de muitos com vista a pôr em dúvida a asserção de que as entidades não-linguísticas podem ser universais. Aquela definição, argumentou, aplica-se exclusivamente a coisas que podem funcionar como predicados em frases do tipo sujeito-predicado, o que hoje em dia denominamos “termos gerais”. Mas ao mesmo tempo que concordava com Roscelin em que só podemos “atribuir a universalidade a palavras”, Abelardo rejeitou a proposta de Roscelin de que os universais são apenas flatus vocis, insistindo em que são expressões significativas ou dotadas de sentido; e argumentou que qualquer explicação adequada dos universais deve mostrar como, na ausência de uma essência comum, os termos gerais podem ter sentido. Ao fazê-lo, deve responder a duas questões: 1) qual a razão da imposição de um nome comum; e 2) o que compreendemos quando compreendemos o significado de um substantivo?

A resposta de Abelardo à primeira questão é desarmante. As coisas a que o termo “homem” se aplica, por exemplo, concordam todas no facto de serem homens. O facto de serem homens é o fundamento de se lhes impor o substantivo “homem”. Abelardo nega, contudo, que este acordo envolva alguma entidade comum. Considera ser um facto irredutivelmente primitivo que todas as coisas denominadas “homens” são todas homens. Em resposta à segunda questão, Abelardo argumenta que o que compreendemos quando compreendemos o substantivo “homem” não é qualquer dos homens particulares nomeados por aquele termo; também não é o conjunto constituído por todos aqueles particulares. Para explicar o tipo de cognição associada a termos gerais, Abelardo apela para a distinção entre percepção e intelecção. Na percepção, apreendemos o particular nomeado pelo nome próprio; a cognição associada a termos gerais é, contudo, intelectiva. Aqui, a mente dirige-se a um objecto de sua própria lavra, a res ficta. A res ficta é um tipo de imagem, a qual é communis et confusa (comum e indiferenciada). É comum a todos os itens nomeados pelo termo geral associado não sendo específica de nenhum deles. Em concordância, representa-os a todos indiferentemente. Uma vez que se trata de algo distinto de qualquer dos particulares abarcados pelas categorias aristotélicas, não é uma substância nem um acidente. É o produto da actividade abstractiva do intelecto, e é o que o termo geral associado significa — é o que compreendemos quando compreendemos tal termo.

O século que se seguiu a Abelardo trouxe uma série de diferentes desenvolvimentos. O aparecimento da totalidade do corpus aristotélico proporcionou uma imagem mais clara das posições de Aristóteles quanto aos universais, e o rico enquadramento de conceitos semânticos associados com a nascente lógica terminista tornou possível a articulação de uma forma de nominalismo mais poderosa do que as defendidas por Roscelin e Abelardo. Essa articulação deve-se a Guilherme de Ockham. Na esteira da lógica terminista, Ockham distinguia entre termos categoremáticos e sincategoremáticos. Os termos categoremáticos são expressões cuja importância deriva de terem um “significado definido e determinado”. Os termos sincategoremáticos, por contraste, não servem como signos de objectos; a sua importância deriva dos papéis que desempenham quando usados em conjunto com termos categoremáticos. Os termos categoremáticos são posteriormente divididos em termos discretos e comuns, sendo este o contraste entre expressões que representam um só objecto e expressões que representam vários e são portanto predicáveis de vários.

Como Abelardo, Ockham identifica os universais com termos comuns. Insistindo em que cada coisa existente é um particular, concebe a distinção entre universais e particulares como uma distinção entre termos categoremáticos que representam uma coisa apenas e aqueles que representam várias coisas. Mas enquanto Abelardo considera as representações conceptuais como itens não-linguísticos que funcionam como os significata dos diversos termos comuns, Ockham pretende afirmar que um termo comum como “homem” representa os vários particulares dos quais é realmente predicável, e que a própria representação conceptual que corresponde ao termo “homem” é uma entidade linguística. A sua ideia é a de que o pensamento é um diálogo interior, susceptível de ser compreendido através dos conceitos familiares, apropriados à linguagem escrita e falada. Assim, os conceitos são termos mentais, os juízos são proposições mentais, e as inferências são silogismos mentais. Os itens conceptuais linguísticos diferem, contudo, das palavras escritas ou faladas na medida em que enquanto os últimos só são convencionalmente significantes, os primeiros são signos naturais. O fonema “homem” tem o significado que tem apenas em virtude de um complicado sistema de convenções, mas o conceito homem é algo cuja natureza intrínseca consiste em desempenhar o papel linguístico que desempenha; e apesar de descrevermos as representações conceptuais por meio de conceitos derivados da nossa caracterização da linguagem falada e escrita, a linguagem mental precede ambas. Tal como a linguagem escrita é o desenvolvimento natural da linguagem falada, a linguagem falada é uma extensão da linguagem mental, uma espécie de “pensamento em voz alta”.

