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Crítica
4 de Janeiro de 2017   Estética

Tipos, indicados e iniciados

Robert Howell
Tradução de Vítor Guerreiro

Defendo a concepção das obras musicais como tipos indicados, temporalmente iniciados, contra o argumento recente de Julian Dodd de que todos os tipos são eternos e incriados. Ao fazê-lo, desenvolvo uma nova abordagem aos tipos culturais e naturais. Embora os tipos sejam, em certo sentido, determinados pelas propriedades que lhes subjazem, nem todas as propriedades determinam tipos. Propriedades como ser indicado por Beethoven só existem uma vez que existam as entidades temporalmente iniciadas que essas propriedades essencialmente envolvem. Um tipo cultural como a Quinta Sinfonia de Beethoven é um padrão sonoro que tem a propriedade essencial de ser usado da maneira especificada pelo acto de Beethoven seleccionar esse padrão. (Os tipos naturais, como os cantos de aves ou as espécies biológicas, são padrões que têm lugar em cadeias causais efectivas na natureza.) Dado este enquadramento, a Quinta Sinfonia é um tipo indicado que foi, num sentido literal directo, criado por Beethoven entre 1804–1808.

I. Preliminares

As obras musicais — bem como, segundo creio, as obras de todas as artes — são ontologicamente diversas. Nenhuma formulação, seja a de tipo peirceano, categoria normativa, particular sensível ou entidade abstracta iniciada por um criador, as capta todas. Evidentemente, há as obras repetíveis, fixadas em notação, da música clássica ocidental — composições cuja compreensão inclui o terem origem em compositores particulares, como a Quinta Sinfonia de Beethoven ou as suites para violoncelo de Bach. Contudo, há também improvisações individuais únicas, melodias populares não fixadas em notação, com muitas variações e nenhuma versão canónica, além de obras anónimas que têm forma fixa em notação mas desprovidas de quaisquer ligações, na nossa presente compreensão das mesmas, a quaisquer compositores particulares. As hipóteses de haver generalizações ontológicas informativas capazes de abranger todas essas obras parecem escassas.1 Não obstante, talvez algo de interesse se possa dizer acerca de alguns dos seus subgrupos, por exemplo, acerca das composições repetíveis, fixadas em notação, da tradição clássica ocidental, tais como a Quinta Sinfonia. Essas obras foram alvo da maior atenção em estética e é em questões acerca da sua ontologia que me quero centrar aqui.

Uma obra como a Quinta Sinfonia pode ter muitas execuções e, portanto, muitas exemplificações. Cada uma dessas execuções, quando correctas, apresenta a mesma sequência de sons. Este facto sugere que identifiquemos a Quinta Sinfonia com o tipo abstracto, no sentido de C. S. Peirce, que corresponde àquela sequência e que tem por exemplificações as execuções (ou os sons concretos que nelas se produz). Porém, esta perspectiva apelativamente simples enfrenta dificuldades. Para começar, Beethoven criou a Quinta Sinfonia, mas é frequente argumentar-se que os tipos abstractos, como todas as entidades abstractas, são eternos e incriados. Depois, parece que outro compositor, trabalhando num contexto histórico-musical diferente, poderia ter imaginado a mesma sequência sonora abstracta que Beethoven imaginou, compondo uma obra bastante diferente. Uma estrutura sonora idêntica composta por Satie seria uma aberração paródica, incaracterística, e não outra vez a Quinta Sinfonia, uma obra que exibe a progressão dramática de Sturm, Drang e resolução final que está presente nessa sinfonia.2

Considerações semelhantes acerca da criação, e em particular do contexto histórico, levaram uma série de filósofos da estética, entre os quais Kendall Walton e Jerrold Levinson, a rejeitar a identificação de uma obra como a Quinta Sinfonia com um tipo sonoro abstracto. A influente discussão das “categorias da arte” levada a cabo por Walton sugere que, embora a sinfonia envolva esse tipo, a sua identidade depende também de circunstâncias contextuais que determinam como se há-de escutar as suas execuções. Mais recentemente, Jerrold Levinson argumentou, numa série de ensaios célebres, que uma obra musical não é um tipo abstracto puro de estrutura sonora mas um “tipo indicado”, “ψ-como-indicado-por-θ-em-t”, em que ψ é o tipo estrutural sonoro que o compositor θ, através das suas actividades composicionais, indica.3 Esse tipo indicado é distinto da estrutura abstracta ψ em si; passa a existir (é “iniciado”) no momento do tempo t pelas actividades do compositor, no contexto histórico-musical em que este então trabalha, e está ontologicamente vinculado a esse compositor, a esse momento do tempo e a esse contexto.

Nem todos os que partilham a rejeição waltoniana e levinsoniana de que as obras musicais como a Quinta Sinfonia sejam estruturas sonoras abstractas, aceitam a perspectiva dos tipos indicados (ou alguma perspectiva semelhante). Gregory Currie, por exemplo, critica essa perspectiva como metafisicamente obscura.4 Não obstante, ela integra três ideias que muitos exemplos e também as nossas crenças acerca dessas obras musicais tornam natural aceitar: i) obras como a Quinta Sinfonia podem ter múltiplas exemplificações, ii) essas obras são criadas pelos seus compositores — no sentido forte de que estes as fazem existir, e iii) o contexto histórico dessas obras desempenha um papel na sua individuação. Tampouco qualquer perspectiva rival consegue satisfazer simultaneamente estas três condições. Independentemente de se aceitar ou não todos os pormenores da posição de Levinson ou de uma posição como a de Walton, há portanto boas razões para defender que as obras musicais como a Quinta Sinfonia são tipos de estrutura sonora que foram criados pelas actividades (“indicação”) dos seus compositores e estão ontologicamente vinculados aos seus compositores e à sua actividade composicional (e talvez a outros elementos do contexto).

Eis que chega Julian Dodd para desafiar veementemente os pressupostos de todas essas perspectivas.5 A sua objecção central não tem a ver com obscuridade, embora ele considere “turva” a noção levinsoniana de estrutura indicada (Dodd, p. 438). Ao invés, argumenta que (I) as nossas intuições sustentam a posição de partida de que as obras musicais são tipos sonoros puros, ontologicamente desvinculados (p. 425), (II) esses tipos não podem ser criados e as actividades do compositor consistem apenas em exibir criatividade na descoberta do tipo abstracto que a obra é (p. 428), e (III) a perspectiva dos tipos indicados não pode, em todo o caso, aceitar a criação de obras musicais, uma vez que todos os tipos — e portanto todos os tipos indicados — existem eternamente (p. 434).

O ensaio de Dodd tem o mérito de forçar quem quer que simpatize com os tipos indicados [ou que simplesmente procure conciliar (i), (ii) e (iii)] a esclarecer a natureza fundamental desses tipos. Porém, há mais polémica do que substância nas suas críticas. Como argumentarei, a perspectiva que Dodd tem das nossas intuições musicais não é convincente e o seu argumento de que todos os tipos são eternos não é sólido. A discussão destes tópicos é algo dificultada pelo facto de, a meu ver, a perspectiva acerca de tipos adoptada por Dodd e por outros autores que escrevem sobre este assunto padecer de sérias dificuldades. Depois de em II apontar problemas na sua abordagem às nossas intuições, em III aceito temporariamente o tratamento que Dodd dá aos tipos, de modo a mostrar que, mesmo dado esse tratamento, o seu argumento a favor da eternidade dos tipos não funciona. Na secção IV procuro então desenvolver uma concepção mais adequada dos tipos que unifique os tipos artísticos e os tipos ou categorias naturais. Dada esta concepção, argumento que nada há de problemático na ideia de “tipo indicado” que satisfaça as condições (i) a (iii) atrás. Como estou interessado nas ideias básicas que subjazem às perspectivas de tipos indicados, não será necessário responder a todos os pormenores do ataque de Dodd ou discutir todas as perspectivas do próprio Levinson. (Tampouco procurarei considerar o que resulta de outros trabalhos relacionados, como o de Walton.) Além disso, porei de lado questões importantes para a metafísica geral mas só indirectamente relevantes para a discussão dos tipos indicados. O meu objectivo é simplesmente proporcionar uma explicação dos tipos que mostre que teorias como a dos tipos indicados escapam incólumes aos projécteis que se lhes tem arremessado ou disparado. Essas teorias têm as virtudes que quem as defende afirma que têm.

