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Crítica
3 de Janeiro de 2021   Filosofia

MFF epistémico

Rachel Fraser
Tradução de Desidério Murcho
Conspiracy Theories
de Quassim Cassam
Cambridge: Polity Press, 2019, 140 pp.

A Lot of People are Saying
de Russell Muirhead e Nancy L. Rosenblum
Princeton: Princeton University Press, 2020, 232 pp.

A epistemologia moderna começa com uma teoria da conspiração. “Irei supor”, escreve Descartes, “que um génio maligno, poderoso e astuto, tudo fez para me enganar […] Irei pensar que o céu, o ar, a terra, as cores, formas, sons e todas as coisas externas não passam de sonhos que o génio maligno maquinou como armadilhas para o meu juízo”. O projeto de Descartes é descobrir se podemos saber que esta teoria da conspiração é falsa; conclui que podemos, mas só porque podemos saber que Deus existe. Aqueles de nós que são ateus não podem ser assim tão otimistas.

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Dúvidas?

A vida contemporânea confronta-nos com teorias da conspiração de um tipo diferente: os seus génios malignos são o Deep State, a instituição médica e George Soros. E recebem abordagens muito diferentes em dois livros recentes. O primeiro, Conspiracy Theories, da autoria do filósofo Quassim Cassam, que ganhou proeminência com obras sobre Kant; o segundo, A Lot of People are Saying, dos especialistas em ciência política Russell Muirhead e Nancy Rosenblum, conhecidos sobretudo devido ao trabalho que desenvolveram sobre o sectarismo.

O livro de Cassam tem quatro partes: ele quer entender o que são as teorias da conspiração, por que razão acreditam as pessoas nelas, e como pôr-lhes cobro. O tom é de mestre-escola: “ler livros sérios”, comenta sem ironia, “é um passatempo de minorias”. Como acontece na maior parte dos casos, a máscara aristocrática escorrega-lhe aqui e ali: os defensores de teorias da conspiração são “idiotas”, “urram”, “vociferam” e têm “obsessões estranhas e o hábito de saltar para conclusões com base em provas muitíssimo frágeis ou inexistentes”. Os seus exemplos recorrentes de teorias da conspiração têm um sabor clássico: giram em torno do assassinato de JKF, da morte da Princesa Diana e do colapso das Torres Gémeas.

Muirhead e Rosenblum estão mais atentos às texturas do conspiracionismo contemporâneo, ao que chamam “conspiração sem a teoria”. O “novo conspiracionismo” tem muito em comum com a mentalidade conspiratória clássica: pressupõe-se nos dois casos que “as coisas não são o que parece: há forças malévolas em ação para lá da superfície”. E também nos dois casos há um ar escatológico: “o momento crítico para salvar as coisas é agora”. Porém, diferem em caráter intelectual. Enquanto os defensores de teorias da conspiração da velha guarda simulavam investigar as coisas, os seus descendentes contemporâneos limitam-se a… dizer coisas. “A eleição foi manipulada”, assevera Trump. Quando se lhe pede que justifique a afirmação, os seus proponentes passam imediatamente para os boatos: “não falta quem o afirme”. Ao passo que os conspiracistas da velha guarda arregimentavam o que se parece muito com provas, os recursos constantes da nova escola são a repetição e o equívoco armadilhado. Começam com uma asserção simples: “Obama não nasceu na América”. Quando se lhes pede provas, dão o salto: “Não digo que seja realmente verdadeiro. Tudo o que estou a dizer é que não podemos ignorá-lo. É preciso ver se é verdadeiro.” Esta manobra é inteligente: se nem sequer fingimos que temos provas, nada resta que o nosso oponente possa desmascarar. A finíssima análise de Muirhead e Rosenblum faz as instruções de Cassam sobre como lidar com os defensores de teorias da conspiração — comprometer os fundamentos intelectuais da teoria — parecer pitorescas, na melhor das hipóteses.

