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Crítica
4 de Março de 2006   Metafísica

Universais

John C. Bigelow
Tradução de Vítor Guerreiro

Em metafísica, o termo “universais” aplica-se a dois tipos de coisas: propriedades (como a vermelhidão ou a redondez), e relações (como as relações de parentesco, ou relações espaciais e temporais). Os universais devem ser entendidos em contraste com os particulares. Poucos universais, ou nenhuns, são verdadeiramente “universais” no sentido de serem partilhados por todos os indivíduos — um universal é caracteristicamente algo que alguns indivíduos podem ter em comum, e outros não.

Os universais foram concebidos como coisas que nos permitem captar intelectualmente uma ordem permanente, subjacente ao fluxo inconstante da experiência. Alguns dos deuses das antigas mitologias correspondem aproximadamente a importantes universais subjacentes — relações sociais, por exemplo, como quando se diz que Hera é a deusa do Matrimónio e se diz que Ares (ou Marte) é o deus da guerra. Muitas tradições do oriente e do ocidente têm lidado com o problema subjacente que gera as teorias de universais; não obstante, o termo “universais” está intimamente ligado à tradição ocidental, e o programa foi na sua maior parte definido pela obra de Platão e Aristóteles.

O termo vulgarmente usado em referência a Platão não é “universais” mas “Formas” (ou “Ideias”, empregue no sentido de ideais e não de pensamentos), remetendo o termo “universais” mais a Aristóteles que a Platão. Outros termos cognatos com universais incluem não só propriedades, atributos, características, essências e acidentes (no sentido de qualidades que uma coisa tem não por necessidade mas por acidente), espécies e géneros, e categorias naturais.

Vários argumentos têm sido avançados para estabelecer a existência de universais, o mais memorável dos quais é o argumento do “um em muitos”. Existem também vários argumentos contra a existência de universais. Há, por exemplo, vários argumentos regressivos derivados do chamado “argumento do terceiro homem” de Aristóteles contra Platão. Outra família de argumentos explora o que é conhecido como Navalha de Ockham: argumenta-se que podemos dizer tudo o que precisamos de dizer, e explicar tudo o que precisamos de explicar, sem recorrer a universais; e se podemos, e se somos racionais, então devemos fazê-lo. Quem acredita na existência de universais chama-se realista, quem não acredita chama-se nominalista.

1. Fontes na matemática e biologia antigas

Platão viu a matemática como um modelo para encontrar “formas” ideais que podem ser captadas pelo intelecto e que vemos imperfeitamente reflectidas no mundo dos sentidos. Também os ideais morais e políticos, pensava Platão, são reflectidos muito imperfeitamente no mundo das aparências. A concepção aristotélica dos universais foi concebida para se ajustar não às matemáticas mas à biologia. Os animais e plantas individuais pertencem a categorias naturais, ou espécies, tais como porcos e couves. Várias espécies diferentes, por seu turno, pertencem a um género.

Os universais impõem uma taxinomia à pluralidade de indivíduos diferentes no mundo. As regularidades no mundo podem então ser entendidas com recurso aos universais, ou espécies, às quais pertencem os indivíduos, explicando por que as porcas nunca dão à luz gatinhos, por exemplo, e por que em geral cada coisa viva gera outras do mesmo tipo.

Platão concebeu os universais como seres transcendentes, ante rem em Latim (“antes das coisas”): a existência de universais não depende da existência de indivíduos que os exemplificam. Esta ideia é natural se o nosso modelo de universais assenta na matemática: as verdades geométricas sobre círculos, por exemplo, não dependem da existência de quaisquer indivíduos que sejam perfeitamente circulares. Aristóteles, ao contrário, defendeu uma teoria de universais como seres imanentes, in rebus (“nas coisas”): não podem existir universais a menos que existam indivíduos nos quais esses universais se exemplificam. Esta é uma ideia natural se o nosso modelo de universais assentar na biologia: uma espécie não pode existir, por exemplo, se não existem animais daquela espécie. Assim, uma das distinções centrais entre o realismo transcendente de Platão e o realismo imanente de Aristóteles é que um platónico admite, e Aristóteles não admite, a existência de universais não exemplificados.