II. Intuições

As afirmações de Dodd acerca das nossas intuições são em grande medida desprovidas de argumentação. Ele simplesmente afirma que “alguém que não esteja limitado por um excesso de teorização filosófica” se perguntará o que poderia uma obra musical ser senão uma sequência de tipos sonoros (p. 425). Sem discutir qualquer dos argumentos contrários dados por Walton, Levinson, Currie e outros, afirma também que o contexto histórico da composição da obra não é essencial para a sua identidade.6 Estas breves observações, escoradas em alguns exemplos rudimentares, são tudo o que sustenta a sua afirmação de que a abordagem dos tipos sonoros puros é a posição de partida, a qual só na presença de contra-argumentos fortes deveríamos abandonar. Evidentemente, observa Dodd, a perspectiva de que as obras musicais são criadas comprometeria esse estatuto de “posição de partida”. Porém, entende que os seus argumentos ulteriores refutam essa perspectiva.

As afirmações de Dodd não têm grande peso. Desde logo, não parece plausível que alguém que não esteja limitado pela teorização filosófica tenha quaisquer opiniões acerca de as obras musicais serem realmente tipos peirceanos abstractos, eternamente existentes. Quando muito, os que genuinamente não estão assim limitados concordam com a perspectiva não tendenciosa, pré-teórica (i) de que as obras musicais têm muitas exemplificações delas mesmas. Contudo, na ausência de um argumento filosófico, algo que a mera opinião pré-filosófica não nos dá, de (i) não se segue a posição de partida de Dodd. Depois, os que não estão assim limitados decerto aceitarão também pelo menos as palavras que figuram na perspectiva (ii). As pessoas não sujeitas a doutrinação filosófica (por exemplo, amigos e vizinhos sofisticados) realmente consideram verdadeiras afirmações como “Beethoven criou a Quinta Sinfonia; trouxe ao mundo uma obra que antes não estava aí”. O facto de se considerar verdadeiras tais afirmações é seguramente indício, na ausência de argumentos contrários, de que essas pessoas aceitam a ideia da criação literal em (ii). Porém, como vimos antes, (ii) parece excluir a posição de partida de Dodd. Além disso, convém observar que as considerações acerca do contexto que motivam a perspectiva (iii) soaram imediatamente familiares quando apareceram pela primeira vez na década de 1960. Exemplos como o Pierre Menard de Borges ou as guernicas de Walton, para não falar nos muitos cenários imaginativos de Levinson e Currie, tiveram uma ampla aceitação. Nem todos concordaram com eles.7 Porém, não recordo que na época tenha havido algum clamor de que tais exemplos são desvairada ou extravagantemente contra-intuitivos, e os estudantes que não estão filosoficamente comprometidos ainda os consideram plausíveis. A mera opinião (ou “intuição”) popular não exerce uma pressão uniforme no sentido da perspectiva das obras-como-tipos-puros, por contraste com as perspectivas da criação-e-individuação-históricas. Ao invés, e quando sucede sustentarem de todo qualquer perspectiva filosófica, elementos diversos da opinião popular sustentam cada uma dessas perspectivas. Quando muito, deparamo-nos com um conflito de intuições, não com uma sublevação popular a favor dos tipos abstractos, eternos ou de outro género de abstracta filosóficos.

III. Tipos e propriedades, eternos e não eternos

Passo agora à tese mais fundamental de Dodd, a sua perspectiva de que os tipos — e portanto todos os tipos indicados — são eternos e incriados. Dodd faz assentar a sua perspectiva numa concepção dos tipos que, como já referi, creio padecer de sérias dificuldades. Ainda assim, é importante ver que, mesmo nos termos dessa concepção, o argumento que Dodd apresenta a seu favor não é sólido e a própria perspectiva é em si mesma bastante duvidosa. Vale a pena explorá-la porque é partilhada por uma série de autores conhecidos acerca destes assuntos. Nesta parte do artigo, portanto, sigo a concepção dos tipos defendida por Dodd, chamando apenas ocasionalmente a atenção do leitor para as dúvidas que surgem. Na secção IV desenvolvo uma perspectiva mais adequada.

Dodd lida com a questão dos tipos por via das propriedades. Se pensarmos num tipo como um padrão partilhado pelas suas exemplificações — ou como algo que envolve semelhante padrão — será plausível defender que a identidade de um tipo como Coisa Quadrada ou Sequência de Dós Sustenidos é determinado por uma propriedade ou combinação de propriedades que pertence a todas as exemplificações ou espécimes do tipo e especifica o padrão que, necessariamente, cada espécime manifesta. Assim, se pudermos precisar a natureza da correlação que aparentemente se verifica entre propriedades e tipos, poderemos porventura esclarecer a própria ideia do que seja um tipo e descobrir em que circunstâncias os tipos existem e não existem.

Esta última ideia — de que as propriedades determinam, de algum modo, a identidade dos tipos — é plausível. Porém, antes de passar aos detalhes da perspectiva do próprio Dodd é importante observar desde já que ao se afirmar que a identidade de um tipo é determinada pela propriedade relevante pode-se querer dizer uma de duas coisas (ou ambas). Primeiro, pode-se querer dizer apenas que é a mesmidade ou diferença das propriedades relevantes que determina se dois tipos são ou não idênticos, sem pressupor que a existência das propriedades por si mesmas implica a existência dos tipos. Nesta concepção, aceitaríamos a tese de que (a) da existência de um tipo, com a identidade que tem, decorre a existência da propriedade correspondente. Porém, não afirmaríamos que da existência de uma propriedade por si necessariamente decorre a existência de um tipo correspondente. (Assim, os tipos Coisa Quadrada e Coisa Elíptica, se existem, difeririam em virtude da diferença de propriedades subjacentes que discriminam os quadrados por contraste com as elipses. Contudo, a mera existência dessas propriedades não seria necessariamente suficiente, por si, para garantir a existência dos tipos.) Segundo, poder-se-ia entender que o significado da afirmação de que a identidade de um tipo é determinada pela propriedade relevante reside na afirmação conversa da última, nomeadamente, de que (b) da existência de uma propriedade por si decorre a existência de um tipo correspondente com a identidade que tem. (A mera existência da propriedade que discrimina os quadrados seria então por si suficiente para que existisse o tipo Coisa Quadrada.) A tese (a) — que a existência e identidade dos tipos requer a existência da propriedade correspondente — deve ser aceite, creio, em qualquer concepção razoável dos tipos. Porém, a tese (b) não é de modo algum tão obviamente verdadeira. Poder-se-ia argumentar, afinal, que os tipos, pelo menos naquilo em que interessam à ontologia da arte e não só, não são apenas padrões dados de antemão apenas pela existência das propriedades relevantes. Ao invés, pode-se defender que uma condição adicional tem de ser satisfeita para que o próprio tipo exista. (Pode suceder, por exemplo, que um tipo é inicialmente gerado em virtude de uma comunidade tomar efectivamente a propriedade como especificadora de um padrão que funciona como critério de reconhecimento e performativo.) Na verdade, argumento na secção IV que justamente uma posição assim é a correcta — ou seja, que a tese (a) é verdadeira, mas que a tese (b) deve ser rejeitada.

Dodd, porém, seguindo ideias bem conhecidas de Nicholas Wolterstorff, aceita a tese (b) bem como a tese (a).8 Para Dodd, bem como para Wolterstorff, a cada tipo K corresponde uma certa propriedade que determina a identidade do tipo. Essa propriedade, ser um K, é uma propriedade que qualquer espécime de K tem de ter para ser uma exemplificação de K. Assim afirma a tese (a). Contudo, além disso, como afirma a tese (b), da existência dessa propriedade decorre a existência do próprio tipo K. A essa propriedade podemos chamar “propriedade associada” de K. (Dodd e Wolterstorff falam, analogamente, do tipo associado da propriedade.) Dada esta concepção dos tipos, Dodd pode agora argumentar directamente que todos os tipos são eternos. Por razões assinaladas adiante, Dodd defende que (c) todas as propriedades e, consequentemente, todas as propriedades associadas de tipos, são eternas (p. 436). Assim, dada a tese (b), segue-se que todos os tipos — e portanto todos os tipos indicados, se existem — são eternos (pp. 436–437). Enquanto eternos, os tipos são também incriados. Antes de chegar a este último resultado, Dodd argumentara já independentemente que os tipos não podem ser criados. Insiste que os abstracta não podem entrar em relações causais com pessoas (pp. 431–432 e 434). Para Dodd, quando muito Beethoven descobre, ainda que criativamente, o tipo sonoro eterno que é a Quinta Sinfonia. “Acrescenta” então esse tipo à nossa cultura, especificando-o por meio de uma notação ou execução, de um modo que nos permite apreciar o que descobriu (pp. 427–434).