A distinção entre termos discretos e comuns, portanto, aplica-se a representações conceptuais, de tal modo que há universais conceptuais — representações conceptuais predicáveis de muitos — e são estes os universais genuínos. Uma vez que são naturalmente significantes, os termos comuns da linguagem mental são pela sua natureza intrínseca itens predicados de muitos; e a sua universalidade é a raiz da universalidade meramente convencional dos termos comuns da linguagem escrita e falada. Em correspondência com o termo escrito/falado “universal” há um termo comum mental universal. De modo a acentuar o contraste entre a sua própria forma de nominalismo e as suas alternativas realistas, Ockham diz-nos que este termo mental é um termo que não representa entidades extramentais mas, antes, intenções da alma, aquelas que pela sua natureza intrínseca são signos de muitos.

Ao caracterizar os itens conceptuais que pela sua natureza intrínseca são universais, Ockham menciona três perspectivas possíveis. Uma delas relembra Abelardo e concebe o termo mental como uma res ficta não presente em qualquer categoria aristotélica; a segunda concebe os termos mentais como qualidades da alma que servem de objecto aos actos de entendimento; a terceira identifica o termo mental com o acto de entendimento mesmo. Ao longo da sua carreira, Ockham hesitou entre estas perspectivas, mas veio por fim a defender a terceira perspectiva com base na simplicidade teórica.

O nominalismo de Ockham vai além de uma preocupação com universais e a distinção entre termos comuns e discretos. Interessou-se também pela distinção entre termos concretos e abstractos, entre termos como “homem” e “humanidade”, “corajoso” e “coragem”, e preocupou-se em enfraquecer o que ao princípio parece uma explicação plausível desta distinção. Uma resposta natural à distinção consiste em dizer que enquanto os termos concretos representam particulares familiares concretos (os particulares que são homens e corajosos), as suas contrapartidas abstractas representam as entidades abstractas (humanidade e coragem) que esses particulares exibem. Uma vez que a distinção entre termos concretos e abstractos está presente nas dez categorias aristotélicas, a perspectiva torna explícito que para cada categoria há um tipo de entidade abstracta categoricamente diferente tal que, em virtude de exibir uma entidade desse tipo, um particular vem a ser caracterizado pelo termo concreto apropriado.

Combatendo esta via, Ockham argumenta que as categorias não representam uma classificação de objectos não-linguísticos; são, ao invés, uma classificação de expressões linguísticas de acordo com o seu modo de significação. Do seu ponto de vista, existem objectos não linguísticos correspondendo apenas às categorias de substância e qualidade, e as entidades em questão são todas particulares. Existem então substâncias particulares (como este homem) e qualidades particulares (como a brancura deste pedaço de papel). Os termos abstractos da categoria da substância nada representam de distinto das substâncias particulares representadas pelas suas contrapartidas concretas. Termos abstractos da categoria da qualidade tendem a representar entidades distintas das substâncias familiares que dizemos serem brancas e corajosas; mas um termo como “coragem” não representa uma qualquer qualidade que todos os indivíduos corajosos partilham. A “coragem” é melhor entendida como um termo geral representando qualidades individuais, as várias coragens em virtude das quais se diz que os seres humanos individuais são corajosos. Em nenhuma das outras categorias aristotélicas os termos abstractos representam quaisquer entidades distintas das representadas pelas suas contrapartidas concretas. Com efeito, Ockham queria afirmar que os termos abstractos de outras categorias que não a da qualidade são elimináveis do discurso, que as frases que incorporam termos como “paternidade” e “roubo” podem ser substituídas, sem perda de conteúdo, por frases nas quais esses termos não aparecem, surgindo apenas as suas contrapartidas concretas (“pai” e “ladrão”); e uma parte significativa das suas obras de lógica/ontologia é dedicada a mostrar como funcionam estas traduções.

