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Crítica
21 de Outubro de 2005   Metafísica

Teorias da verdade

Cláudio F. Costa

As quatro teorias da verdade mais conhecidas são a teoria da redundância, a pragmática, a correspondencial e a coerencial. No que se segue quero expor de forma crítica e comparada cada uma dessas teorias, buscando avaliar as suas plausibilidades. Antes disso, porém, quero abordar o problema do portador da verdade.

1. O portador da verdade

O que chamamos de portador da verdade é aquilo de que mais propriamente podemos dizer que é verdadeiro ou falso. Candidatos a portadores da verdade são 1) pessoas ou coisas, 2) sentenças assertivas, 3) proposições, 4) crenças.

Comecemos com 1: pessoas ou coisas. Faz sentido dizer “Sócrates é verdadeiro” ou “Esse diamante é verdadeiro”. Mas são esses os verdadeiros portadores da verdade? Desde Aristóteles, temos o seguinte raciocínio para mostrar que pessoas e coisas são portadores derivados da verdade. Considere o predicado “é saudável”. Em um sentido próprio, quem é saudável ou não é o ser vivo; assim, aplicamos propriamente o predicado “é saudável” a pessoas como João, o alterofilista. Mas podemos também dizer que um alimento é saudável, e alimentos não são seres vivos. Por que razão? Ora, a razão óbvia é que certos alimentos tornam as pessoas saudáveis, daí serem eles por um processo de derivação semântica também chamados de saudáveis. Por isso é o ser vivo, principalmente o homem, e não o alimento, o portador próprio do predicado “é saudável”. A mesma coisa, deve acontecer com a verdade. Dizemos que Sócrates é verdadeiro apenas porque, por ser uma pessoa veraz, ele diz coisas verdadeiras. Dizemos que um diamante é verdadeiro apenas porque, por ser autêntico, ele faz as pessoas dizerem coisas verdadeiras acerca dele, como a de que ele vale dez mil dólares. Assim, os portadores próprios da verdade não são as pessoas e as coisas, mas o que dizemos sobre as coisas.

Sendo assim, um candidato natural a portador do valor de verdade passa a ser 2: a sentença [frase, em português lusitano]. Dizemos coisas como “É verdade que o número π resulta da divisão da circunferência pelo diâmetro do círculo” e “”As Crianças são trazidas por cegonhas” é uma frase falsa”. Mas admitir que as sentenças são os portadores próprios da verdade também é problemático. É razoável admitirmos um princípio da invariância da verdade: o que é verdadeiro (ou falso) permanece verdadeiro (ou falso); esse princípio equivale à exigência da invariância do portador da verdade, posto que ele é aquilo mesmo que dizemos ser verdadeiro ou falso. Mas isso é impossível se o portador for a sentença. Considere a sentença “Sinto dores”. Ela é falsa se proferida agora por mim. Mas torna-se verdadeira se proferida em um hospital, por um paciente recém-operado. A variação do valor de verdade se dá conforme apenas com a variação daquilo que a sentença diz, que é diferente no meu caso do caso da sentença proferida pelo paciente no hospital. Considere agora o caso inverso dos seguintes proferimentos com conteúdo idêntico: “Está chovendo”, “It's raining”, “Il pleut”. Se nas mesmas circunstâncias todos eles forem proferidos, todos eles serão verdadeiros — caso esteja chovendo — ou falsos — caso não esteja. Ora, nesse caso acontece que a sentença muda, enquanto aquilo que dizemos ser verdadeiro (ou falso), aquilo que é dito pelas diversas frases com o mesmo conteúdo, permanece o mesmo. Só o que é dito pelas frases, o seu conteúdo, parece justificar a permanência do mesmo valor de verdade.