Como entender este argumento altamente abstracto acerca de propriedades, tipos e espécimes? Procede para a conclusão de que todos os tipos são eternos a partir das duas premissas atrás: (b) que da existência de propriedades decorre a existência de tipos e (c) que todas as propriedades são eternas. Como observei já, argumentarei contra a tese (b) na secção IV. Se estou certo nisto, o argumento de Dodd não é sólido porque a sua segunda premissa é falsa.9 Contudo, para mostrar que o argumento não é sólido temos de nos apoiar em afirmações acerca da controversa tese (b). Como explicarei nos dois parágrafos seguintes, não há boas razões para aceitar a tese (c) — muitas propriedades, inclusive as que são importantes para os tipos indicados, não são eternas. Pelo que o argumento de Dodd não funciona mesmo que lhe concedamos a tese (b). Na verdade, dada a falsidade da tese (c) e a verdade, aceite por todas as partes, da tese (a) (da existência de tipos decorre a existência de propriedades), podemos inferir imediatamente que a conclusão do argumento de Dodd é ela mesma falsa. Alguns tipos — entre os quais se incluem também os tipos indicados — não são eternos.

Será útil, para esclarecer estes pontos, dar alguns exemplos concretos. Se concedemos a tese (b), então o argumento de Dodd parece procedente no caso das propriedades e tipos geométricos. A propriedade ser um quadrado parece eterna. É extremamente difícil dar sentido à ideia de que essa propriedade, por contraste com algum exemplo concreto da mesma, como um pedaço de manteiga, começou a existir há uma semana.10 Portanto, se concedemos a tese (b), o tipo Coisa Quadrada parece eterno. Porém, as coisas não são tão simples quando passamos, ao invés, para os tipos indicados, tal como os seus defensores os descrevem. Na perspectiva dos tipos indicados, a Quinta Sinfonia não é o tipo abstracto de estrutura sonora S que se resume simplesmente a uma sequência de notas. Ao invés, é a entidade S-como-indicado-por-Beethoven-em–1804–1808 (os anos da sua composição) — aproximadamente, S na medida em que S é indicada ou seleccionada por Beethoven enquanto especificação de um padrão de notas que se deve executar de modo a manifestar a composição. Suponha o leitor que concedemos que a própria S (e a propriedade subjacente a S que especifica a sequência de notas que constitui S) é eterna. Então, de acordo com a perpsectiva dos tipos indicados, temos ainda de considerar o facto de, como sucede com a Quinta Sinfonia, S ter adquirido a propriedade de ter sido indicada por Beethoven em 1804–1808. Ou ainda, para invocar a ideia de uma propriedade associada, temos de considerar a propriedade que todas as exemplificações (isto é, todas as execuções) da Quinta Sinfonia têm na medida em que são essas exemplificações. De acordo com os defensores dos tipos indicados, essa propriedade é a propriedade de ter a estrutura básica S e também ser produzida de tal modo que está apropriadamente ligada aos actos de indicação por Beethoven entre 1804–1808.11 (Para os defensores dos tipos indicados, uma exemplificação da estrutura S não conta como execução da Quinta Sinfonia a menos que essa execução esteja apropriadamente relacionada, por via das pautas usadas, do treino do maestro e dos músicos, etc., com aqueles actos.) De acordo com Dodd, que aceita quer a tese (a) (da existência dos tipos decorre a existência de propriedades) quer a tese (b) (da existência de propriedades decorre a existência de tipos), a Quinta Sinfonia, enquanto tipo indicado, existe se e somente se a propriedade que acabei de mencionar existe. Porém, dada a sua relação com entidades e eventos contingentes, temporalmente iniciados (Beethoven e os seus actos), poderá essa propriedade ser não iniciada e sempiterna? Na verdade, será possível que todas as propriedades que envolvem relações desse tipo existam em todos os momentos do tempo?

Talvez seja plausível defender que nos casos em que uma propriedade (ou, mais geralmente, qualquer género de abstractum metafísico) é uma coisa inteiramente geral, sem conexões essenciais às entidades contingentes que ocorrem no mundo juntamente com ela, então essa propriedade é eterna. (Ou talvez nem mesmo essa tese seja clara, mas não precisamos de decidir aqui sobre esses tópicos de metafísica geral.) Contudo, a propriedade que acabo de mencionar não é uma dessas coisas inteiramente gerais. Ao invés, essa propriedade está essencialmente ligada a Beethoven e aos seus actos de 1804–1808. Porém, seguramente que nesse caso não poderá ser eterna. Como poderia já existir, digamos, em 1600 — ou no momento do Big Bang — quando as entidades concretas específicas a que está essencialmente ligada não existiam ainda? Supor que poderia assim ser seria como supor que a assinatura do leitor — e não apenas umas marcas de tinta geometricamente congruentes com a mesma, mas marcas efectivas que são testemunho do leitor, da sua própria identidade pessoal — poderia existir um milhão de anos antes de o leitor existir ou que o conjunto formado pela trovoada de ontem à noite e a ventania de hoje poderia existir previamente a ambos esses acontecimentos. Se, porém, a propriedade em causa não é eterna, então, dada a tese (a), tampouco o será o tipo indicado que a Quinta Sinfonia é. Na verdade, podemos contornar inteiramente estes pormenores acerca de propriedades e propriedades associadas e observar directamente que nenhum tipo indicado pode existir sem que existam todas as entidades com as quais está essencialmente envolvido. Portanto, a Quinta Sinfonia não pode existir previamente a Beethoven e aos seus actos de indicação. Uma tese central da teoria dos tipos indicados — a de que obras como essa são tipos temporalmente iniciados — escapa assim ilesa ao raciocínio de Dodd.

O problema aqui para Dodd (e para quem quer que, como Wolterstorff, aceite a eternidade de todas as propriedades e tipos) não surge apenas a propósito de propriedades peculiares à teoria dos tipos indicados.12 Há uma multidão de outras propriedades, perfeitamente comuns, que envolvem relações essenciais a entidades contingentes, temporalmente iniciadas, e que geram a mesma dificuldade — por exemplo, as propriedades de ser filho de Abraham Lincoln, de ser sobrinho de Beethoven, de ter visto Emily Dickinson, de ter sobrevivido à Batalha da Grã-Bretanha, ou de ser um dramaturgo isabelino.13 Tampouco se pode fugir ao problema propondo que cada uma destas propriedades é na verdade apenas um composto de propriedades eternas, inteiramente gerais. Não é provável que semelhante proposta se dê melhor do que aquelas teorias para as quais o referente de um nome próprio é estabelecido apenas por apelo a uma conjunção de conceitos ou propriedades gerais, unicamente satisfeita pelo referente. Como mostraram as abordagens causais e de referência directa ao problema dos nomes próprios, essas teorias enfrentam uma bateria de dificuldades. Um obstáculo semelhante depara-se à proposta em causa.

Dodd rejeitaria as ideias anteriores acerca de propriedades e tipos não eternos. Ele crê poder demonstrar que todas as propriedades são eternas. Na esteira de D. M. Armstrong, Dodd insiste em que uma propriedade existe caso tenha tido exemplificações no passado, caso as tenha no presente ou venha a tê-las no futuro. Portanto, toda a propriedade é eterna.14 Porém, esta perspectiva da existência das propriedades conduz a resultados implausíveis e deve ser rejeitada. Desde logo, nega que existam propriedades inconsistentes (ser um quadrado redondo), pois estas nunca têm exemplificações. Contudo, essas propriedades podem ser vistas como compostos inofensivos (se não forem exemplificáveis) de propriedades que são exemplificáveis (e são “intrinsecamente de particulares”, para usar a linguagem de Dodd na p. 436). Na minha perspectiva, precisamos dessas propriedades também para dar sentido a diversas suposições contrafactuais e afirmações inconsistentes no domínio da ficção.15 Depois, a perspectiva de Dodd exclui propriedades (talvez, digamos, a propriedade de ter 1000 dimensões espaciais) que são lógica ou metafisicamente consistentes, porém insusceptíveis de terem exemplificações dada a efectiva natureza do nosso universo físico. Na verdade, essa perspectiva força-nos mesmo a negar a existência de propriedades (digamos, a de ser um elefante que engoliu nove gerbilos aos quais previamente um alquimista cantou) que poderão contingentemente nunca ter exemplificações em toda a história do nosso universo tal como este realmente existe. Ainda que abandonemos as propriedades impossíveis, abdicar daquelas últimas propriedades é um preço elevado a pagar pela aderência à perspectiva que Dodd tem sobre a existência de propriedades. Tampouco temos de nos preocupar (compare-se com a p. 436) que propriedades como ser filho de Abraham Lincoln ou a propriedade associada que vimos atrás para a Quinta Sinfonia ora existam, ora não existam, intermitentemente, de uma maneira misteriosa, em virtude da natureza contingente das entidades a que estão ligadas. Não vejo qualquer boa razão para supor que essas entidades podem, metafisicamente, comportar-se desse modo.