Tanto um livro como o outro afirmam que as teorias da conspiração têm de ser vistas como artefactos políticos, e não como meros quebra-cabeças epistemológicos. Mas os seus diagnósticos políticos diferem quanto ao temperamento e sofisticação. Para Cassam, as “teorias da conspiração são em primeiro lugar, e antes de tudo, formas de propaganda política. São jogadas políticas cuja verdadeira função é promover um objetivo político”. Esta função política é, afirma Cassam, uma parte crucial do que distingue as Teorias da Conspiração (com maiúsculas) propriamente ditas das teorias corriqueiras que, por acaso, são sobre conspirações. Acreditar que Guy Fawkes tentou fazer explodir o parlamento, ou que os operativos do Al-Qaeda derrubaram as Torres Gémeas não faz de alguém um defensor de teorias da conspiração.

Cassam sublinha corretamente que uma teoria pode funcionar como propaganda, independentemente de os seus proponentes acreditarem nela. Porém, mal isto se torna claro, torna-se difícil ver a diferença funcional entre a afirmação verdadeira de que o Al-Qaeda derrubou as Torres Gémeas (o que não é uma teoria da conspiração) e a afirmação fantasiosa de que o ataque veio de dentro (uma teoria da conspiração). Ambas as afirmações foram usadas para apoiar objetivos políticos, e a primeira até com mais sucesso do que a segunda (veja-se o Afeganistão). Por isso, o que impede a primeira de ser propaganda política? Não pode ser a sua verdade: as afirmações verdadeiras atuam muitas vezes como propaganda — afinal, todas as vidas contam. Cassam ensaia um remendo: as Teorias da Conspiração propriamente ditas diferem das teorias acerca de conspirações não por terem uma função política per se, mas por serem “essencialmente” políticas; ao contrário de meras teorias sobre conspirações, o propósito político de uma Teoria da Conspiração é a sua razão de ser. Isto é baralhar as coisas deliberadamente, ou é o máximo da ingenuidade liberal: nenhum entendimento decente até da mais verídica retórica posterior ao ataque de 11 de Setembro poderia entendê-la senão como “essencialmente política”.

Os especialistas em ciência política são melhores na política. Muirhead e Rosenblum consideram que a nova retórica conspirativa tem duas funções nucleares, centrando-se ambas na deslegitimação das instituições que “tornam o governo democrático e a política possíveis”: a produção de conhecimento e os partidos políticos. A primeira ideia é recorrente no comentário político, e tornou-se praticamente irresistível com o infame comentário de Michael Gove de que “o povo britânico está farto de especialistas”. O populismo epistémico fingido de Gove tem sido uma bonança para os tecnocratas reacionários em picas para fazer do público ignorante uma patologia e para impor um controlo elitista nas redes sociais. Muirhead e Rosenblum são mais ambivalentes. Veem claramente que “o conhecimento especializado é essencial para a democracia”, mas com igual clareza consideram que isso é um desafio à democracia porque levanta o “espetro do governo de especialistas”. Citam com aprovação Albert Einstein: “Temos de levar os factos da energia atómica para a praça pública”.

A atitude do novo conspiracionismo para com o conhecimento especializado é mais corrosivo do que o dos seus predecessores. As velhas narrativas da conspiração eram contrárias ao “senso comum”, mas tinham uma estabilidade e profundidade suficientes, o que permitia que a crença nessas contranarrativas simulasse o conhecimento genuíno, pagando por isso o tributo tépido, próprio de toda a imitação. O novo conspiracionismo visa confundir e desorientar, e não dar estabilidade: não pretende imitar o conhecimento e não lhe paga qualquer tributo. O objetivo não é contestar as opiniões que devem contar como conhecimento, ou quem o tem, mas algo muitíssimo mais radical: abolir o conhecimento como ideal epistémico.

