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Crítica
19 de Agosto de 2006   Filosofia política

O argumento epistémico de John Stuart Mill a favor da liberdade de expressão

Desidério Murcho

Na obra On Liberty (1859), John Stuart Mill (1806-73) apresenta vários argumentos famosos e influentes a favor da liberdade de expressão, um dos direitos humanos fundamentais, consagrado no artigo 19.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas. Um dos argumentos de Mill será analisado nesta comunicação. Mill exprime esse argumento do seguinte modo:

“Todo o silenciar de uma discussão constitui uma pressuposição de infalibilidade. Pode-se deixar que a sua condenação assente neste argumento comum, que não é pior por ser comum”. (Cap. 2).

Uma interpretação do argumento aludido é o seguinte:

Se a censura for aceitável, então somos infalíveis.
Mas nós não somos infalíveis.
Logo, a censura não é aceitável.

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Dúvidas?

Mill apresenta vários exemplos históricos com o fito de mostrar que as pessoas mais sábias erram na avaliação de crenças, movimentos e opiniões que lhes parecem obviamente falsos. Assim, Mill defende que não podemos proibir a expressão de qualquer opinião ou crença porque nunca podemos saber de que lado realmente está a verdade. Mill pensa que é na confrontação pública e sem restrições de diferentes ideias, crenças e opiniões que a verdade pode surgir. A defesa da liberdade de expressão de Mill tem este aspecto fundamental: ele acredita no mercado competitivo de ideias, digamos assim, porque encara a discussão pública de ideias como um processo que permite encontrar ideias verdadeiras. Mas Mill é suficientemente sofisticado para não acreditar que o mercado livre de ideias seja uma garantia de que a verdade virá ao de cima, digamos assim; ele sabe que, vítimas de manipulação, preconceito ou outros factores, a discussão pública pode ser muitíssimo pobre e nada nos aproximar da verdade. Contudo, a ideia é que não há alternativa à discussão pública, ainda que não tenhamos ilusões quanto à perfeição deste processo. Pura e simplesmente não há outro melhor. E a discussão pública será tanto mais ineficiente na descoberta de verdades quanto menos ideias diversificadas forem discutidas.

Vou chamar “distanciamento epistémico” à ideia de que somos falíveis e por isso podemos ter crenças e opiniões falsas, mesmo que tenhamos a maior das certezas. O distanciamento epistémico é a capacidade para pôr em causa as nossas próprias crenças. É uma condição fundamental não apenas da procura da verdade mas da nossa própria condição de seres dotados de reflexão. Precisamos de distanciamento epistémico porque precisamos de rever continuamente as nossas crenças, mesmo nas coisas mais banais: pensamos que deixámos a carteira na sala, e afinal descobrimos que a deixámos na cozinha; pensamos que a caça se dirigiu para sul e afinal descobrimos que foi para oeste. Sem distanciamento epistémico, não há seres pensantes — a não ser que sejam omniscientes.

Contudo, se todos estamos prontos a exercer o distanciamento epistémico nas coisas mais práticas da vida, já relativamente a crenças fundamentais há uma enorme resistência ao exercício do distanciamento epistémico. Grande parte das injustiças do mundo tem origem precisamente na falta de distanciamento epistémico. Sem distanciamento epistémico, os seres humanos elegem as suas crenças mais queridas, nomeadamente as que lhes conferem identidade cultural, política, social ou religiosa, como Dogmas que justificam os mais horríveis massacres e outras violações dos direitos humanos. A violação do direito de livre expressão é apenas uma das muitas vítimas da falta de distanciamento epistémico: quando se é incapaz de pôr em causa as nossas próprias crenças fundamentais, parece até uma blasfémia que alguém as ponha em causa em público. Parece uma afronta e não o que realmente é — uma excelente oportunidade para analisar criticamente as nossas crenças fundamentais, sobre as quais construímos a nossa identidade (identidade que precisará de ser revista, se essas crenças se revelarem falsas).

Por estas razões, é muito importante analisar e discutir cuidadosamente o princípio do distanciamento epistémico.

Eis uma formulação possível do princípio:

PDE: Qualquer crença humana pode ser falsa.

