É costume dizer que cada um tem a sua filosofia e até que todos os homens têm opiniões metafísicas. Nada poderia ser mais tolo. É verdade que todos os homens têm opiniões, e que algumas delas — tais como as opiniões sobre religião, moral e o sentido da vida — confinam com a filosofia e a metafísica, mas raros são os homens que possuem qualquer concepção de filosofia e ainda menos os que têm qualquer noção de metafísica.
William James definiu algures a metafísica como “apenas um esforço extraordinariamente obstinado para pensar com clareza”. Não são muitas as pessoas que assim pensam, excepto quando os seus interesses práticos estão envolvidos. Não têm necessidade de assim pensar e, daí, não sentem qualquer propensão para o fazer. Exceptuando algumas raras almas meditativas, os homens percorrem a vida aceitando como axiomas, simplesmente, aquelas questões da existência, propósito e sentido que aos metafísicos parecem sumamente intrigantes. O que sobretudo exige a atenção de todas as criaturas, e de todos os homens, é a necessidade de sobreviver e, uma vez isso razoavelmente assegurado, a necessidade de existir com toda a segurança possível. Todo o pensamento começa aí, e a sua maior parte cessa aí. Sentimo-nos mais à vontade para pensar como fazer isto ou aquilo. Por isso a engenharia, a política e a indústria são muito naturais aos homens. Mas a metafísica não se interessa, de modo algum, pelos “comos” da vida mas antes apenas pelos “porquês”, pelas questões que é perfeitamente fácil jamais formular durante uma vida inteira.
Pensar metafisicamente é pensar, sem arbitrariedade nem dogmatismo, nos mais básicos problemas da existência. Os problemas são básicos no sentido em que são fundamentais e muita coisa depende deles. A religião, por exemplo, não é metafísica; e, entretanto, se a teoria metafísica do materialismo fosse verdadeira, e assim fosse um facto que os homens não têm alma, então grande parte da religião soçobraria diante desse facto. Também a filosofia moral não é metafísica e, contudo, se as teorias metafísicas do determinismo ou do fatalismo fossem verdadeiras, então muitos dos nossos pressupostos tradicionais seriam refutados por essas verdades. Similarmente, a lógica não é metafísica e, contudo, se se apurasse que, em virtude da natureza do tempo, algumas asserções não são verdadeiras nem falsas, isso acarretaria sérias implicações para a lógica tradicional.
Isto sugere, contrariamente ao que em geral se supõe, que a metafísica é um alicerce da filosofia e não o seu coroamento. Se for longamente exercido, o pensamento filosófico tende a resolver-se em problemas metafísicos básicos. Por isso o pensamento metafísico é difícil. Com efeito, seria provavelmente correcto afirmar que o fruto do pensamento metafísico não é o conhecimento, mas a compreensão. As interrogações metafísicas têm respostas e, entre as várias respostas concorrentes, nem todas poderão ser verdadeiras, por certo. Se um homem defende uma teoria materialista e outro a nega, então um desses homens está errado; e o mesmo acontece a todas as outras teorias metafísicas. Contudo, só muito raramente é possível provar e conhecer qual das teorias é a verdadeira. A compreensão, porém — e, por vezes, a parte mais profunda dela — resulta de se ver dificuldades persistentes em opiniões que frequentemente parecem, com outras bases, ser muito obviamente verdadeiras. É por essa razão que um homem pode ser um sábio metafísico sem que, não obstante, sustente suas opiniões e juízos em conceitos metafísicos. Tal homem pode ver tudo o que um dogmático metafísico vê, e pode entender todas as razões para afirmar o que outro homem afirma com tamanha confiança. Mas, ao invés do outro, também vê algumas razões para duvidar e, assim, ele é, como Sócrates, o mais sábio, mesmo em sua profissão de ignorância. Advirta-se o leitor, neste particular, de que quando ouvir um filósofo proclamar qualquer opinião metafísica com grande confiança, ou o ouvir afirmar que determinada coisa, em metafísica, é óbvia, ou que algum problema metafísico gravita apenas em torno de confusões de conceitos ou de significados de palavras, então poderá estar inteiramente certo de que esse homem está infinitamente distante do entendimento filosófico. Suas opiniões parecem isentas de dificuldades apenas porque ele se recusa obstinadamente a ver as dificuldades.