A segunda ideia de Muirhead e Rosenblum — que o conspiracionismo tem como alvo os partidos políticos — é menos bem conhecida do que a primeira. Que os partidos políticos são essenciais para a democracia poderá parece improvável. Era famosa a hostilidade dos “Fundadores” da América com respeito ao partidarismo, e o progressivismo do século XIX tardio via os partidos como “depravadores do espírito democrático”. Hoje, os agentes políticos “pragmáticos” criticam rotineiramente os partidos por serem “fontes desnecessárias de impasse, obstáculos que impedem que se faça coisas”; os seus gritos de guerra são “é preciso consertar isto” ou “e que tal limitarmo-nos a ser realistas e resolver o problema?”

Muirhead e Rosenblum não são ingénuos idealistas: sabem que os partidos políticos são frequentemente facciosos e cheios de vontade de poder. Apesar disso, desempenham um papel democrático crucial, pois dão corpo à ideologia de oposição legítima no seio do frenesi da luta política; assim, no nosso contexto político, atacar a instituição partidária é atacar a possibilidade de oposição legítima ao governante. Sem partidos políticos, defendem Muirhead e Rosenblum, a democracia assume um contorno radicalmente antipluralista: “O único povo homogéneo e “genuíno” apoia o líder sem o partido como instituição intermediária”. Os partidos são, pois, apesar de todos os seus defeitos, os fiadores improváveis do pluralismo político: ao mediar entre populaça e governo, “traduzem o pluralismo da sociedade num conflito político organizado”. Sem uma instituição que leve a cabo esta tradução, o conflito político torna-se ilegível exceto como sedição. Separar a traição do conflito político é fundacional na política democrática; e os partidos atuam como um calço, separando a primeira do segundo. Tornam possível a oposição a um regime sem que sejamos transformados em traidores. O conspiracionismo contemporâneo tenta desfazer esta separação — “Ponham-na atrás das grades”, afirma.

***

Quando comecei a ler sobre teorias da conspiração, desatei a perguntar aos meus amigos se acreditavam em algumas. A maioria disse que não (apesar de serem frequentes as exceções com respeito à tese de que Jeffrey Epstein foi vítima de homicídio). “Conheces então alguém que acredite em teorias da conspiração?”, perguntava eu. Uma vez mais, a maior parte das respostas foi que não, e quando era que sim, era geralmente devido a algum colega de escola, ou devido aos seus pais. Estas respostas têm o mesmo padrão das respostas a outra pergunta: “Conheces alguém que tenha votado a favor do Brexit?” (A minha resposta: sim, o meu pai, apesar de ele não acreditar em teorias da conspiração.) Tal como as pessoas que votaram a favor do Brexit, também os partidários de teorias da conspiração tendem a não estar nos meus círculos sociais; e tal como os primeiros, as pessoas do meu círculo social pensam muitas vezes que os partidários de teorias da conspiração são estúpidos. No capítulo sobre o que faz as pessoas acreditar em teorias da conspiração, Cassam não chega a dizê-lo. Mas sugere-o fortemente.

Cassam considera várias explicações da crença em teorias da conspiração. Talvez a culpa seja dos vieses cognitivos — tendências estáveis para funcionar cognitivamente de maneiras que parecem irracionais. Cassam esboça três em particular: o viés da intencionalidade, que nos predispõe contra a ideia de que o que aconteceu foi meramente acidental, o viés da confirmação, que nos predispõe a ignorar as provas contra as nossas perspetivas, e o viés da proporcionalidade, que nos faz pensar que “grandes” acontecimentos precisam de “grandes” causas. Esta história harmoniza-se bem com algumas teorias da conspiração, como as que dizem respeito ao homicídio de JFK — é demasiado significativo para ser o trabalho só de uma pessoa! — e o desaparecimento do voo 370 das Linhas Aéreas da Malásia — não pode ter-se limitado a acontecer! Mas são menos vocais com respeito a coisas como a pizzagate, a teoria viral de 2016 que ligava uma obscura pizzaria de Washington D.C. a Hilary Clinton a uma rede de sexo com menores. Mas Cassam é cético quanto às explicações da crença em teorias da conspiração que se centram em vieses cognitivos, por uma razão diferente: “os vieses cognitivos são universais — afetam-nos a todos — mas a crença nas teorias da conspiração não é universal”. Não é claro que o universalismo quanto aos vieses cognitivos de Cassam seja partilhado por quem trabalha em ciências da cognição: há muita investigação sobre a maneira como a suscetibilidade aos vieses cognitivos varia entre indivíduos (a idade, por exemplo, é aparentemente um fator de risco).