Perguntemos agora: a própria crença neste princípio está sujeita ao princípio, ou não? Ou seja, devemos admitir que, porque somos falíveis, podemos estar enganados quando pensamos que o princípio é verdadeiro? Evidentemente, a resposta não pode ser afirmativa, porque gera uma contradição. A contradição é a seguinte: se o princípio é verdadeiro, então qualquer crença pode ser falsa; mas se o próprio princípio pode ser falso porque somos falíveis, então nem todas as crenças podem ser falsas. Temos, pois, uma contradição: qualquer crença pode ser falsa e nem todas as crenças podem ser falsas. Logo, não podemos aceitar que o princípio se aplique a si mesmo.

Note-se que até agora não temos qualquer paradoxo. Até agora temos apenas a demonstração de que o princípio não se pode aplicar a si próprio, sob pena de gerar uma contradição. Para termos um paradoxo é necessário gerar também uma contradição caso afirmemos que o princípio não se aplica a si próprio. E é o que acontece. Pois ao responder que o princípio não se aplica a si próprio, estamos na realidade a admitir que há uma crença que não pode ser falsa — nomeadamente, a crença de que o princípio é verdadeiro. Mas o princípio afirma que qualquer crença pode ser falsa. Por isso, temos outra vez uma contradição. Dado que as duas únicas respostas possíveis geram contradições, o princípio é paradoxal.

Em termos menos lógicos e mais substanciais, compreende-se talvez melhor a dificuldade. Aplica-se o princípio a si próprio? Se se aplica, então o princípio pode ser falso, o que gera logo uma contradição. Se não se aplica, então estamos a admitir que há uma verdade indubitável — o próprio princípio. Ora, os opositores da completa liberdade de expressão defendem, precisamente, que há limites para as opiniões que se pode defender publicamente. Estas pessoas defendem que há certas opiniões que, por serem de tal modo obviamente falsas e perigosas, devem ser silenciadas — foi por isso que na Áustria se condenou o historiador inglês David Irving a três anos de cadeia, por negar o holocausto. O que Irving defende, no entender da mentalidade (ironicamente nazi) dos seus censores, é de tal forma obviamente falso, perigoso e ignóbil, que devemos proibi-lo de dizer o que pensa precisamente por isso. Do mesmo modo que temos de admitir que o princípio do distanciamento epistémico não pode ser posto em causa, temos de admitir que a existência do Holocausto também não pode ser posta em causa.

O resultado a que chegámos é desencorajante. Se tudo o que temos para defender a liberdade de expressão é um princípio que não pode ser posto em dúvida, então a liberdade de expressão fica ameaçada precisamente porque quem a ataca fá-lo sempre no pressuposto de que a expressão de ideias obviamente falsas e perigosas deve ser proibida.

Felizmente, há várias soluções para este problema. Vou apresentar brevemente algumas delas.

A solução menos promissora é defender que há uma diferença importante entre não permitir duvidar do princípio do distanciamento epistémico e não permitir duvidar do Holocausto. E a diferença é que no primeiro caso se trata de não permitir tal coisa por uma razão lógica óbvia: fazê-lo dá origem a uma contradição. Ao passo que negar o Holocausto não dá origem a qualquer contradição lógica.

Esta solução não é muito promissora porque rapidamente se conseguem gerar contradições lógicas baseadas na negação do Holocausto — pois temos muitíssimas outras crenças que são logicamente incompatíveis com a negação do Holocausto. Além disso, seria ainda necessário explicar melhor por que razão as contradições lógicas são o único género de crença que deve ser proibida. Qual é exactamente o problema de uma pessoa escrever num jornal que está a chover para logo de seguir negar isso mesmo?

Uma solução mais promissora é recorrer a outro princípio para defender a liberdade de expressão — o célebre princípio do dano, defendido por Mill. Sucintamente, este princípio declara que toda a gente tem o direito de errar e fazer e dizer disparates, desde que não provoque dano a terceiros. Assim, teríamos de admitir que o princípio do distanciamento epistémico enfrenta dificuldades lógicas e filosóficas insuperáveis, e que precisamos de outro princípio para defender a liberdade de expressão.