A conclusão óbvia das considerações feitas acima é que o portador da verdade não pode ser a sentença, mas o que a sentença diz, o seu sentido, o que por ela se entende ou pensa. O que a sentença diz recebeu vários nomes na literatura filosófica: proposição, conteúdo proposicional, conteúdo enunciativo, o sentido da frase, o pensamento... Prefiro a palavra “pensamento”, pois é a única que exprime o sentido da sentença de modo natural. Como seu introdutor Gottlob Frege notou, se o sentido da sentença é alterado de maneira que possa ser relevante para o seu valor de verdade, muda também o pensamento. Muitos sentem dificuldade em admitir que os sentidos, conteúdos ou pensamentos sejam os portadores dos valores de verdade. A razão disso é que é difícil definir o estatuto ontológico dessas entidades. Em geral se pensa em duas possibilidades, uma psicológica, outra platônico-realista, ambas inadequadas. A primeira, de que as proposições (ou pensamentos) deveriam ser entendidas como entidades psicológicas, parece muito ruim, pois nesse caso elas parecem depender, para existirem, da existência de sujeitos psicológicos que as estejam pensando: uma proposição como a expressa por “2 + 2 = 4” só existiria e só seria verdadeira enquanto alguém a estivesse pensando... A alternativa platônico-realista para isso foi sugerida por Frege. Para ele, os pensamentos são entidades abstratas, havendo um mundo de pensamentos atemporais (que ele chama também de eternos), imutáveis, para sempre verdadeiros ou falsos, esperando para serem pensados por nós(1). Nesse caso, contudo, precisaremos superpopular o mundo com um infinito número de entidades platônicas, pois cada sentença com valor de verdade exprime uma proposição.

Não creio que o dilema recém-exposto seja inevitável. Minha sugestão começa com uma aplicação da distinção tipo-exemplar para o caso. Um exemplar é uma ocorrência de algo, enquanto um tipo é aquilo que é comum às diversas ocorrências de algo, sendo algumas vezes interpretado em termos de entidade abstrata subsistente em algum céu platônico. A palavra “pata”, por exemplo, tem três ou quatro letras, dependendo de estarmos contando as letras como exemplares ou como tipos. Ela tem quatro exemplares de letras, pois nesse caso as duas ocorrências da letra “a” são contadas; mas tem apenas três tipos de letras, posto que a letra “a” só exemplifica um único tipo de letra. Ora, podemos entender pensamentos ou proposições em termos de pensamentos-tipo, ou seja, pensamentos que venham a ser exemplificados, atualizados como ocorrências — como exemplares de pensamentos nas mentes das pessoas. Platonistas como Frege entenderam o pensamento como um pensamento-tipo, como uma entidade platônica. Um pensamento-tipo, no entanto, não precisa ser entendido como uma entidade abstrata. Pode ser entendido como um conjunto aberto de exemplares de pensamentos idênticos entre si, ou seja, como um conjunto aberto de ocorrências de conteúdos de consciência de ordem psicológica chamados de pensamentos. Entendendo por conjunto aberto um conjunto não vazio com um número indeterminado de membros, basta que exista um membro, ou seja, que uma pessoa tenha tido alguma vez um certo exemplar de um pensamento para que o pensamento-tipo exista.

Essa interpretação da noção de pensamento tem, no entanto, a seguinte desvantagem: se os pensamentos são conjuntos de exemplares de pensamentos, então um pensamento irá se tornar maior na medida em que for pensado por mais pessoas, uma vez que o conjunto se torna mais extenso. Mas nosso conceito de pensamento (ou proposição ou sentido do enunciado) não é de algo que possui dimensão quantitativa. A objeção pode ser respondida quando definimos um pensamento como ao menos um exemplar de pensamento, ou qualquer outro exemplar de pensamento similar a ele, pois nesse caso a extensão efetiva do conjunto de exemplares de pensamentos é abstraída. Assim, se o pensamento expresso pela frase “O Colosso de Rodes flutua no Mar dos Sargaços” foi pensado pela primeira vez por mim e agora é pensado também por você, isso não aumenta o pensamento, se a existência e a medida do pensamento for que ele é ao menos um pensamento realizado em alguma mente.