A explicação preferida de Cassam da crença conspirativa não se harmoniza bem com o seu professado universalismo. Ele apela a uma “mentalidade conspirativa”: uma mentalidade que “nos predispõe a acreditar em teorias da conspiração”. Esta mentalidade, por sua vez, é explicada em termos de ideologia: as pessoas aceitam as teorias da conspiração que se harmonizam com os seus perfis políticos prévios. (Os centristas, insiste ele, acreditam em menos teorias da conspiração do que as pessoas que se situam na extrema esquerda ou na extrema direita; talvez os centristas não tenham ideologia.) O pacote (“ideologia”) sugere uma linhagem intelectual que é mais Althusser do que Tversky e Kahneman, mas o conteúdo propriamente dito da perspetiva está cheio de ciências cognitivas. Quem faz ciência política empírica há muito que se confrontou com as consequências daquilo a que chama cognição com motivação política — acontece que, por exemplo, os liberais resolvem melhor problemas de matemática quando a solução apoia o controlo de armas, e pior quando milita contra isso. O apelo de Cassam à ideologia parece-se muitíssimo com um apelo à cognição com motivação política, que por sua vez se parece muitíssimo com um viés cognitivo. Mas suponha-se que esta explicação está correta e que os vieses são, como Cassam sugere, universais. Nesse caso, se uma pessoa não aceita uma teoria da conspiração, é provável que isso não seja porque ela é, como Cassam sugere, um paradigma de virtude intelectual. É porque a sua própria ideologia vê com benevolência a autoridade política.

Cassam dá muito peso à descoberta de que a crença numa teoria da conspiração é um bom previsor da crença noutras. Esta tendência é tão forte, relata Cassam, que

as pessoas que subscrevem várias teorias da conspiração não só têm maior probabilidade de subscrever outras teorias da conspiração sem relação com as primeiras, como também estão dispostas a aceitar teorias contraditórias. As pessoas que acreditam que a Princesa Diana ainda está viva (e que, por isso, simulou a sua própria morte) têm uma probabilidade significativamente maior de acreditar que foi assassinada (e que, por isso, está morta) por inimigos do pai do seu namorado, Mohommad al-Fayed. Quanto mais as pessoas acreditam que Osama bin Laden já estava morto quando as forças especiais americanas invadiram as suas instalações […] mais provável é que acreditem que ele ainda estava vivo.

Isto parece uma acusação devastadora da mentalidade conspirativa. Em particular, para um filósofo, fazer notar que uma pessoa tem crenças contraditórias é uma valente bofetada; uma prova decisiva de irracionalidade sem remédio. (Vão buscar os tecnocratas!) O problema é que está longe de ser claro que Cassam tenha boas provas a favor destas teses.

Ele cita apena a um artigo de 2012 da Social Psychological and Personality Science. Pediu-se a 137 estudantes de graduação para ordenar afirmações sobre a morte da Princesa Diana (“Operativos não autorizados dos serviços secretos britânicos mataram-na”, “Ela simulou a sua própria morte”, etc.) numa escala de sete pontos, de 1 (“discordo fortemente”) a 7 (“concordo fortemente”). Cassam não discute o artigo detalhadamente, apesar de repetir ocasionalmente as suas expressões belicosas quase literalmente. Dada a tese de Cassam, pensei que o artigo apresentasse dados que mostrasse que alguns estudantes responderam com pelo menos um “5” (“concordo em certa medida”) a pelo menos duas teorias incompatíveis.