Um problema metafísico é inseparável dos seus dados, pois são estes que, em primeiro lugar, dão origem ao problema. Ora o datum, ou dado, significa literalmente algo que nos é oferecido, posto à nossa disposição. Assim, tomamos como dado de um problema certas convicções elementares do senso comum que todos ou a maioria dos homens estão aptos a sustentar com alguma persuasão íntima, antes da reflexão filosófica, e teriam relutância em abandonar. Não são teorias filosóficas, pois estas são o produto da reflexão filosófica e, usualmente, resultam da tentativa de conciliar certos dados entre si. São, pelo contrário, pontos de partida para teorias, as coisas por onde se começa, visto que, para que se consiga alguma coisa, devemos começar por alguma coisa, e não se pode gastar o tempo todo apenas começando. Observou Aristóteles: “Procurar a prova de assuntos que já possuem evidência mais clara do que qualquer prova pode fornecer é confundir o melhor com o pior, o plausível com o implausível e o básico com o derivativo”, (Física, Livro VIII, Cap. 3 ). Exemplos de dados metafísicos são as crenças que todos os homens possuem, independentemente da filosofia, de que existem, de que têm um corpo, de que lhes cabe algumas vezes uma opção entre cursos alternativos de ação, de que por vezes deliberam sobre tais cursos, de que envelhecem e morrerão algum dia, etc. Um problema metafísico surge quando se verifica que tais dados não parecem concordar entre si, que têm, aparentemente, implicações inconsistentes entre si. A tarefa, então, é encontrar uma teoria adequada à eliminação desses conflitos.
Talvez convenha observar que os dados, como os considero, não são coisas necessariamente verdadeiras nem evidentes em si. De fato, se o conflito entre certas convicções do senso comum não for tão-só aparente, mas real, então algumas dessas convicções estão fadadas a ser falsas, embora possam, não obstante, ser tidas na conta de dados até que sua falsidade se descubra. É isso o que torna emocionante, por vezes, a metafísica; nomeadamente, o fato de sermos coagidos, algumas vezes, a abandonar certas opiniões que sempre havíamos considerado óbvias. Contudo, a metafísica tem de começar por alguma coisa e, como não pode começar, obviamente, pelas coisas que já estão provadas, deve começar pelas coisas em que as pessoas acreditam; e a confiança com que uma pessoa sustenta as suas teorias metafísicas não pode ser maior do que a confiança que deposita nos dados em que aquelas repousam.
Ora, o intelecto do homem não é tão forte quanto a sua vontade, e os homens, geralmente, acreditam no que querem acreditar, particularmente quando essas crenças parecem dar valor a si mesmos e às suas actividades. A sabedoria não é, pois, o que os homens buscam em primeiro lugar. Procuram, outrossim, uma justificação para aquilo de que por acaso gostam. Não surpreende, portanto, que os principiantes em filosofia, e mesmo os que já não são principiantes, tenham uma acentuada inclinação para se apegarem a uma teoria que os atraia, em face de dados conflituantes, e neguem por vezes a veracidade dos dados, apenas por aquela razão. Tal atitude dificilmente se pode considerar propícia à sabedoria. Assim, não é incomum encontrarmos pessoas que, dizem, querem ardentemente acreditar na teoria do determinismo e que, partindo desse desejo, negam, simplesmente, a verdade de quaisquer dados que com ela colidam. Os dados, por outras palavras, são meramente ajustados à teoria, em vez de a teoria aos dados. Mas deve-se insistir ainda que é pelos dados, e não pela teoria, que se terá de começar; pois se não partirmos de pressupostos razoavelmente plausíveis, onde irmos obter a teoria, senão no que os nossos corações desejam? Mais cedo ou mais tarde poderemos ter de abandonar alguns dos dados do nosso senso comum, mas, ao fazê-lo, será em consideração a certas outras crenças do senso comum que temos ainda maior relutância em abandonar e não em deferência pelas teorias filosóficas que nos atraem.
O leitor é exortado, portanto, ao acompanhar os pensamentos que se seguem, a suspender os seus juízos sobre as verdades finais das coisas, uma vez que, provavelmente, nem o leitor nem qualquer outra pessoa sabe quais são essas verdades, e a contentar-se com a apreciação dos problemas da metafísica. Este é o primeiro e sempre o mais difícil passo. O resto da verdade, se alguma vez tiver a boa fortuna de receber uma parte dela, chegar-lhe-á do seu próprio íntimo, se acaso chegar, e não da leitura de livros.
O ensaio que se segue constitui uma introdução — literalmente, um “encaminhamento” — à metafísica. Não é uma análise das concepções predominantes, e o leitor buscará em vão os nomes dos grandes pensadores ou o resumo das opiniões que eles defenderam. Os problemas metafísicos vão sendo trazidos à tona, e o leitor é simplesmente convidado a pensar neles de acordo com as diretrizes sugeridas. É por essa razão que, ao desenvolver os problemas mais estreitamente associados com o eu ou a pessoa e os seus poderes, particularmente nos primeiros três capítulos, a estilisticamente discutível primeira pessoa do singular, “Eu”, é empregada com frequência, à maneira das Meditações de Descartes. O leitor compreenderá que as ideias dessa forma apresentadas têm por intuito significar as suas próprias e não quaisquer reflexões autobiográficas do autor.