Essa interpretação da noção da proposição como pensamento-tipo possui conseqüências ontológicas interessantes. Onde está e quando existe uma proposição ou pensamento, digamos, o teorema de Pitágoras? Ele não está em uma certa mente individual, levando-nos ao contra-senso de termos de admitir que quando a pessoa morre o teorema desaparece com ela. Também não parece que ele seja algo eterno ou atemporal, que sempre foi e sempre será verdadeiro, como pensava Frege. Como sendo ao menos um exemplar de pensamento, o teorema de Pitágoras tem uma existência que depende de mentes, embora não de uma mente individual particular das muitas que o pensam. Como ele já foi pensado por mim e certamente também por você e por muitas outras pessoas no passado, tem uma existência dispersa no espaço e no tempo. Contudo, diversamente do caso da interpretação platonista, de fato não existia antes de Pitágoras tê-lo pensado, e finalmente deixará de existir quando ninguém mais o pensar. Mas ninguém poderá pensar então “A soma dos quadrados dos catetos é igual ao quadrado da hipotenusa existiu no passado e não existe mais”, pois ao pensá-lo ele atualizará a sua existência. Apesar disso, tal pensamento não teria chegado a existir se ninguém jamais o tivesse pensado.

Essa maneira de ver nada tem de estranha e é confirmada por nossas intuições lingüísticas. Podemos dizer que João estava se recordando do teorema de pitágoras, que acabou de pensá-lo. Nesse caso estamos nos referindo ao exemplar de pensamento. Mas podemos falar mais abstratamente do pensamento expresso pelo teorema de Pitágoras. Nesse caso estamos nos referindo a no mínimo um exemplar de pensamento, sem considerar quem o pensou. Dizer, como fez Frege, que um tal pensamento sempre existiu, mesmo antes do ser humano o ter descoberto, é pagar um preço ontológico desnecessário.

Uma objeção que poderia ser feita à idéia de que o portador da verdade são pensamentos-tipo em um sentido não-platonista é a seguinte: Muitas verdades são descobertas. Pitágoras descobriu o teorema que leva o seu nome. Arquimedes descobriu que os corpos têm densidade específica. Mas se algo é descoberto é porque existia antes de ser descoberto. Por conseqüência, os pensamentos de que a soma dos quadrados dos catetos é igual ao quadrado da hipotenusa e de que os corpos físicos têm densidades específicas resultantes da divisão do volume pelo peso já existiam antes de serem descobertos.

Essa objeção resulta, porém, de uma confusão entre o pensamento como portador da verdade e o estado de coisas, o fato do qual ele é pensamento. Isso é claro no caso de verdades empíricas: que os corpos físicos possuem densidades específicas é um fato que sempre existiu, desde que existem corpos físicos com volumes e pesos... mas o pensamento só surgiu quando Arquimedes estava em sua banheira. Da mesma forma, o fato expresso pelo teorema de Pitágoras sempre existiu em espaços euclidianos (caso eles de fato sempre tenham existido), mas o seu pensamento, a proposição, só passou a existir depois que o teorema foi pensado por Pitágoras e então por muitos outros. Contudo, o fato empírico representado pela lei da alavanca ou o fato representado pelo teorema de Pitágoras, esses fatos duradouros e talvez eternos, não são os portadores da verdade e sim aquilo que é por eles representado em exemplares de pensamentos. Exprimindo isso de forma algo paradoxal: não é verdade que os corpos tinham densidade específica antes de Arquimedes, nem que a soma dos quadrados dos catetos fosse o quadrado da hipotenusa antes de Pitágoras, mas é verdadeiro o pensamento de que os corpos sempre tiveram densidade específica, mesmo antes de Arquimedes, e que a somas dos quadrados dos catetos sempre resultaram no quadrado da hipotenusa. Nenhuma verdade ou falsidade existiria se não existissem mentes para pensá-las. Um pensamento que nunca foi pensado não existe e nem é verdadeiro ou falso. Considere o pensamento “O Colosso de Rodes flutua no Mar dos Sargaços”. Ele certamente nunca foi pensado. Mas ao pensarmos que ele nunca foi pensado já o pensamos, e o pensamos como certamente falso. Mesmo o pensamento “O mundo existiria, mesmo que não existissem mentes para pensá-lo”, só é verdadeiro porque existem mentes para pensá-lo. E se o mundo não tivesse mentes para pensá-lo? Seria então verdadeiro que o mundo existe? Ora, por que não, se acabo de admiti-lo?