Mas não faz tal coisa. O artigo não inclui os dados brutos da experiência, de maneira que é preciso ler nas entrelinhas. O que o artigo faz é mostrar — na minha leitura cuidadosa, mas decididamente não especializada — que há uma correlação entre dar uma classificação acima da média a uma teoria da conspiração sobre a morte de Diana e dar uma classificação também acima da média a outras teorias sobre a sua morte, mesmo que essas teorias da conspiração sejam incompatíveis. Talvez se pense “bem, isso parece terrível!” Mas não é. A classificação média para muitas das teorias das conspiração foi abaixo de 3 (“discordo em parte”). De modo que um participante poderia dar uma classificação acima da média a essas teorias dando-lhes apenas uma classificação de 3 ou 4, ou seja, dizendo que “discordo em parte” da teoria, ou que não tinham qualquer opinião. Dado o que o artigo de facto nos diz, não se consegue excluir que a descoberta mais importante foi o facto de alguns graduandos discordarem em parte tanto da tese de que Diana simulou a sua própria morte como da tese de que os serviços secretos a mataram. Isto, é claro, não é uma boa base para afirmar que quem acredita em teorias da conspiração gosta tanto de intriga que não liga às contradições. Aparentemente, pois, não é só quem acredita em teorias da conspiração que tende a fazer afirmações grandiosas com base em “provas frágeis ou inexistentes”.

Tanto Cassam como Muirhead e Rosenblum terminam os seus livros esboçando estratégias para contrariar o conspiracionismo; ambos sugerem soluções que misturam o epistémico e o político. Cassam oferece uma solução tripartida. Primeiro, temos de usar “argumentos e provas” para refutar as teorias da conspiração. Segundo, temos de educar as crianças: dando-lhes “competências de pensamento crítico e virtudes intelectuais” podemos inoculá-las contra o conspiracionismo. Terceiro, temos de desmascarar a natureza propagandista das teorias da conspiração. Ao fazer notar, por exemplo, as associações antissemitas de uma teoria, podemos “envergonhar e constranger as pessoas, de modo a não namorarem essas teorias”. Estas estratégias, ainda que em simultâneo, poderão não funcionar contra partidários integrais de teorias da conspiração, admite Cassam, mas poderão evitar que quem tem curiosidade sobre elas se torne extremista. As recomendações constituem uma leitura reveladora: apesar de Cassam insistir que entende as teorias da conspiração em termos políticos, o antídoto que propõe é duas partes epistemologia e uma parte política. Ele insiste em considerar a virtude intelectual a receita para o anticonspiracionismo, apesar de o seu próprio diagnóstico sugerir que a ideologia, e não as provas, é o verdadeiro motor do anticonspiracionismo. Mas dada a perspetiva magra e vingativa da política por si oferecida — uma política cujos horizontes são a vergonha e o embaraço — devemos talvez ficar gratos pela epistemologia.

Tanto Conspiracy Theories como A Lot of People are Saying desdenham da conceção “romântica” dos partidários das teorias da conspiração, que, na formulação de Muirhead e Rosenblum, os apresenta como pensadores críticos e o “conspiracionismo como uma disposição cética”. Mas há semelhanças desconcertantes entre quem insiste que “não podemos excluir” que a eleição foi manipulada e um graduando dominado e abalado com a observação de Descartes de que o céu, o ar e a terra poderão ser sonhos tramados por um génio maligno.

O ceticismo cartesiano clássico mistura dois impulsos diferentes que é frequente não se distinguir. Para compreender o conspiracionismo contemporâneo é preciso separá-los. As primeira característica do cartesianismo é a mais conhecida e óbvia: uma espécie de paranoia disciplinada, uma recusa em aceitar que as provas realmente garantem o que parece que mostram. Sim, diz o cético cartesiano, parece-me que tenho mãos, mas as coisas poderiam ter a mesma aparência para um ser sem mãos. Sim, diz o partidário da teoria da conspiração, o certificado de nascimento parece mostrar que Obama nasceu no Havai, mas as coisas poderiam ter essa aparência apesar de ele não ter nascido em tal sítio. E assim por diante.