O princípio do dano, a que podemos chamar mais adequadamente “direito ao erro”, é de importância capital. Trata-se de uma ideia revolucionária, que infelizmente ainda está longe de ser amplamente conhecida e menos ainda praticada. Há uma tendência geral nos seres humanos para controlar social, política e religiosamente o comportamento e as opiniões dos outros seres humanos. Precisamente para fugir à análise crítica das nossas crenças mais fundamentais, temos tendência para proibir aquelas práticas e ideias que nos parecem obviamente erradas. Defender o direito a estar errado — desde que o erro não prejudique terceiros — é por isso um passo fundamental para uma sociedade mais tolerante, pacífica e livre.

Contudo, se nos limitarmos a acrescentar o direito ao erro ao princípio do distanciamento epistémico, só aparentemente resolvemos o problema. Na realidade, o que fizemos foi usar o direito ao erro quando o princípio do distanciamento epistémico falha. Uma solução mais promissora é, por isso, tentar reformular o princípio, de modo a que não dê origem a problemas lógicos e filosóficos. Esta solução não significa que devamos abandonar o direito ao erro; significa apenas que não precisaremos do direito ao erro para suprir as dificuldades do princípio do distanciamento epistémico, no que respeita à defesa da liberdade de expressão.

Uma reformulação possível do princípio do distanciamento epistémico é a seguinte:

PDE2: Algumas crenças humanas podem ser falsas.

Este princípio é muitíssimo mais fraco e não levanta problemas de inconsistência. Contudo, para poder ser usado na defesa da liberdade de expressão, tem de ser complementado com um corolário do distanciamento epistémico:

CPDE2: Nem sempre sabemos distinguir quais das nossas crenças são verdadeiras e quais são falsas.

Apesar de Mill não exprimir explicitamente este corolário, usa efectivamente a mesma ideia na defesa da liberdade de expressão. E, de facto, com este corolário e o princípio revisto do distanciamento epistémico está assegurada uma defesa sólida da liberdade de expressão, sem que nos deparemos com quaisquer problemas lógicos ou filosóficos semelhantes aos encontrados antes. O trabalho importante do corolário é chamar a atenção para o facto seguinte: apesar de nem todas as nossas crenças poderem ser falsas — nomeadamente, por razões lógicas — isso é um tanto irrelevante porque não temos um processo infalível para determinar quais das nossas crenças são verdadeiras e quais são falsas. Por isso, temos de considerar todas elas criticamente e com abertura de espírito — e, portanto, temos de permitir a sua livre expressão pública.

Caso o nosso opositor tente voltar a produzir a mesma dificuldade lógica antes encontrada, não o conseguirá. Aplicar o corolário a si mesmo não gera qualquer paradoxo: podemos admitir que a crença no corolário é uma das crenças que não é fácil saber se é verdadeira ou falsa. Esta admissão só provocaria problemas se implicasse que, nesse caso, não devemos aceitar o corolário. Mas isto é tão absurdo como defender que não devemos aceitar que a água é H2O só porque saber tal coisa não é fácil. A admissão de que não é fácil saber se o corolário é verdadeiro ou falso implica apenas que não se pode proibir uma pessoa de atacar publicamente o corolário — que é precisamente o que se deseja, pois não queremos um corolário que dê argumentos aos censores para limitar a liberdade de expressão.

Em conclusão, o princípio revisto do distanciamento epistémico, em conjunto com o seu corolário, permitem uma defesa sólida da liberdade de expressão, sem que se dê origem a paradoxos ou outras dificuldades filosóficas imediatas. Haverá sem dúvida outras dificuldades filosóficas, mas serão substanciais e resultarão da dificuldade em saber, perante certas opiniões e crenças particularmente nocivas, se devem ou não ser permitidas. Mas isso é uma discussão de casos particulares que não nos compete agora analisar.

Desidério Murcho
Comunicação apresentada na II Jornada de Filosofia e Direitos Humanos (Universidade de Londrina, Brasil, 17 e 18 de Agosto de 2006)
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ISSN 1749-8457