Um último candidato a portador da verdade é a crença. “Crença” é um dos termos que possui ambigüidade ato/objeto: de um lado pode designar o ato de crer, de outro, o conteúdo da crença. O candidato plausível para o portador da verdade seria o conteúdo da crença. Mas nesse caso estamos outra vez falando da proposição, pois o conteúdo da crença pode ser interpretado como uma representação psicológica na mente de uma pessoa (equivalente à interpretação psicologista da proposição como exemplar de pensamento), como um objeto abstrato (equivalente à interpretação platonista da natureza da proposição) ou como o tipo de representações psicológicas nas mentes das pessoas (equivalente à interpretação da natureza da proposição como pensamento-tipo).

Uma vez que identificamos o melhor candidato a portador da verdade, podemos passar à questão central sobre a verdade, que é a da escolha da teoria da verdade mais plausível. As duas teorias que apresentarei primeiro — teoria da redundância e teoria pragmática — são improváveis, embora o seu exame nos permita compreender melhor alguns aspectos do problema. As duas outras teorias — a teoria da correspondência e a teoria da coerência — são candidatos mais plausíveis. Minha posição final será a favor de uma teoria da correspondência que envolva a coerência como condição de satisfação.

2. Verdade como redundância

A teoria da redundância baseia-se na constatação de que enunciados do tipo “p é verdadeiro” podem ser substituídos por enunciados do tipo “p” sem que nada seja perdido. Eu nada teria acrescentado à minha afirmação “Está chovendo” se tivesse dito “É verdade que está chovendo”, além de uma certa ênfase, de modo que o último proferimento poderia ser substituído por “É... está chovendo” ou “Com efeito, está chovendo”. Assim, o predicado “é verdadeiro” nada parece acrescentar ao conteúdo da asserção. F. P. Ramsey, que foi um dos primeiros a defender a teoria da redundância, considerou o caso da asserção “Tudo o que ele diz é verdadeiro”, em que o predicado “é verdadeiro” não pode ser elidido(2). Mas essa asserção pode ser substituida por “Para todo p, se ele afirma p, então p”, na qual o predicado “é verdadeiro” é eliminado. Ramsey nota que embora “então p” pareça incompleto, querendo dizer “então p é verdadeiro”, isso se deve a uma deficiência da linguagem.

O que dizer de uma teoria como essa? Uma questão prévia é a distinção entre a) a contemplação de uma proposição ou pensamento e b) o ato judicativo, através do qual se atribui valor de verdade à proposição. A comunicação do ato judicativo sobre uma proposição é o que chamamos de “asserção da proposição” ou “pensamento”. Considere a diferença entre as sentenças:

1a. Afirmo que Colombo descobriu a América.
1b. Colombo descobriu a América.

Ambas exprimem o mesmo pensamento ou proposição, que em ambas é afirmado ou asserido. Mas só na primeira a asserção é verbalmente explicitada. Normalmente as asserções são do tipo 1b, mantendo implícito o ato assertivo, que por sua vez exprime um ato judicativo de atribuição de um valor de verdade à proposição expressa. Mas o que 1b significa é “Afirmo (ou afirmamos) que Colombo descobriu a América”.

Considere agora as seguintes sentenças:

2a. Talvez Colombo tenha descoberto a América.
2b. “Colombo descobriu a América” é uma sentença sobre um navegador italiano.

Aqui a proposição ou pensamento é apenas tomada em consideração ou contemplada, não sendo a sua expressão sentencial acompanhada de asserção exprimindo um ato judicativo. Frege tinha um sinal próprio para a asserção: ⊢. Devemos, pois, distinguir entre p e ⊢ p, quando o pensamento expresso por p é asserido ou judicado. O sinal ⊢ significa algo como “Profere-se (ou pensa-se) que é verdadeiro que...”.