2. Semelhanças e diferenças

Quando uma propriedade é partilhada por dois indivíduos, existe algo que está em ambos ou que é possuído por ambos. Mas é num sentido bastante específico que um universal pode estar “em” dois indivíduos distintos. Uma pessoa individual pode estar “em” dois sítios ao mesmo tempo se, por exemplo, a sua mão está no pote das bolachas e o seu pé na banheira. Mas um universal está “em” indivíduos distintos de tal modo que não significa que uma parte do universal está numa coisa e uma parte diferente do mesmo está noutra. Assim, dizemos que um universal é o tipo de coisa que pode estar inteiramente presente em indivíduos distintos ao mesmo tempo: uma pessoa não pode estar inteiramente presente em dois sítios ao mesmo tempo, mas a justiça pode.

Há quem distinga entre certas propriedades e relações especiais que preenchem os requisitos da etiqueta “universais”, e outras propriedades e relações que não o fazem. Sugere-se que, quando algo é verdadeiro de um indivíduo (quando uma descrição pode verdadeiramente ser predicada de um indivíduo), então há sempre uma “propriedade” que podemos dizer que esse indivíduo tem. Deste ponto de vista, uma “propriedade” é apenas a sombra de um predicado, enquanto um universal genuíno é algo mais. Um universal genuíno tem de ser algo de literalmente idêntico em cada um dos seus exemplos. Em alternativa, os géneros de “propriedades” que são apenas sombras de predicados são por vezes concebidas como construções teóricas (com base na noção de conjunto) de vários géneros, como, por exemplo, se dizemos que a “propriedade” da vermelhidão é o conjunto das coisas vermelhas actuais, ou das coisas vermelhas actuais e possíveis. Neste espírito, é agora prática corrente na matemática usar o termo “relações” para referir simplesmente qualquer conjunto de pares ordenados. Construções em teoria dos conjuntos não são, todavia, universais, ou pelo menos não podem ser confundidas com os universais que são tema dos debates tradicionais.

3. Argumentos a favor e contra

Têm sido apresentados vários argumentos para estabelecer a existência de universais, o mais memorável dos quais é o argumento do “um em muitos”. Apesar de memorável, há pouco consenso sobre como funciona exactamente este argumento. Grosso modo, começa com um apelo ao facto manifesto da recorrência, o facto de que, como se afirma no texto do Eclesiastes (1, 9), “O que foi é o que será, e o que foi feito será feito; e nada de novo há debaixo do Sol”. Há muitas coisas, e, contudo, são todas, num certo sentido, apenas as mesmas coisas uma e outra vez. Deste facto manifesto da recorrência, o argumento pretende derivar a conclusão de que há universais, tal como particulares.

Há também vários argumentos contra a existência de universais. Uma família de argumentos desses deriva do chamado “argumento do terceiro homem”, de Aristóteles, e procura demonstrar que a Teoria das Formas de Platão implica uma regressão infinita inaceitável. Grosso modo, o problema de Platão é que ele precisa que exista uma relação entre a Forma de Homem e os homens individuais para que esta Forma possa ajudar a explicar o que os homens individuais têm em comum. Assim, a teoria parece que exige outra Forma, um terceiro homem, que é o que a Forma de Homem tem em comum com os homens individuais. Isto conduz a uma regressão infinita, de modo que a Teoria das Formas de Platão é inaceitável. Claro que Aristóteles só pretendia demonstrar a inexistência das Formas de Platão, e não dos universais em geral; mas os inimigos dos universais usam frequentemente argumentos relacionados, baseados na regressão infinita, contra a existência de universais de qualquer tipo. Seja o que for a que se chame a relação de exemplificação entre particulares e universais, se isso for concebido como outro universal, então começa-se uma regressão, e isto parece militar contra qualquer teoria dos universais.

Outro argumento contra a existência de universais usa a chamada “navalha de Ockham” — o princípio de que não devemos postular mais entidades quando tudo o que queremos explicar pode ser explicado com menos entidades. Argumenta-se por vezes que tudo o que se pode explicar com universais se pode explicar igualmente bem sem eles. As coisas que superficialmente parecem referir-se a universais, defende-se, podem geralmente ser reformuladas de modos que não fazem qualquer referência óbvia a universais — a referência aos universais pode ser eliminada com paráfrases. Se podemos viver sem universais, então devemos fazê-lo; quando se complementa este argumento ockhamiano com alusões aos fatais conflitos intermináveis e insolúveis entre realistas sobre vários pormenores, fica-se ainda com mais razões contra a existência de universais.