3. Empirismo britânico clássico

Os empiristas clássicos seguiram Abelardo e Ockham quanto a negar que os termos gerais representam universais. Assim, Hobbes faz lembrar um tema conhecido quando diz que as únicas coisas que existem são particulares e que os termos “geral” e “universal” são apenas “nomes de nomes”. Tal como os seus antepassados medievais, os empiristas reconheceram que a plausibilidade desta perspectiva depende da nossa capacidade para produzir uma explicação satisfatória da relação entre os termos gerais e as representações interiores ou ideias que lhes correspondem. Locke, que concorda que as entidades extramentais são cada uma e todas elas particulares, argumenta que as palavras representam ideias e que as ideias que correspondem a termos gerais são ideias abstractas — ideias formadas a partir das nossas ideias de particulares subtraindo-lhes os atributos específicos deste ou daquele particular, retendo “apenas o que é comum” a todas as coisas às quais um dado termo geral se aplica. Berkeley vai mais longe no seu nominalismo, negando que temos ideias abstractas do género das que Locke descreve. Do ponto de vista de Locke, o processo que produz a ideia abstracta de um triângulo, por exemplo, consiste em separar todos os atributos relativamente aos quais os triângulos diferem entre si; e o resultado deste processo é uma ideia de triângulo que não é “nem oblíquo, nem rectângulo, nem equilátero, nem isósceles, nem escaleno, mas todos estes e nenhum deles simultaneamente”. Berkeley desafia-nos a identificar uma ideia que corresponda a esta caracterização. Do seu ponto de vista, as nossas ideias são determinadas em todos os seus atributos e, em consonância, particulares no seu conteúdo.

Ao mesmo tempo que ataca a ideia de que as ideias são gerais em virtude de serem abstractas, Berkeley concede que existem ideias gerais; mas insiste que o carácter geral de uma ideia é uma função do seu papel no pensamento e não um qualquer tipo de conteúdo. As ideias são gerais não porque resultem de abstracção no sentido de Locke, mas porque a ideia supostamente “representa ou significa todas as outras ideias particulares do mesmo tipo”. Hume secundou sem hesitar o ataque de Berkeley à abstracção e a sua explicação da generalidade, dizendo-nos que as ideias gerais são “em si individuais, ainda que se tornem gerais na sua representação. A imagem mental é apenas a de um objecto particular, apesar de a sua aplicação no raciocínio ser a mesma do que se fosse universal” (Hume 1740: 20).

4. O século XX

Tal como os debates ontológicos em períodos anteriores, as discussões ontológicas na filosofia analítica nascente centravam-se tipicamente no problema dos universais. Assim, Frege, Moore e Russell ansiavam por enfraquecer as teorias nominalistas que procuravam analisar o discurso sujeito-predicado sem referência a universais não linguísticos; e quando o Wittgenstein tardio ataca a ideia de que o uso de um termo geral como “jogo” se baseia no reconhecimento anterior de uma propriedade ou conjunto de propriedades comuns a todos os itens a que o termo se aplica, está, entre outras coisas, a desafiar as suas explicações platónicas do discurso sujeito-predicado. Apesar de a preocupação com os universais ter continuado ao longo do século XX, as investigações de nominalistas recentes exibem um âmbito mais vasto de assuntos que as dos seus antepassados medievais e clássicos modernos. Além da preocupação com universais, os nominalistas contemporâneos procuram fornecer explicações reducionistas de coisas tão diversas como os conjuntos da matemática, proposições, estados de coisas, acontecimentos e mundos possíveis; e os filósofos de espírito nominalista têm atitudes diferentes relativamente a diferentes itens desta lista. Alguns, por exemplo, são nominalistas no que respeita aos universais tradicionais enquanto insistem numa explicação platónica dos conjuntos; outros, insistem na irredutibilidade de acontecimentos, mas fornecem explicações reducionistas do aparente discurso sobre proposições, estados de coisas e universais. De facto, poucos filósofos se têm disposto a defender uma abordagem nominalista a todas as chamadas entidades abstractas. Uma excepção é Wilfrid Sellars.

A explicação dada por Sellars é uma sofisticação da sugestão de Ockham de que a discussão sobre entidades abstractas é discurso metalinguístico. Esta sugestão foi elaborada anteriormente numa proposta de Rudolf Carnap, The Logical Syntax of Language, de que interpretamos a discussão sobre entidades abstractas como um modo pseudomaterial de discurso, discurso em aparência mas não de facto sobre objectos não linguísticos. Carnap ocupa-se com frases do seguinte tipo:

1) A coragem é uma propriedade.
2) A humanidade é um género.
3) A paternidade é uma relação.
4) Que dois mais dois é igual a quatro é uma proposição.

A sua proposta é que tratemos estas frases como modos disfarçados de fazer afirmações sobre a sintaxe de certas expressões linguísticas. Assim, 1–4 convertem-se em:

1') “Coragem” é um adjectivo.
2') “Homem” é um substantivo comum.
3') “Pai de…” é um predicado poliádico.
4') “Dois mais dois é igual a quatro” é uma frase declarativa.