Considerando o que dissemos sobre a asserção e o juízo, podemos fazer o seguinte raciocínio. Quando dizemos que “p é verdadeiro” se reduz a “p”, nunca estamos considerando “p” em abstração de sua asserção. “É verdade que Colombo descobriu a América” quer dizer o mesmo que “Afirmo (ou afirmamos) que Colombo descobriu a América”, e não apenas algo como “Talvez Colombo tenha descoberto a América”. Por conseguinte, o que a teoria da redundância realmente nos mostra é que “p é verdadeiro” pode ser reduzido a “(Afirmo (ou afirmamos) que) p” ou, ainda, “(Ajuízo (ou ajuizamos) que) p”. A conclusão a que chegamos é que aquilo que a teoria da redundância evidencia não é que a atribuição de verdade a uma proposição pode ser eliminada, mas que ela pode ser substituída por uma asserção ou judicação de uma proposição. Mas asserir uma proposição é o mesmo que atribuir-lhe publicamente a verdade. E judicar uma proposição é o mesmo que pensar que ela é verdadeira. Donde, a teoria da redundância apenas varre o problema da verdade para debaixo do tapete da asserção. Só parece eficaz devido à propriedade da linguagem de usualmente não asserir nem atribuir verdade às proposições de modo explícito, uma vez que fazemos isso de forma demasiado freqüente. Essa é, aliás, a razão do desconforto com a tradução de “Para todo p, se ele afirma p, então p”. Em sua última ocorrência p deveria aparecer aqui como ⊢ p, ou seja, “p é verdadeiro”. Mas se isso fosse feito então o contra-exemplo se manteria.

3. A teoria pragmática da verdade

A teoria pragmática da verdade sugerida por William James e por outros, se tomada à letra, diz o seguinte(3): uma proposição é verdadeira se houver vantagem prática em sustentá-la. Assim, para James “Deus existe” é uma proposição verdadeira, pois é vantajoso crer em Deus.

Para responder a objeções sobre a ausência de utilidade de proposições teóricas como “Há numerosas explosões de supernovas na galáxia Messier 83”, que por isso deveriam ser falsas, a teoria pragmática pode ser alargada, admitindo-se que além da vantagem prática deva existir uma vantagem cognitiva em se admitir certas proposições. Mesmo assim, a teoria é freqüemente contra-intuitiva: pode ser praticamente vantajosa a manutenção de crenças falsas, e praticamente desvantajosa a adoção de crenças verdadeiras, tanto em um sentido prático como cognitivo. Como escreveu o poeta T. S. Eliot, “human kind cannot bear very much reality”; a mente humana é por natureza voltada para o sucesso no mundo ao seu redor e tende a admitir verdades apenas enquanto elas servem a tal sucesso, de outro modo rejeitando-as através do mecanismos de defesa como o da racionalização. Finalmente, a teoria pragmática têm conseqüências relativistas. Para muitos crer em Deus é vantajoso. Mas para o grupo humano dos ateus é desvantajoso crer em Deus, pois isso comprometeria a liberdade humana com idéias primitivas como as de pecado e danação eterna. Quem tem razão? A teoria pragmática não oferece suporte para uma decisão racional.

A conclusão parece ser a de que a teoria pragmática — ao menos na forma acima exposta — consiste em uma falácia do tipo post hoc ergo propter hoc. Tal teoria confunde a verdade com um efeito freqüente da adoção de idéias verdadeiras, que é a utilidade. Todos concordariam que o conhecimento da verdade freqüentemente é útil, mas dizer que algo é verdadeiro porque é útil é confundir o efeito com a causa.

5. Verdade como correspondência

A teoria correspondencial da verdade é a mais antiga e também a mais plausível. É a única que se encontra dicionarizada. Foi primeiramente proposta por Platão no diálogo Sofista, tendo sido sintetizada por Aristóteles em sua Metafísica sob o famoso dito: “dizer do que é, que é, e do que não é, que não é, é dizer o verdadeiro; dizer do que é, que não é, e do que não é, que é, é dizer o falso”. Durante a Idade Média, Tomás de Aquino, em seu ensaio intitulado Da Verdade, refere-se com aprovação a um tal de Isaac Israeli como tendo afirmado que a verdade é a adequação da coisa ao intelecto (Veritas est adaequatio rei et intellectus). Com isso a formulação aristotélica foi substituida por uma outra muito mais sintética, em que a verdade é a adequação ou correspondência do que pensamos com a realidade.

Os termos da relação expressa na definição podem ser mais precisados. Para tal devemos substituir a palavra “intelecto” por “proposição” ou “pensamento”, ou seja, pelo nome do portador da verdade. E ao invés de coisa é mais correto falarmos de fato pois não dizemos propriamente das coisas que elas são verdadeiras, mas de um complexo que geralmente a inclui como, por exemplo, o estado de coisas ou o fato de que o livro tem capa azul ou de que ele está sobre a mesa. Com isso, a definição correspondencial passa a dizer que a verdade é a correspondência da proposição, do pensamento, com o fato. A identificação entre os predicados “é verdadeiro” e “corresponde ao fato” é evidenciada na seguinte definição:

(Df. C) A proposição de que p é verdadeira = A proposição de que p corresponde ao fato.