O segundo impulso cartesiano é mais difícil de ver. “Há alguns anos”, começam as Meditações, “fiquei impressionado com a quantidade de coisas falsas em que eu acreditava”. A solução de Descartes é “demolir” as suas opiniões: irá desfazer-se das suas opiniões, para ficar só com as que encerram certeza. Quando ele demole as suas opiniões, livra-se de todas as suas opiniões falsas, sim, mas arrisca-se a perder também as verdadeiras.

Tornemos isto vívido. Suponha-se que o leitor vai decidir com que géneros de crenças irá acordar amanhã. A primeira opção é magra: não terá crenças falsas, mas também não terá crenças verdadeiras. A segunda é abundante: terá cem crenças falsas, mas cento e uma verdadeiras. A escolha é difícil. Mas, se a isso fosse obrigada, eu escolheria a opção da abundância: prefiro ter algumas crenças verdadeiras a nenhuma, ainda que o preço da crença verdadeira seja a falsidade. (Se a água que bebo estiver contaminada com chumbo, prefiro ter esta crença a não a ter, ainda que o preço seja acreditar também em fantasmas.) O espírito das Meditações é muito diferente: o horror que Descartes tem da crença falsa pesa mais do que a promessa de crenças verdadeiras; para o cartesiano, evitar crenças falsas é o objetivo mais importante. Pondo as coisas de outra maneira, Descartes favorece uma epistemologia que tem uma extrema aversão ao risco, na qual as crenças falsas constituem o risco a evitar. Esta aversão ao risco é a segunda componente do ceticismo cartesiano.

O conspiracionismo contemporâneo junta a paranoia cartesiana com uma estrutura passional nada cartesiana: o medo de ficar de fora (MFF) epistémico. O partidário contemporâneo das teorias da conspiração tem horror não à crença falsa — com respeito às quais tem uma atitude descontraída — mas à possibilidade de ficar de fora das verdadeiras. A perspetiva de acreditar falsamente que a família real matou a princesa Diana não é preocupante. O que atormenta o conspiracionista é a perspetiva de não acreditar que a família real matou Diana, caso isso acabe por se revelar verdadeiro.

É o medo epistémico de ficar de fora mais irracional do que a aversão cartesiana ao risco? Serei irracional quando prefiro a opção da abundância à magra? William James defendeu que estas preferências estão para lá do juízo racional; são apenas, ao invés, expressões da nossa “vida passional”. Se tenho um gosto pela verdade que Descartes não tem, e se ele tem um horror à falsidade que não me dá qualquer motivação, isto não é uma questão de racionalidade, tal como o não é o facto de o leitor preferir gelado de baunilha a gelado de chocolate, ao contrário de mim.

Se James tiver razão ao pensar que a aversão ao risco é uma questão de gosto e não de compulsão racional, então não é obviamente irracional acreditar que a família real matou Diana, com base em provas extremamente parcas. Se o pior medo de uma pessoa for ficar de fora quanto a crenças verdadeiras, então dizer-lhe para acreditar apenas em afirmações a favor das quais tenha boas provas é inútil. Claro, se o leitor só acreditar naquilo a favor do qual tem boas provas, terá menos probabilidade de ter crenças falsas. Mas também irá ficar de fora de muitas crenças verdadeiras. Por outras palavras: para quem tem uma atitude de conspirador quanto ao risco epistémico, acreditar em harmonia com as provas seria em si irracional, tal como seria irracional pedir um gelado de baunilha se o que o leitor realmente quer é o de chocolate. Quem pensa que os partidários de teorias da conspiração são demasiado crédulos pensa que eles sobrestimam a força das provas a favor das suas teorias. Mas isto não tem de ser assim: talvez ajuízem corretamente que as suas provas são fracas, mas considerem que mesmo as provas fracas fazem uma crença ser algo em que vale a pena apostar.