Edificar uma teoria apropriada da existência das propriedades envolve questões metafísicas complexas, longe dos campos verdejantes da estética. Aproximadamente, porém, e em contraste com a perspectiva implausível de Dodd, pode-se considerar que uma propriedade existe desde que se trate de um composto lógico-metafísico de propriedades de base existentes, ou no caso de ela mesma ser uma dessas propriedades. (Assim, ser verde e ser redondo, ser redondo e ser não redondo e ser verde e ser quadrado existem todas se as suas propriedades constituintes existem.) As condições precisas para a existência de propriedades de base dependem então de questões mais gerais acerca do realismo, do conceptualismo, e assim por diante. Porém, pode-se dizer aproximadamente que essas propriedades existem quando quaisquer entidades que essencialmente envolvam elas mesmas existem.16 Nesta perspectiva, ser quadrado é presumivelmente eterna, mas ser filho de Lincoln não existe antes de o próprio Lincoln existir.

Haverá então algum mistério intratável no modo como a última propriedade vem a existir? Seguramente que não. A propriedade não é feita existir por via de alguém gerar uma entidade abstracta a partir do nada. Ao invés, podemos supor que a propriedade relacional inteiramente geral ser filho de alguém já existe (e, tanto quanto sei em termos de evidência contrária, é eterna). Quando Lincoln passa a existir, enche automaticamente o espaço aberto, “alguém”, nesta propriedade. Consequentemente, a propriedade monádica ser filho de Lincoln (e propriedades semelhantes como ser mais velho do que Lincoln, etc.) passa automaticamente a existir ela mesma. Se, contrariamente à perspectiva que apresento adiante, supomos que da existência de propriedades decorre a existência de tipos, então o mesmo sucede com o tipo Filho de Lincoln (se há um tal tipo). Nesse sentido, pelo menos, pode-se afirmar que determinados tipos são iniciados, mesmo dada essa suposição. Discuto ulteriormente a iniciação e criação de tipos na secção seguinte.

IV. Uma nova concepção dos tipos

Se as observações anteriores são convincentes, então o ataque de Dodd aos tipos iniciados não é bem sucedido. Não há razão para supor que todos os tipos, ou as propriedades a que estão associados, são eternos, e entre esses tipos encontram-se os iniciados. Contudo, esta resposta a Dodd foi elaborada mediante a suposição de que a existência de uma propriedade envolve a existência do tipo que lhe está associado. Embora muitas discussões recentes da música e dos tipos pareçam adoptar esta suposição ou alguma semelhante, creio que um progresso complementar na compreensão da natureza real dos tipos indicados — e na verdade, dos tipos em geral — exige que abandonemos essa suposição e em parte repensemos o assunto.17 Em particular, temos de distinguir entre as propriedades e aquilo a que chamo “padrões”, e há que distinguir entre as propriedades e os padrões, por um lado, e os tipos, por outro.

As propriedades são aspectos predicativos dos objectos.18 Os padrões, por sua vez, são especificados por propriedades. Neles se incluem coisas como a forma partilhada pelas coisas quadradas, a distribuição regular de traços e pontos numa sequência de _ . _ . _ , o ritmo comum a canções em compasso quaternário simples, e as referências repetidas a um “homem honorável” na oração fúnebre a César, por António. Pressuponho que nos casos em que a propriedade relevante exista, também o padrão por ela especificado existe. Ter quadrículas claras e escuras alternadas especifica aproximadamente o padrão do tabuleiro de xadrez, e esse padrão existe dada a existência da propriedade. Suponho também que um padrão se distingue da propridade que o especifica. (Embora o padrão axadrezado e a propriedade acabada de mencionar tenham as mesmas exemplificações, é verdade acerca do padrão, mas não acerca da propriedade, que é feito de quadrículas. Ter quadrículas claras e escuras alternadas não é ela mesma literalmente feita de quaisquer formas.) É importante observar que não deveríamos pensar num padrão como se se tratasse de um fantasmagórico desenho esquemático a aguardar num céu platónico pelo momento em que viria a ter exemplificações. Ao invés, um padrão é aproximadamente uma organização de partes ou características que pertence a qualquer coisa que tenha a propriedade associada. A organização existe, como item abstracto, se a propriedade existe mas não tem exemplificações. Porém, a organização não pertence nesse caso a coisa alguma, nem sequer a género algum de coisa fantasmagórica.

Há que distinguir quer os padrões quer as propriedades que lhes estão subjacentes, por um lado, e os tipos, por outro. Ao fazer esta distinção, interponho uma terceira coisa, o padrão, entre a propriedade e aquilo que autores como Dodd e Wolterstorff consideram que seja o tipo. Na minha perspectiva, esses autores têm razão em entender que uma determinada coisa abstracta existe automaticamente se a propriedade relevante existe, mas eles identificaram erroneamente essa coisa. A coisa abstracta é realmente apenas o padrão, a organização de partes ou características que a propriedade especifica. O tipo envolve o padrão, mas para que o padrão exista é preciso mais do que a mera existência da propriedade (e portanto do padrão). Não se trata de uma questão meramente terminológica. Trata-se de algo crucial à compreensão dos tipos tal como estes ocorrem quer na natureza quer na prática humana. Exemplos reais de tipos — por contraste com casos inventados, como o de Coisa Quadrada ou Filho de Lincoln — serão úteis para dar ênfase a esta ideia. Como tais exemplos mostram, os tipos são entidades sérias que desempenham papéis importantes na natureza ou na vida humana, ao passo que os padrões são meras organizações que poderão ou não ter qualquer importância.

Considere-se primeiro os tipos ou categorias naturais.19 Qualquer que seja a relação precisa que têm com os tipos musicais e outros tipos culturais, essas categorias não são tomadas como realmente existentes nas ciências apenas porque existem as propriedades e padrões abstractos relevantes. Presumivelmente, existem agora propriedades que especificam diversas combinações genéticas e proteicas que por sua vez especificam muitos padrões biológicos além dos que pertencem a espécies reais, como o texugo, o carcaju e a Escherichia coli. (Estes incluem padrões que não podem ser agora exemplificados, dadas as presentes condições físicas do universo.) Contudo, ninguém afirma que além das presentes espécies reais, todos estes padrões constituem uma miríade de outras espécies que agora existem efectivamente — que estão agora presentes no mundo real — mas que por acaso não têm exemplificações. Nada na biologia nos obriga a aceitar essas afirmações, e quaisquer necessidades legítimas da metafísica parecem satisfeitas aceitando-se a existência apenas das propriedades e padrões abstractos. Aparentemente aceitamos a existência efectiva de tipos genuínos ou categorias naturais — espécies, elementos, o canto de uma ave, o trote do cavalo — apenas quando os padrões relevantes encontram um lugar estável, regido por leis, numa ou mais cadeias causais ou sistemas naturais efectivos.20 A maioria dos meros padrões não exemplificados não passa esse teste e — há que observar — o mesmo sucede com a maioria dos padrões exemplificados mas meramente acidentais, por exemplo, uma correlação aleatória entre o peso médio de uma gaivota e o de um casco de cavalo.