Note-se que essa definição é feita utilizando-se os predicados monádicos “...é verdadeira” e “...corresponde ao fato”. Mas eles são abreviações de predicados diádicos que relacionam a proposição p com o fato (homonimamente referido) de que p. Portanto, a definição acima pode ser mais completamente explicitada como:

(Df. Cr) A proposição de que p é verdadeira para o fato de p = A proposição de que p corresponde ao fato de p.

Em um exemplo: “A proposição de que o livro está sobre a mesa é verdadeira para o fato de o livro estar sobre a mesa é a mesma que a proposição de que o livro está sobre a mesa corresponde ao fato de o livro estar sobre a mesa”.

Outra questão é a de uma explicitação adequada do sentido de termos como “correspondência” ou “adequação”. Uma primeira explicitação da noção de correspondência foi proposta por Moritz Schlick, há cerca de um século(4). Schlick sugeriu a existência de um ato de aferição de correspondência, que é um ato verificacional, através do qual se evidencia que o conteúdo de uma hipótese é idêntico ao conteúdo da observação que verifica essa hipótese. Essa identidade de conteúdo é a correspondência. Suponha, por exemplo, que lê em um jornal a frase “Irá fazer bom tempo amanhã”. Amanhã você sai de passeio e é surpreendido por uma tempestade. Você pensa: “a previsão era falsa”. O que você fez? Ora, comparou o conteúdo da previsão com o conteúdo da observação e percebeu que não há a esperada identidade. Então concluiu que a proposição expressa pela sentença “Irá fazer bom tempo amanhã” era falsa.

Buscando ser mais precisos, podemos sugerir que há aqui três momentos a serem idealmente distinguidos: 1.º) o momento de postulação de uma hipótese “?p”, onde p indica um conteúdo proposicional e “?” é o operador que indica o caráter hipotético do que cai sob o seu escopo. 2.º) o momento da observação (ou das observações), “Oq”, onde O é o operador que indica o caráter observacional do que cai sob o seu escopo. 3.º) o momento de verificação da correspondência, no qual há uma comparação entre a hipótese considerada no momento 1 e o conteúdo da observação considerado no momento 2, ou seja, entre “?p” e Oq. Se uma identidade é verificada, ou seja, se p = q, então podemos concluir “⊢ p”, ou seja, que p é uma proposição verdadeira. Se a identidade é refutada, então concluímos que “⊢ ~p”, ou seja, que p é uma proposição falsa. Ao menos no que concerne a frases observacionais, a idéia de que afirmar a verdade é constatar a correspondência entre o conteúdo de uma hipótese e o resultado de atos observacionais parece correta.

Schlick também sugeriu um procedimento similar para as proposições de ciências formais como a matemática, que são usualmente aceitas como objeto da teoria coerencial. Como eu sei, por exemplo, que a soma dos ângulos de um triângulo deve, em um espaço euclidiano, resultar em 180 graus? Ora, eu comparo o conteúdo dessa hipótese com o conteúdo resultante de uma prova baseada nos axiomas da geometria euclidiana... Essa prova irá dar como resultado que uma tal soma deve resultar em 180 graus.

Essa explicação de Schlick pode ser complementada por outra, qual seja, a noção de isomorfismo estrutural, que foi resgatada na reconstrução feita por Erick Stenius da teoria pictórica da frase desenvolvida por Wittgenstein no Tractatus Logico-Philosophicus(5). A noção de isomorfismo entre os conjuntos A e B, tal como quero definir aqui, exige que 1) os elementos do conjunto A estejam em relação biunívoca com os elementos do conjunto B, 2) que as propriedades dos elementos do conjunto A também estejam em relação biunívoca com as propriedades dos correspondentes elementos do conjunto B, e 3) que as relações entre os elementos do conjunto A também estejam em relação biunívoca com as correspondentes relações entre os elementos do conjunto B. A tudo isso deve ser excluída a exigência de que os elementos e as propriedades ou relações do conjunto A devam ter a mesma natureza que os elementos, propriedades e relações do conjunto B. Assim “a/b” pode possuir isomorfismo estrutural com o fato de que o gato está sobre o tapete, conquanto “a” e “b” tenham correspondência biunívoca respectivamente com o gato e com o tapete, e conquanto a relação “/” entre “a” e “b” também tenha correspondência biunívoca com a relação de “estar sobre” entre gato e tapete.