4. Nominalismo e realismo

Durante a idade média europeia, os universais desempenharam um papel fulcral na economia intelectual: muitas questões versavam sobre o que ficou conhecido como o problema dos universais. Notoriamente, um comentário de Boécio ao Isagoge, de Porfírio, que por sua vez foi concebido como uma introdução às Categorias, de Aristóteles, definiu muito rápida mas vívida e apelativamente a que veio a ser tomada como a questão compulsiva na busca medieval do conhecimento: saber se os géneros e as espécies são substâncias ou entidades puramente mentais; substâncias corpóreas ou incorpóreas; separadas das coisas percepcionadas pelos sentidos ou ínsitas nelas (Boécio c.510; Spade 1994). Para muitos, o problema inicial não era decidir se os universais existem, mas escolher entre Platão e Aristóteles e então afinar detalhes posteriores.

Na idade média tardia, contudo, um número crescente de filósofos e teólogos ficaram cada vez mais impressionados com argumentos contra a existência de universais. Começaram a adoptar a posição chamada “Nominalismo” que se opunha às várias formas de realismo platónico e aristotélico. De acordo com nominalistas como Abelardo e Ockham, a única coisa que indivíduos distintos partilham é um nome comum, uma etiqueta que escolhemos aplicar a cada um desses indivíduos e não a outros.

As teses nominalistas foram repetidas por muitos dos paladinos das ciências modernas à medida que iam surgindo, no fim da idade média. Era normalmente tomado por garantido que todas as coisas são meramente particulares. Uma vez que era tomado por garantido, não estava aberto a debate, e então o problema dos universais, explicitamente identificado como tal, foi remetido para os bastidores da discussão científica e filosófica. Por exemplo, um arqueólogo das ideias pode argumentar que, em Kant, o problema dos universais está de facto vivo e opera vigorosamente em segundo plano, desempenhando um papel nas discussões sobre praticamente cada tópico que surge. Não obstante, o problema dos universais, sob essa designação ou qualquer equivalente óbvio, não aparece explicitamente no programa de Kant. Kant fala de intuições e conceitos, de tal modo que mantém alguma relação com o velho problema dos particulares e universais, mas mudou algo além de meras etiquetas. Desde então o problema dos universais recebeu pouca atenção ao longo de um segmento considerável da história da filosofia, incluindo a filosofia francesa e alemã do século XX.

5. Frege exuma os universais

No século XX, o problema dos universais reapareceu sob a sua designação familiar, acompanhado mais ou menos pelas mesmas ilustrações explicativas usadas por Platão e Aristóteles. Este renascimento ocorreu na tradição da filosofia analítica, notoriamente nos trabalhos de Frege, Russell, Wittgenstein, Quine e Armstrong.

Um novo impulso à teoria dos universais pode reportar-se ao trabalho pioneiro de Frege sobre a natureza dos números naturais na sua Grundlagen der Arithmetik (Fundamentos da Aritmética) (1884). Como para Platão, também para Frege, Russell e outros recentemente, os avanços na matemática foram a origem de uma atenção filosófica ao problema dos universais. A análise de Frege dos números naturais (1,2,3...) seguiu três fases bastante diferentes.

Na primeira fase da sua análise dos números, Frege introduziu a ideia de que quantificar indivíduos envolve essencialmente não a atribuição de propriedades a indivíduos mas, ao invés, a atribuição de propriedades a propriedades. Para ilustrar: quando lhe colocam a pergunta “Quantas coisas estão sobre a mesa?”, Frege repara que há várias respostas diferentes possíveis, como, por exemplo, 1) “Dois baralhos de cartas de jogar” ou 2) “104 cartas”. Os operadores verofuncionais metafísicos identificados por Frege para estas duas respostas são 1) que a propriedade de ser um baralho de cartas sobre a mesa é uma propriedade que tem a propriedade de ter duas exemplificações, e 2) que a propriedade de ser uma carta sobre a mesa é uma propriedade que tem a propriedade de ter cento e quatro exemplificações. Em geral, os números naturais quantificam indivíduos apenas por meio da sua contribuição para propriedades de segunda ordem, ou propriedades de propriedades, nomeadamente propriedades da forma “ter n exemplificações”. Como Kant, Frege fala em conceitos (Begriffe) em vez de “universais”. No entanto, os conceitos de Frege não são, definitivamente, episódios mentais privados; são totalmente independentes da mente, mais como as Formas de Platão do que como os universais aristotélicos.