A lição aqui aplica-se também, de uma forma ligeiramente diferente, àqueles tipos linguísticos, culturais e tecnológicos que emergem das práticas humanas. As palavras não existem numa língua natural apenas por existirem propriedades que especificam padrões sonoros-e-semânticos admissíveis nessa língua. “Glank” não existe como (um tipo de) palavra efectiva em inglês, com o significado de “jipe jovial” apenas porque existe, sem ter exemplificações, a propriedade ser uma sequência fonética /glank/ usada em inglês com o significado de “jipe jovial”. (Em algumas línguas há palavras sagradas ou tabu que aparentemente só são ou poderiam ser especificadas indirectamente e nunca efectivamente proferidas ou escritas. Porém, e ao contrário destas palavras, “glank” não era, antes de eu escrever este artigo, uma palavra sem exemplificações mas existente em inglês. Não era de todo palavra alguma e continua não sendo uma palavra agora.) Tampouco o tipo sinalético P## (com o significado de “estacionar na grelha”) existe agora em França apenas porque a propriedade ser uma inscrição-P## usada em França com o significado de “estacionar na grelha” existe agora sem ter exemplificações. Pode-se questionar aspectos semelhantes acerca de tipos como a Quinta Sinfonia e tipos tecnológicos como o motor a jacto e o Ford Thunderbird, como observarei em breve.

Vemos assim que, como no caso dos tipos ou categorias naturais, também no caso dos tipos lexicais e sinaléticos temos de distinguir entre a existência dos meros padrões e a existência dos próprios tipos. Como sugeri, os tipos ou categorias naturais parecem, grosso modo, padrões que têm lugar em cadeias causais efectivas. No caso dos tipos que emergem das práticas humanas, por exemplo, tipos lexicais ou sinaléticos, o que mais é preciso, além da existência do padrão e da propriedade que lhe subjaz, para que o próprio tipo exista? Trata-se de uma questão vasta, para a qual uma resposta plena exigiria volumes. Porém, um breve esboço ajudar-nos-á a compreender o sentido em que a Quinta Sinfonia é um tipo indicado.

Julgo ser claro que os tipos lexicais e sinaléticos não vêm a existir porque de algum modo operamos sobre os padrões e propriedades tal como ocorrem, sem exemplificações, em algum céu platónico. Ao invés, esses tipos vêm a existir quando uma dada comunidade estabelece a prática de produzir (e reconhecer) itens sonoros e visuais concretos (ruídos, marcas em rochas, e assim por diante) que exemplificam o padrão relevante e portanto têm a propriedade que lhe subjaz. Essa prática poderá, evidentemente, fazer parte de uma prática mais vasta (de falar uma dada língua ou de usar um conjunto de sinais de trânsito), e estabelecer a prática pode servir uma diversidade de propósitos semânticos, formais e expressivos. Através da prática, a comunidade pode estabelecer uma regra que faz as exemplificações do padrão veicularem (na medida em que são produzidas de acordo com a regra) determinada informação ou significados (por exemplo: “não estacionar!”). Ou o padrão pode ter sido seleccionado por ser extraordinariamente atraente ou interessante de escutar ou observar. A estrutura do padrão pode também permitir que os meios usados para produzir as suas exemplificações (a voz humana, pinceladas de tinta, etc.) sejam usados de maneira a exibir as potencialidades desses meios e que talvez sirvam também para exprimir as emoções e atitudes de quem os usa.

Quando isso sucede (e muito trabalho em semântica, representação e expressão se escreveu acerca do modo como sucede), o padrão em causa adquire ele mesmo uma nova propriedade — nomeadamente, a propriedade de funcionar, para a dita comunidade, de modo a veicular o significado, qualidades formais ou géneros de expressão em causa.21 O padrão adquire esta propriedade porque, grosso modo, a existência da prática comunitária faz que qualquer coisa produzida de acordo com essa prática e que exemplifique o padrão seja ela mesma portadora dessas qualidades ou de qualidades análogas.22 Embora nos casos canónicos de significados linguísticos ou sinaléticos as características em causa não estejam ligadas a quaisquer utilizadores específicos do padrão ou aos criadores efectivos da prática, no caso de determinadas expressões ou sinais essa ligação poderá existir. Na nossa prática comunitária, por exemplo, “sangue, suor e lágrimas”, “Quero estar só” e “Dêem-me a liberdade ou dêem-me a morte!” não são apenas padrões verbais que veiculam significados expressivos e um conteúdo histórico que vai além do significado literal das palavras. Na nossa própria prática, essas expressões estão também ligadas aos indivíduos particulares que produziram originalmente exemplificações das mesmas e deram início à prática. (Entendemos que “I vant to be alone” e as suas exemplificações estão ligadas a Greta Garbo em Grand Hotel: parte da identidade dessa expressão, do como como ela e as suas exemplificações são usadas idiomaticamente na nossa cultura, reside na sua origem na actuação da actriz ali.)23

Quando, por via da passagem à existência de uma prática comunitária, um padrão adquire a propriedade de funcionar para veicular tais qualidades semânticas, formais e expressivas — ou quando o padrão simplesmente adquire a propriedade de ser seleccionado, através da existência da prática, para a produção e reconhecimento pela comunidade — o padrão torna-se um tipo. A propriedade aqui não é a propriedade que subjaz ao puro padrão em si (digamos, a propriedade que especifica os fonemas na frase de Garbo ou a propriedade geométrica que especifica o puro design geométrico que o sinal incorpora). Ao invés, trata-se de uma propriedade do padrão, gosso modo, a propriedade que o padrão tem de ser efectivamente usado na comunidade de maneira a veicular essas qualidades. Além disso, o próprio tipo funciona então, dada a prática comunitária, como uma nova entidade, distinta do padrão puro. Quando o padrão adquire a propriedade em causa, não assume apenas momentaneamente um papel sem que algo novo passe a existir — do modo como, por exemplo, quando Lincoln se tornou presidente dos EUA nada novo foi criado, mas em vez disso uma coisa antiga, Lincoln, ganhou uma nova propriedade. Ao invés, e por razões explicadas adiante, nos casos que nos interessam, uma nova entidade, o tipo, é criada.24 “Dine” em inglês e “dein” em alemão partilham (mais ou menos) o mesmo padrão fonético, mas cada qual é uma palavra distinta desse mesmo padrão e da outra palavra. Analogamente, a cruz gamada no sentido dos ponteiros do relógio usada nas culturas ameríndias pré-colombianas para significar coisas como, ao que parece, o fogo, a mudança das estações, a boa fortuna e a energia, partilha o seu padrão geométrico com a suástica dos nazis. Mas ambas contam como símbolos distintos. Nenhuma é idêntica ao padrão em si. Cada qual veicula um significado diferente, um benigno, o outro maléfico.

Na medida em que há tipos que emergem assim a partir das práticas humanas, esses tipos existem somente através dessas práticas. São portanto entidades temporalmente iniciadas que têm exemplificações próprias. O tipo não existe sem que o padrão adquira efectivamente a propriedade de ser usado na comunidade, da maneira relevante (ou pelo menos de ser deixado em condições de o usarem desse modo), e o padrão não adquire essa propriedade sem que a comunidade efectivamente o use assim (ou esteja preparada para o usar assim).25 O uso do padrão pela comunidade normalmente envolve a produção e reconhecimento de exemplificações do padrão. Para mais, a comunidade não dá apenas início à prática de produzir e reconhecer exemplificações do padrão. Além disso, os membros da comunidade insistirão que qualquer coisa que conte como exemplificação do padrão tem de ser usada do modo especificado pela sua prática efectiva (ou tem pelo menos de ser produzida de maneira que a deixem na posição de ser usada assim) se há que contar essa coisa como uma exemplificação do tipo. (Os nativos não contarão a marca dos nazis como outro exemplo do seu próprio símbolo, por exemplo.) Ao insistirem nisso, e ao recusarem contar qualquer coisa que não seja usada desse modo como exemplificação do seu tipo, os membros da comunidade fazem que o tipo exista enquanto entidade distinta do padrão em si. O tipo existe enquanto tal entidade porque, dada a insistência da comunidade em tratar desse modo as exemplificações do tipo, o tipo emerge como o padrão com uma propriedade essencial que lhe pertence — nomeadamente, a propriedade de ser usado da maneira especificada pela prática (ou de o deixarem em posição de ser usado assim).26

Uma vez que o padrão puro não tem por si mesmo essa propriedade essencialmente, é de facto diferente do tipo. Pelo que, por razões semelhantes, o tipo difere também daqueloutros tipos que podem envolver o mesmo padrão.