Aplicando isso à sugestão de Schlick podemos dizer que o conteúdo da observação é idêntico ao conteúdo da hipótese quando os elementos e relações do que é observado têm relação unívoca com os elementos e relações que constituem o conteúdo da hipótese, sejam eles quais forem. Isso explicaria o caso paradigmático de correspondência entre hipóteses e observações, embora existam muitos outros casos que não parecem se apoiar em isomorfismo estrutural, como o de proposições gerais.

Uma questão que aqui se coloca é a de se saber quais são os elementos do conteúdo da observação ou da hipótese. Longe de optarmos por uma solução metafísica como a de Wittgenstein no Tractatus, segundo a qual o mundo tem apenas uma divisão em elementos simples, nós optamos aqui (inspirados pelo Wittgenstein das Investigações) em dividir o mundo de forma múltipla, dirigidos pelo contexto, ou seja, tendo como critério os elementos, propriedades e relações reconhecíveis do ponto de vista das regras do jogo de linguagem no qual a hipótese e a observação são feitas. Por isso, quando digo que o gato está sobre o tapete, pode bem ser que os elementos participantes do conteúdo pensado sejam representações (que não precisam ser naturalistas) do gato e do tapete, e que a relação seja a de estar sobre. Uma análise ulterior é injustificada.

Uma objeção comumente feita à teoria correspondencial é que as proposições só podem ser comparadas com proposições. Quando pretendemos comparar proposições hipotéticas a observações, o que estamos fazendo, na verdade, é comparar proposições hipotéticas a proposições observacionais. Não rompemos, portanto, o círculo da linguagem, o que nos sugere que a verdade deva ser realmente a coerência de nossas proposições umas com as outras. A resposta que correspondencialistas dão a isso é de senso comum. O conteúdo da proposição observacional é, para todos efeitos, a realidade, tal como observada por nós. Como escreveu Schlick:

“É a minha humilde opinião que podemos comparar qualquer coisa com qualquer coisa se assim escolhermos. Você crê que as proposições e os fatos estão demasiado distantes um do outro? São demasiado diferentes? Que há uma misteriosa propriedade das proposições que as impede de serem comparadas com qualquer outra coisa? Isso parece-me mais uma concepção mística?” (6)

4. Teorias coerenciais

As teorias coerenciais da verdade são o mais sério concorrente das teorias correspondenciais. Elas surgiram com filósofos idealistas como Hegel, com a sua afirmação de que a verdade está no todo, tendo sido posteriormente desenvolvidas, tanto por idealistas quanto por empiristas. A idéia básica é a de que uma proposição é verdadeira quando é coerente com o conjunto de proposições que constituem o nosso sistema de crenças. Suponha que alguém nos diz “Ontem à noite eu estava respirando” e “Ontem à noite eu vi um fantasma”. A proposição expressa pela primeira sentença será imediatamente admitida como verdadeira e a segunda como falsa. Chegamos a essa conclusão não porque tenhamos verificado se essas proposições correspondem ou não aos fatos, mas porque a primeira é coerente com o nosso sistema de crenças, enquanto a segunda não.

Mas o que é coerência? Uma maneira fraca de se entender coerência é em termos de consistência. Uma proposição p é consistente com o conjunto de proposições {q, r, s, t} quando, sob a suposição de que essas proposições são verdadeiras, p poderá continuar verdadeira. Isso não seria possível se, por exemplo, p fosse a negação de q, ou se q & r implicassem em não-p.