O problema desta proposta é que 1–4 acabam por ser afirmações sobre expressões portuguesas. A proposta força-nos a tomar as contrapartidas espanholas de 1–4, por exemplo, como afirmações acerca de palavras espanholas, de modo que 1–4 e as que supomos serem as suas traduções espanholas, nem sequer concordam em referência. Sellars responde a este problema introduzindo um género de citação que atravessa transversalmente as línguas, chamada “citação com pontos”. Enquanto a citação canónica que encontramos em 1'-4' gera expressões metalinguísticas que se aplicam exclusivamente a palavras na língua que cita, a aplicação da citação com pontos de Sellars a uma expressão gera um substantivo comum metalinguístico que se aplica a todas as expressões, independentemente da linguagem, que desempenham o mesmo papel linguístico que a expressão citada desempenha na linguagem de partida. Assim, “ homem ” é um substantivo comum que se aplica a “hombre”, “homme” e “Mensch”. Nas suas respectivas línguas, estes termos desempenham o mesmo papel que “homem” em português; são todos “ homem ”s. Ora, Sellars quer afirmar que, recorrendo ao dispositivo da citação com pontos, podemos fornecer uma reconstrução satisfatória de 1–4:

1'')  Vermelho s são adjectivos.
2'')  Homem s são substantivos comuns.
3'')  Pai de s são predicados poliádicos.
4'')  Dois mais dois são quatro s são frases declarativas.

Sellars pensa que 1''-4'' representam afirmações acerca de expressões linguísticas concebidas como símbolos e não como tipos; e a discussão sobre símbolos linguísticos pode ser reformulada como uma discussão sobre quem fala e inscreve. Até o aparente platonismo envolvido na discussão sobre papéis linguísticos é ilusório uma vez que a discussão sobre papéis linguísticos pode ser eliminada por referência à discussão sobre os papéis linguísticos que regem o uso de termos. Em consonância, a aparente discussão sobre entidades abstractas é consistente com o mais austero nominalismo; é mero discurso metalinguístico atravessando as línguas.

Sellars pensa que o tipo de explicação que propõe para 1–4 pode alargar-se para lidar com todo o discurso que envolva as chamadas entidades abstractas. Uma forma de nominalismo ligeiramente menos radical encontra-se nos escritos de W. V. Quine. Cedo na sua carreira, Quine adoptou um nominalismo tão austero quanto o defendido por Sellars, mas ao tempo em que escreve Word & Object (1960), tinha concluído que existe um tipo de entidade abstracta cuja existência temos de reconhecer, o conjunto ou classe matemática. Contudo, Quine permanece renitente em reconhecer coisas como propriedades, relações, géneros e proposições. Ao contrário dos conjuntos, estas alegadas entidades não têm condições precisas de identidade e não deveriam desempenhar qualquer papel na nossa ontologia.

A maioria dos filósofos contemporâneos concorda com Quine em que devemos adoptar uma ontologia de conjuntos. Esta perspectiva fornece o cenário para a abordagem reducionista aos universais defendida por G. F. Stout e D. C. Williams. Sustentam que existem qualidades e propriedades particulares contrapostas a qualidades ou propriedades gerais, coisas como a brancura deste pedaço de papel. Assim, temos entidades abstractas além de conjuntos; mas estas são particulares. Williams chama tropos a estes particulares abstractos e diz-nos que constituem “o alfabeto do ser”. Os tropos são ontologicamente primitivos, e os itens de outras categorias são construídos a partir deles. Assim, o universal platónico é um conjunto de tropos semelhantes; e os objectos concretos comuns são feixes de tropos que entraram contingentemente numa relação de “colocação”.

Embora a teoria nominalista de tropos de Williams continue a gozar de alguma popularidade, a mais proeminente forma de nominalismo na arena contemporânea é a influenciada pelos desenvolvimentos da semântica da lógica modal, onde encontramos a ideia de que o mundo actual é apenas um de infinitos mundos possíveis e que falar sobre necessidades e possibilidades é falar sobre mundos possíveis. Os nominalistas contemporâneos alegam que o enquadramento dos mundos possíveis fornece os recursos para uma explicação reducionista de coisas como propriedades e proposições. Estes filósofos propõem que tomemos os mundos possíveis como primitivos. Cada um desses mundos, afirmam, pode caracterizar-se em termos nominalistas como uma totalidade de particulares concretos, e argumentam que podemos fornecer um tratamento nominalista de coisas como propriedades e proposições identificando-os com entidades de tipo transmundial em teoria de conjuntos. Podemos identificar propriedades com funções de mundos para conjuntos de objectos, relações com funções de mundos para conjuntos de n-túplos ordenados e proposições com conjuntos de mundos ou funções de mundos para os valores de verdade. A mais proeminente deste tipo de perspectiva é de David Lewis. Ele invocou o enquadramento dos mundos possíveis não simplesmente para fornecer uma explicação de propriedades e proposições, mas para clarificar o conceito de significado, estabelecer condições de verdade para contrafactuais e fornecer uma análise da causalidade (1986).

Michael J. Loux
Publicado em Routledge Encyclopedia of Philosophy, org. Edward Craig (Londres: Routledge, 1998)

Referências e leitura complementar

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ISSN 1749-8457