Os tipos, tal como emergem das práticas humanas, envolvem todos, grosso modo, as características que acabo de explicar. Como veremos, nem todos são indicados, no sentido de estarem ontologicamente vinculados aos indivíduos particulares que dão origem às práticas que os geram ou às acções particulares pelas quais o fazem. Porém, pelas razões que se acabou de explicar, todos são temporalmente iniciados e distintos dos padrões abstractos que envolvem. Estas ideias aplicam-se também a obras musicais como a Quinta Sinfonia, embora essas obras envolvam uma multidão de características mais profundas e subtis do que os meros tipos lexicais, as expressões idiomáticas ou os símbolos tribais.

Ao compor a Quinta Sinfonia, Beethoven realiza um acto total a de indicação, no qual faz soar, na realidade ou na sua imaginação, sequências de notas, e regista diversos esboços dos temas e passagens. Este acto é realizado num contexto cultural em que as pessoa querem e estabeleceram uma prática de ter padrões sonoros estimulantes fixados e repetidamente trazidos à sua atenção. Ao realizar a naquele contexto, Beethoven estabelece uma prática específica de produzir e reconhecer determinadas exemplificações concretas do padrão S. Porque são produzidas de acordo com essa prática, essas exemplificações veiculam as diversas qualidades formais, semânticas e expressivas que pertencem à Quinta Sinfonia (por contraste, digamos, com a imaginária sinfonia de Satie). Por exemplo, exibirão o estilo sinfónico característicamente beethoveniano. Através dos seus temas ou desenvolvimento podem significar, digamos, as esperanças de Beethoven pela sua liberdade e a dos seus contemporâneos, e podem exprimir a resolução de adversidades e superação de angústias. A Quinta Sinfonia, portanto, é o tipo criado através desta prática, o padrão S na medida em que esse padrão é efectivamente usado na comunidade para veicular essas qualidades (ou deixado em posição de o usarem assim). O tipo em causa difere portanto do puro padrão S em si, que não tem essa propriedade essencialmente, e esse tipo é também distinto de obras imaginárias como a sinfonia de Satie, que envolve o padrão S mas na qual esse padrão tem uma propriedade de uso comunitário diferente que lhe é essencial.

Embora a Quinta Sinfonia, como um tipo que emerge da prática humana seja, portanto, como todos os tipos, temporalmente iniciada, a Quinta Sinfonia é indicada de um modo que não se aplica a todos os tipos semelhantes. Palavras como “dine”, além de artefactos como o motor a jacto, são constituídos através de actividades humanas que seleccionam determinados padrões (de fonemas ou de compressores, turbinas e chassis) para diversos géneros de uso. Porém, esses tipos não estão ligados especificamente aos actos ou agentes individuais que instituíram originalmente a prática. (Alguém que não Frank Whittle poderia ter inventado o motor a jacto.)27 Contudo, de acordo com a teoria dos tipos indicados, a Quinta Sinfonia está ontologicamente ligada ao seu criador específico e especificamente ao seu acto composicional a. Em que sentido existe uma tal ligação? Aqui é preciso cuidado. A questão é mais delicada do que porventura terá sido sugerido em discussões anteriores.

Parte da resposta reside em diversas propriedades da Quinta Sinfonia que envolvem elas mesmas essencialmente Beethoven e o acto a. Na medida em que a Quinta Sinfonia exibe aspectos característicos do estilo composicional de Beethoven e do seu acto particular a — ou na medida em que exprime, digamos, esperança pela liberdade da sua audiência — não pode existir sem que existam Beethoven e o acto a, por razões esboçadas na secção III. Porém, tal ligação não faz ainda da Quinta Sinfonia uma entidade que existe apenas na medida em que é produzida pelo acto a, como propõem os teorizadores dos tipos indicados. Haythoven, um compositor obcecado com o seu célebre contemporâneo Beethoven, poderia, afinal, ter produzido uma obra envolvendo S, expressiva das esperanças de Beethoven (não das de Haythoven) quanto à liberdade dos seus contemporâneos, exibindo aspectos composicionais caracteristicamente beethovenianos e do acto a de Beethoven. Esta obra de Haythoven poderá ou não contar como indicada pelo próprio Haythoven. (Isso depende de se ter ou não de considerar que todos os pastiches do género do de Haythoven estão vinculados aos seus compositores efectivos.) Porém, é certo que não foi indicada por Beethoven. O mero facto de a obra de Haythoven ter propriedades que envolvem essencialmente Beethoven e o acto a de Beethoven é portanto insuficiente para fazer dela uma obra indicada por Beethoven. Analogamente, é preciso algo mais do que a mera posse dessas propriedades pela Quinta Sinfonia para fazer desta uma entidade que pode existir somente através da sua produção por Beethoven e pelo acto a deste compositor.

Há pelo menos dois modos, creio, pelos quais a Quinta Sinfonia poderia afinal ser uma entidade semelhante. Primeiro, considere um modelo de artefacto como o Ford Thunderbird. Concebivelmente, a estrutura física que subjaz a este tipo, incluindo o emblema da Ford no capot, poderia ter sido produzida por uma série de fabricantes. (A Jaguar poderia ter produzido um design idêntico, num acesso de ironia.) Contudo, parece que, por razões relativas a direito de patentes, a prática de criar modelos automóveis (por contraste com tipos genéricos como o sedan de quatro portas) exige que o modelo tenha por essencial a sua origem através do fabricante efectivo.28 A estrutura do Thunderbird, na medida em que ocorre no tipo do modelo automóvel, tem assim por essencial não só o seu uso genérico como um tal standard mas também o facto de esse uso ter sido efectivamente estabelecido pela Ford Motor Company. Algo semelhante se aplica, creio, a obras como a Quinta Sinfonia. Na sua ocorrência na sinfonia, o padrão S, que a sinfonia inclui, tem por essencial o facto de o uso relevante desse padrão ter sido estabelecido por Beethoven por via do seu acto efectivo particular a. (Porém, na ausência de factos como os que se observa no parágrafo seguinte, poderíamos não continuar a reconhecer obras ligadas aos seus originadores desta maneira se muitos compositores diferentes começassem a produzir obras que partilham as mesmas propriedades estruturais, formais e outras.)

Em segundo lugar, diversas propriedades da Quinta Sinfonia podem simplesmente não estar ligadas a Beethoven e ao acto a (como a propriedade de exibir o seu estilo característico de composição, o qual pode, por exemplo, pertencer à obra de Haythoven, bem como às sinfonias do próprio Beethoven). Poderiam, aliás, ser propriedades cuja presença nessa obra consideramos como efeitos causais, sobre a obra, de Beethoven e a sua realização de a. Não raro pensamos que artefactos que não são tipos têm características existentes nos artefactos somente pela causalidade dos próprios actos que produziram os artefactos. Assim, consideramos que a pintura tem o seu padrão de pinceladas apenas através das acções manuais que esse padrão regista visivelmente. Ou consideramos que a presença dos V irregulares e apressados, a representação de corvos sobre o milharal na célebre última pintura de Van Gogh, exibem a efectiva agitação e excitação desconfortável do pintor. Fazemos o mesmo por vezes com obras-tipo. Consideramos a presença de séries abruptas de notas ascendentes e descendentes na obra-tipo como expressivas — por via de o compositor se ter centrado precisamente naquele padrão, digamos — o desconforto do compositor. Ou observamos que a obra exibe características (digamos, as notas B-A-C-H em notação alemã, no final de A Arte da Fuga), cuja presença nessa obra está especificamente ligada ao acto alusivo factual do seu compositor. (Compare os tipos de construção frásica expressiva registados atrás, que consideramos ligados a indivíduos como, por exemplo, Garbo, que produziram os espécimes que especificaram originalmente esses tipos.) Ou observamos uma miríade de outros géneros mais subtis de propriedades, cuja presença na obra consideramos ligada aos actos composicionais efectivos do compositor. Nesses casos — e creio que a Quinta Sinfonia é um deles — será impossível o tipo existir com todas as propriedades que efectivamente tem, excepto por meio da sua produção por aquele compositor particular, por via daqueles actos particulares.