Na segunda fase da sua análise dos números, Frege dá um novo rumo à teoria dos universais. Argumenta que a natureza dos universais, ou conceitos, é tal que torna impossível em princípio referir universais através de qualquer nome ou descrição. Assim, por exemplo, ao dizer “Sócrates é sábio”, o universal exemplificado por Sócrates é algo expresso por todo o arranjo de símbolos nos quais “Sócrates” está incluído de modo a expressão “Sócrates é sábio”. Suponhamos que se tenta nomear este universal com o nome “sabedoria”. Então, compare-se “Sócrates é sábio” com a concatenação de nomes — “Sócrates sabedoria”. O mero nome “sabedoria” deixa claramente de fora algo que estava presente na atribuição da sabedoria a Sócrates. Portanto, um universal não pode ser referido por um nome.

Assim, uma propriedade apenas pode ser expressa por um predicado, e nunca por um nome ou qualquer dispositivo lógico para referir indivíduos. De facto, se desejarmos atribuir a existência aos universais, não o podemos fazer com recurso ao mesmo tipo de dispositivo (quantificador de primeira ordem) que é usado para atribuir a existência a indivíduos. Assim, por exemplo, de “Sócrates é sábio” podemos inferir “Existe algo que é sábio”, e “Existe algo que é Sócrates”:

(∃x) (sábio (x)), e
(∃ x) (x = Sócrates).

No entanto, podemos inferir que “Existe algo que Sócrates possui”, ou que “Existe algo que é a sabedoria”:

(∃x) (possui (Sócrates, x)), ou
(∃ x) (x = sabedoria).

Frege admite, contudo, que se atribua existência a universais, usando dispositivos lógicos, chamados quantificadores de segunda ordem, os quais introduziu na sua Begriffsschrift (1879). Ou seja, podemos inferir de “Sócrates é sábio” que “Existe um de algum modo tal que Sócrates é esse de algum modo”:

(∃f) (f(Sócrates)).

Mas apesar de existir um “de algum modo” que Sócrates é, isto não implica que existe algo que é o “de algum modo” que Sócrates é: os universais (conceitos) apenas podem ter existência de segunda ordem, e não existência de primeira ordem.

Para Frege, quantificar coisas envolvia essencialmente a atribuição de propriedades a propriedades. Então o tipo de coisas a serem atribuídas não é o tipo de coisas que podem ser nomeadas. No entanto, argumenta Frege, os números podem ser nomeados — os números são indivíduos abstractos, diz, objectos e não conceitos. Pelo que a terceira fase da análise de Frege dos números consiste na tentativa de encontrar indivíduos — objectos — que pudessem ser identificados com os números. Foi esta fase da análise que resultou na emergência da moderna teoria dos conjuntos. Para cada propriedade, argumentou Frege, há um indivíduo correspondente: a extensão daquele universal, o conjunto de todas as coisas (ou de todas as coisas actuais e possíveis) que exemplificam aquele universal. Então, por exemplo, correspondendo à propriedade de ser uma propriedade com duas exemplificações, haverá um conjunto de conjuntos que possuem dois elementos. A matemática moderna escolheu candidatos diferentes para identificar com os números naturais, mas seguiu a linha de Frege, no que respeita à estratégia lata de identificação de números, e funções e relações, através de conjuntos.

O legado de Frege transformou significativamente o programa para qualquer teoria de universais que, como Platão, aspire a fazer jus à matemática. Deixa três vias abertas à exploração. Uma via é a que foi seguida por Quine (1953, 1960), de permitir a existência de conjuntos mas não a de quaisquer outras coisas nomeáveis que pudéssemos chamar “universais”. Outra via consiste em permitir a existência de coisas nomeáveis além de conjuntos: esta foi uma via seguida, por exemplo, por Armstrong (1978). Uma terceira via permite também a importância irredutível de quantificações de ordem superior (Boolos 1975; Bigelow e Pargetter 1990)).

John C. Bigelow
Publicado em Routledge Encyclopedia of Philosophy, org. Edward Craig (Londres: Routledge, 1998)

Referências e leitura complementar

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ISSN 1749-8457