O verdadeiro problema com o MFF epistémico não é o facto de ser irracional per se, mas o facto de ser inadequado para o que se faz falta a um cidadão democrático. A democracia exige que os seus cidadãos operem com algum tipo de realidade em comum. Mas a tendência de quem tem mais medo de ficar de fora com respeito à verdade do que de ter crenças falsas é quase invariavelmente na direção de uma espécie de fragmentação caleidoscópica; afasta-nos de uma perspetiva estável e estabelecida. Mas isto é um anátema para o temperamento democrático: para que tenhamos uma realidade em comum — e, por isso, a chave da deliberação coletiva — é preciso que essa realidade tenha alguma estabilidade e coerência. Mas, crucialmente, esta pressão na direção da estabilidade e da coerência não é exercida por quaisquer regras mentais atemporais, mas por uma forma de vida na qual fomos lançados pela história. Vivemos em circunstâncias que não foram escolhas nossas. A tarefa da política democrática é fazer quem foi lançado nesta forma de vida sentir que a sua contingência é uma dádiva, e não um fardo.

Se for correta a minha leitura do conspiracionismo como um sintoma de calibragem passional, lutar contra as teorias da conspiração tem de visar uma reforma do sentimento. Muirhead e Rosenblum parecem concordar: o apego dos cidadãos pela democracia tem de ser fortalecido. A receita deles tem duas partes. Começam por dar detalhes sobre as maneiras como os agentes políticos de elite, ao longo da última década, se tornaram cúmplices do conspiracionismo. Por exemplo, em 2015, alguns texanos começaram a acreditar que o exército norte-americano planeava uma invasão do estado. O governador daquele tempo, Greg Abott, nada fez para neutralizar o pânico; ao invés, deu à Guarda Estadual do Texas a tarefa de acompanhar a situação. Os autores contrastam esta cumplicidade com o que denominam “dizer a verdade à conspiração”. O exemplo que escolheram é John McCain que, num comício durante a corrida presidencial de 2008, respondeu à insistência de uma apoiante de que Obama não era de confiança porque era árabe dizendo — apesar dos protestos dos seus próprios apoiantes — “Não, senhora; não, senhora. Ele é um homem decente de família, um cidadão que acontece ter comigo algumas discordâncias com respeito a questões fundamentais”. A resposta é algo desconcertante — não podem os árabes ser homens decentes de família? — mas corajosa e animadora, apesar disso, e o espírito nela presente harmoniza-se bem com a análise mais lata que o livro oferece do partidarismo como garantia de pluralismo.

Mas falar a verdade à conspiração é só uma parte da solução: para Muirhead e Rosenblum, a ideia de que a descrição precisa sem ação política poderá ser suficiente para neutralizar o conspiracionismo é uma fantasia. O conspiracionismo visa deslegitimar as instituições nucleares da democracia; os seus oponentes, afirmam, têm de fazer mais do que falar: têm de agir de maneira a dar legitimidade a essas instituições, e têm de o fazer “pondo a democracia em prática”.

Porém, pôr a democracia em prática diz respeito, em grande parte, a falar: envolve “uma articulação literal de como cada passo do processo de legislar, levar a tribunal, regulamentar ou investigar seguem processos equitativos. Pôr a democracia em prática envolve atestar o valor destas práticas.” Isto está muito bem desde que se compre a ideia de que as instituições básicas das nossas nações realmente “seguem processos equitativos”, e que o problema é uma questão de comunicação — “articulação” — e não dos próprios processos. Mas isto é complacente. Muitas vezes, o problema de uma instituição — a polícia, o sistema de benefícios — não é o seu funcionamento interno ser justo, mas antes obscuro para quem tenta orientar-se neles. Muitas vezes, o problema é que a própria instituição é tendenciosa, arbitrária e moralizadora. Muirhead e Rosenblum têm razão ao pensar que lutar contra as teorias da conspiração exige uma reconfiguração passional: precisamos de acarinhar a democracia, até de amá-la, e precisamos que as nossas instituições cultivem essas paixões. Mas para que ao pôr a democracia em prática se consiga atingir esta reconfiguração, é preciso mais do que falar às pessoas do que já existe. É frequentemente preciso mudar os factos de que iremos falar.

Rachel Fraser
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