Filósofos como Dodd e Wolterstorff estão portanto errados ao considerarem que todos os tipos são entidades eternas, cuja existência decorre da existência das propriedades eternas que lhes subjazem. Há que distinguir entre os tipos, quer naturais quer artefactuais, e os meros padrões abstractos, cuja existência decorre da existência das propriedades. Por um lado, os tipos naturais parecem existir somente quando os padrões que envolvem desempenham um papel em cadeias causais efectivas na natureza. Esses tipos podem ou não ser temporalmente iniciados, dependendo dos factos físicos acerca do universo. (A espécie corvo é temporalmente iniciada; num universo estacionário, diversas tipos de estrutura subatómica fundamental poderiam não o ser.) Como vimos, há que distinguir, em muitos casos, entre esses tipos e padrões naturais sem exemplificações ou com exemplificações acidentais. Por outro lado, os tipos que são produto de práticas humanas, no sentido explicado atrás, são todos iniciados. Existem somente quando as práticas em causa existem. Alguns desses tipos são indicados e existem somente através dos seus criadores efectivos e dos actos particulares desses criadores, como acabámos de observar nos casos do Ford Thunderbird e da Quinta Sinfonia. Outros, como o motor a jacto, não são indicados.29 Há que distinguir entre todos estes tipos relativos a uma prática e os meros padrões que não estão presentemente envolvidos em quaisquer práticas. (Esses meros padrões desligados de uma prática podem não ter exemplificações — por exemplo, uma disposição de coisas que consista num trombone esmagado e sons de cordas de instrumentos de arco beliscadas — ou podem tê-las. Se têm exemplificações, podem ser naturais — o padrão das passadas de um rato-do-campo; ou humanamente produzidos — a infeliz coincidência de o leitor falar e tropeçar.)

Os tipos que são produtos de práticas humanas são coisas criadas, quer sejam apenas temporalmente iniciados ou indicados num dos modos que acabámos de observar. Como a discussão anterior deverá ter esclarecido, este facto não significa, todavia, que os engenheiros britânicos, a Ford Motor Company e Beethoven fizeram cada qual, de algum modo, existir uma coisa abstracta inteiramente nova a partir do nada, ao contrário do que Dodd parece supor que teria de suceder se os tipos fossem criados (p. 431). Ao invés — e para nos centrarmos no caso musical — Beethoven cria a Quinta Sinfonia realizando o acto a e fazendo que o padrão abstracto S adquira a propriedade essencial de ser usado da maneira especificada pela prática relevante. Não o faz em virtude de agir, de algum modo, sobre S enquanto este paira num céu platónico, mas estabelecendo uma prática que conta sequências sonoras concretas como exemplificações do tipo relevante apenas quando essas sequências têm o padrão puro S e são também produzidas de acordo com a prática. Ele gera assim uma nova coisa capaz de ter muitas exemplificações, uma coisa que tem todas as propriedades formais, semânticas e expressivas que sugeri.30 Contudo, não o faz ex nihilo, assim como não o fazem os seres humanos noutros casos em que criam novas entidades.

Tampouco, como poderia sugerir a conversa sobre o compositor “descobrir” o tipo, Beethoven, por assim dizer, discerne o padrão não exemplificado S, pairando de modo fantasmagórico sobre a paisagem musical, passando então a captá-la criativamente em prol da posteridade. Como foi observado, nada, nem mesmo qualquer entidade fantasmagórica, tem o padrão não exemplificado. Além disso, antes que tenha criado o tipo, é improvável que Beethoven alguma vez inspeccione a totalidade do padrão com vista a fazer a partir dele o tipo. Ao invés, no seu acto contínuo a Beethoven experimenta com diferentes subpadrões de notas que pode inspeccionar. Fá-lo tendo em vista usá-los para construir uma indicação geral de um padrão total de notas S que acaba por ficar subjacente ao tipo que cria. (Pode, na verdade, fazer o tipo geral fazendo subtipos a partir de diversos subpadrões e continuar fazendo-o até ter chegado a S e ao tipo final a que S subjaz.) Além disso, não devemos pensar que há um conjunto pré-existente de interesses humanos que S e somente S irá satisfazer. A situação não é a de que, com tais interesses em vista, Beethoven lança-se a determinar um padrão, que descobre ser S, o qual pode converter num padrão que os satisfaça. Ao invés, o compositor não tem de ter um conjunto definido de interesses ou objectivos em mente, que serviriam para predeterminar algum padrão definido, que existisse independentemente do compositor e que este se esforça por descobrir. Na verdade, à medida que produz uma exemplificação do padrão a que finalmente chega, ou a notação para a mesma, os seus interesses provavelmente mudarão de algum modo, em resposta à sua percepção do tipo em mutação que por essa via estabelece. Embora se possa considerar que toda a multidão de padrões em si mesmos, enquanto meras organizações abstractas, existem independentemente das actividades do compositor, é improvável ser de antemão verdade, acerca de qualquer deles, que seja esse o padrão mais apropriado para realizar os projectos do compositor (ou de seja quem for). Excepto quando problemas composicionais específicos exigem soluções específicas com padrões, a linguagem da descoberta é portanto enganadora para descrever a composição. “Criação” é precisamente a palavra correcta para o género de produção de tipos que descrevi.

Por fim, na secção III vimos que se concebermos a Quinta Sinfonia nos termos do enquadramento simples de propriedades e tipos fornecido por Dodd, então a propriedade associada para essa sinfonia é a propriedade ter a estrutura básica S e ser produzido de uma maneira apropriadamente ligada aos actos de indicação por Beethoven entre 1804–1808. Se a discussão anterior está correcta, então o tipo (no meu sentido) que constitui a sinfonia é o padrão S, passando em seguida essa padrão a ter essencialmente a propriedade de ser usado da maneira especificada pela prática. O padrão S, com essa propriedade, corresponde por sua vez a uma propriedade que pertence a todas as exemplificações da sinfonia. Essa propriedade, que todas essas exemplificações têm na medida em que são exemplificações da mesma, é a propriedade que especifica o padrão S e o uso do padrão S do modo observado. Se introduzirmos agora propriedades associadas de tipos, quando se trata os tipos do modo como fiz atrás, essa propriedade será presumivelmente a propriedade associada da Quinta Sinfonia (tipo). Como se relaciona então essa propriedade associada com a propriedade associada, da secção III, a que acabamos de nos referir?

Se a perspectiva anterior dos tipos está na pista certa, a Quinta Sinfonia é o tipo indicado que emerge através e somente através do acto a de Beethoven, o acto que estabelece a prática que especifica esse tipo. Portanto, para que uma sequência sonora concreta S seja uma exemplificação daquela sinfonia (e não, digamos, da sinfonia de Satie), a prática tem e contar essa sequência sonora tem de ser contada pela prática como usada de acordo com a mesma. Porém, dado o modo como a prática é estabelecida através de a, a sequência sonora pode ser contada pela prática como usada dessa maneira só se a sequência sonora for produzida de um modo apropriadamente ligado (através de partituras, treino musical, etc.) a a. E qualquer sequência sonora S assim ligada a a será contada pela prática como usada dessa maneira. Portanto, podemos considerar a propriedade associada na secção III como equivalente à propriedade associada que acabamos de observar, e que especifica o padrão S e o uso do padrão do modo como sugeri atrás.31

V. Conclusões

Se as observações anteriores estão correctas, não há problemas especiais em entender as obras musicais, do género das que Levinson toma em consideração, como tipos indicados, e há razões para aceitar tal posição. Os argumentos que Dodd apresenta em em contrário dependem de perspectivas erróneas acerca das propriedades e dos tipos e devem portanto ser rejeitadas.

No final do seu artigo, Dodd considera brevemente a possibilidade de a sua perspectiva dos tipos indicados estar errada (pp. 439–440). Contudo, a discussão que faz aí é superficial e pouco convincente. Sugere que Levinson talvez queira dizer que o momento no tempo a que um tipo indicado está ligado é um constituinte desse tipo. Levinson estaria assim a argumentar que o tipo não pode existir sem que todos os seus constituintes existam. Mas, objecta Dodd, os tipos não têm momentos do tempo como constituintes. Dodd sugere também que se os tipos indicados têm momentos do tempo por constituintes então talvez se os devesse entender como eventos ou entidades afins a eventos. No entanto, sublinha, as obras de música — e, podemos acrescentar, todas as outras obras de arte que parecem tipos indicados — certamente não são eventos.