A teoria coerentista da verdade também se encontra aberta a objeções. Uma delas é a de que segundo ela uma proposição de um conto de fadas pode ser verdadeira, na medida em que é consistente com as outras proposições do conto de fadas. Podemos, além disso, ter vários sistemas conceituais incomensuráveis entre si e, diante de uma proposição que é consistente com um sistema e inconsistente com outro, não podemos decidir se ela é verdadeira ou falsa. Uma solução plausível consiste em negar que existam sistemas conceituais completamente incomensuráveis e considerar o sistema mais abrangente possível (o “sistema da realidade”) como paradigmático, avaliando as proposições com relação a ele.

Exemplos de atribuições de verdade baseadas na coerência com outras crenças são freqüentes nos tribunais, pois poucas vezes o crime é diretamente testemunhado. O seguinte exemplo nos ensina algo sobre os limites da teoria coerencial e sua relação com a teoria correspondencial. Considere o caso verídico do pastor americano David, que após o seu casamento com a senhora Rose, foi internado em um hospital com fortes dores abdominais. Descobriu-se então que a proposição expressa pela sentença “A senhora Rose envenenou o reverendo David” era verdadeira, pois se revelou coerente com as seguintes proposições: q) foi encontrado no sangue de David uma grande quantidade de arsênico; r) a senhora Rose tinha o costume de preparar sopinhas para o seu marido, levando-as até mesmo ao hospital; s) Encontrou-se traços de arsênico na dispensa da casa da senhora Rose. E ainda, t) exumaram-se os corpos dos três primeiros maridos da senhora Rose, todos mortos por causas desconhecidas, com a surpreendente descoberta de uma alta quantidade de arsênico em seus cabelos. A proposição p é tornada verdadeira por sua coerência com as proposições q, r, s..., o que pode ser entendido aqui como consistência. O problema é que as proposições q, r e s são verdadeiras por serem correspondentes à realidade, o que parece mostrar que a teoria da coerência não se sustenta sozinha. A proposição p é verdadeira porque corresponde à realidade, e sabemos disso indiretamente, por sua coerência com outras proposições que correspondem à realidade. Assim, parece que a coerência não é uma coisa independente, mas parte dos meios através dos quais verificamos a correspondência.

Finalmente, se seguirmos aqui o mesmo caminho pelo qual Schlick aplicou a sua versão da teoria correspondencial às ciências formais, concluiremos que no início temos uma hipótese “?p”, cujo conteúdo é comparado com uma conclusão resultante das verificações de q, r, s, e t. Indutivamente, com a conjunção q & r & s & t, concluímos que p. Ora, como p, em resultado das observações, tem um conteúdo idêntico a “?p”, concluímos que p é uma proposição verdadeira. A correspondência é estabelecida indiretamente, via uma coerência da proposição em questão com as proposições observacionais, aquelas que pressupomos como verdadeiras. Vemos que também aqui a coerência é um modo como a correspondência pode ser evidenciada.

Cláudio F. Costa

Notas

  1. G. Frege: “O Pensamento”, trad. port. de “Der Gedanke”, publicado como complemento de C. F. Costa: Ensaios Filosóficos (ed. Tempo Brasileiro: Rio de Janeiro 1999).
  2. Peter Ramsey: “Facts and Propositions”, 1927. Ver também P. F. Strawson: “Truth”, in M. P. Linch: The Nature of Truth (Bradford: Cambridge 2001)
  3. William James: “Pragmatism's Conception of Truth” in, M. P. Linch (ed.): The Nature of Truth (Bradford: Cambridge 2001)
  4. Moritz Schlick: “Das Wesen der Wahrheit nach der modernen Logik”, in Philosophische Logik, Frankfurt 1996.
  5. Ludwig Wittgenstein: Tractatus Logico-Philosophicus. Ver especialmente o artigo de Stenius: “The Picture Theory and Wittgenstein's Philosophical Investigations”, I. Block (ed.): Perspectives on the Philosophy of Wittgenstein (Oxford 1981). Ver também: C. F. Costa: “A Pragmática da Relação Correspondencial”, in C. F. Costa: A Linguagem Factual (Rio de Janeiro 1996).
  6. Moritz Schlick, apud W. P. Alston, “A Realist Conception of Truth”, in M. P. Linch (ed): The Nature of Truth, ibid. Um argumento similar é apresentado por A. J. Ayer em: “Truth”, The Concept of Person and Other Essays (London 1984, p. 186).
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