Nessas breves observações, Dodd prossegue em bicos de pés até ao facto que, como observámos na secção III, destrói a sua argumentação contra os tipos não eternos ainda que pressuponhamos a sua perspectiva dos tipos — nomeadamente, o facto de um tipo ou propriedade não poderem existir sem que existam quaisquer entidades que eles envolvam essencialmente. Porém, “constituinte” é o termo de Dodd, não o meu ou de Levinson, e é difícil ver por que razão um defensor dos tipos indicados teria de supor que momentos do tempo são, em qualquer sentido objectável, constituintes desses tipos. Além disso, na minha abordagem atrás, os tipos indicados estão ligados a acções como a acção a de Beethoven. Excepto na medida em que as acções têm relações essenciais com momentos do tempo das suas execuções, os tipos não estão ligados aos momentos do tempo em si mesmos.32 Tampouco é fácil ver por que razão os tipos indicados — por contraste com, digamos, padrões gerais abstractos puros — não poderiam ter vínculos ontológicos a entidades que são ou contêm eventos.

Em todo o caso, não há aqui um problema real. Para fazer uma analogia essencialista, é argumentável que os factos temporais acerca da sua passagem à existência sejam essenciais à identidade de um monumento comemorativo. (Por exemplo, o Vietnam Memorial não teria sido esse memorial se fosse concebido e construído em 1965 em vez de no início da década de 1980.) Contudo, esse facto não é suficiente para fazer do momento da sua concepção e construção um constituinte do monumento em qualquer sentido objectável. Tampouco faz do próprio monumento um evento (embora noutro sentido a estrutura de Maya Lin seja um considerável evento arquitectónico!). O mesmo sucede com os tipos indicados.33

Robert Howell
British Journal of Aesthetics, Vol. 42, nº 2, Abril de 2002, pp. 105–127.

Notas

  1. Desenvolvo este argumento, no caso da literatura, em “Ontology and the Nature of the Literary Work”, Journal of Aesthetics and Art Criticism, vol. 60 (2002), pp. 67–79. ↩︎︎

  2. A ideia de que composições musicais distintas podem partilhar a mesma estrutura sonora foi enfatizada por Jerrold Levinson, Music, Art, and Metaphysics (Ithaca: Cornell U.P., 1990) e por Gregory Currie, An Ontology of Art (Londres: Macmillan, 1989). Para exemplos relacionados, ver Kendall Walton, “Categories of Art”, Philosophical Review, vol. 56 (1970), pp. 334—367, que influenciou estes autores, e “The Presentation and Portrayal of Sound Patterns”, em Jonathan Dancy, J. M. E. Moravcsik, e C. C. W. Taylor (orgs), Human Agency (Stanford: Stanford U.P., 1988), pp. 237—257. Relembre-se também Jorge Luis Borges, “Pierre Menard, Author of Don Quixote”, em Ficciones (New York: Grove Press, 1962). ↩︎︎

  3. Levinson, caps. 4 e 10, centrando-se (como faço adiante) nas composições “clássicas da cultura ocidental, plenamente fixadas em notação” (pp. 64–65). Ignoro alguns pormenores do seu tratamento, como o da p. 78 acerca de “estruturas de meios performativos”, as ideias que introduz adicionalmente em pp. 261–262 e na recensão que fez de Currie em The Pleasures of Aesthetics (Ithaca: Cornell U.P., 1996), cap. 8. Walton, que se afasta de Levinson aqui e ali, desenvolve uma abordagem geral subtil, que identifica uma obra musical (de qualquer género) com um “conjunto de padrões sonoros e quaisquer circunstâncias que contribuam para determinar como as suas execuções são para ser escutadas”. (“Apresentação”, p. 257). Amie Thomasson em Fiction and Metaphysics (Cambridge: Cambridge University Press, 1999) concorda que as obras musicais são abstracta criados, dependentes das actividades dos seus compositores. Currie nega que as obras musicais sejam criadas e estejam ontologicamente vinculadas aos seus compositores particulares. Contudo, supõe ainda que essas obras envolvem essencialmente, além de um tipo sonoro abstracto, o tipo específico de processo histórico pelo qual o compositor descobriu aquele tipo abstracto. ↩︎︎

  4. Currie, p. 58. Para dificuldades na posição alternativa de Currie, de que as obras musicais são tipos de acções, ver a recensão de Levinson. ↩︎︎

  5. Julian Dodd, “Musical Works as Eternal Types”, British Journal of Aesthetics, vol. 40 (2000), pp. 424–440. As referências de página sem outra especificação referem-se a este artigo. Sigo Dodd doravante ao centrar-me na obra de Levinson, embora o ataque fundamental de Dodd se possa alargar também a ideias como as de Walton e Thomasson. ↩︎︎

  6. Dodd, p. 425. Nas pp. 425–426 ele argumenta brevemente que a instrumentação de uma obra também não lhe é essencial. Contudo, essa discussão é mais uma vez bastante superficial e será sem dúvida rejeitada por adversários como Levinson e Walton. ↩︎︎

  7. Peter Kivy, entre outros, defende que as obras musicais são estruturas sonoras puras, eternamente existentes. (Ver as referências em Levinson, cap. 10.) Nelson Goodman e Catherine Elgin, Reconceptions in Philosophy (Indianápolis: Hackett, 1988), cap. 3, rejeitam a ideia de que o texto de Menard, embora idêntico ao de Cervantes, é uma obra diferente. ↩︎︎

  8. Wolterstorff, Works and Worlds of Art (Oxford: Clarendon Press, 1980), pp. 47, 50–51 e 88, e Dodd, pp. 435–436. Wolterstorff fala de categorias, mas trata-as como equivalentes a tipos ou géneros (p. 47). A sua obra, mesmo dadas as críticas seguintes, continua a ser a discussão mais ponderada e extensa de que tenho conhecimento acerca dos tipos e categorias. ↩︎︎

  9. Há aqui uma questão interpretativa. Dodd descreve aquilo a que chamo “propriedade associada” do modo como observámos, como a propriedade que um espécime tem de ter para ser uma exemplificação do tipo (p. 435). Wolterstorff afirma simplesmente que essas propriedades correspondem a categorias ou tipos (p. 47). Ele argumenta então que esta correspondência é de um para um, de modo que toda a propriedade acaba sendo a propriedade associada de K, isto é, ser um K. Dada a aceitação por Wolterstorff da correspondência de um para um e as suas outras observações iniciais (pp. 47–48), ele e Dodd comprometem-se com a tese de que da existência de qualquer propriedade arbitrária decorre a existência de um tipo correspondente, de modo que a tese (b) se aplica a todas as propriedades. Interpreto-os desse modo aqui e na secção IV adiante, onde argumento que a tese (b), assim entendida, é falsa. É possível, contudo, que a afirmação posterior de Wolterstorff (p. 50) possa ser entendida como definidora de uma propriedade associada de um tipo T como, aproximadamente, aquela propriedade P tal que, necessariamente, um item tem P se e somente se exemplifica T. (Há que notar que nem Wolterstorff nem Dodd dão qualquer definição inteiramente explícita de uma propriedade ou tipo associados por via de espécimes.) Numa tal definição, como observado na nota 31, Wolterstorff e Dodd seriam de facto capazes de mostrar que se existe uma propriedade que é deveras uma propriedade associada de um tipo, então também o tipo existe. Dada essa definição, uma forma da tese (b) aplicar-se-á portanto a essas propriedades específicas que são propriedades associadas dos tipos. Contudo, pelas razões apresentadas na secção IV, não será ainda verdade, ao contrário do que sugere a ideia da correspondência de um para um, que a tese (b) se aplica a todas as propriedades. (Só algumas propriedades serão então propriedades associadas no sentido que se acabou de definir.) Tampouco, dada a secção III adiante, será verdade que sejam eternas todas essas propriedades que são propriedades associadas. ↩︎︎

  10. Pressuponho ao longo do texto, na companhia de outros autores recentes, que as abordagens conceptualista e nominalista às propriedades estão excluídas. Se essas abordagens fossem aceites (e há que não esquecer os seus muitos adeptos ilustres), parece que nenhuma propriedade seria eterna no sentido que o argumento de Dodd requer. ↩︎︎

  11. Dodd (p. 437) formula esta propriedade associada algo diferentemente — como (para este caso) a propriedade ser uma exemplificação da Quinta Sinfonia tal como a Quinta Sinfonia é indicada por Beethoven em 1804–1808. Esta formulação dá uma propriedade de segunda ordem, a propriedade de ter a propriedade de ser uma exemplificação da Quinta Sinfonia. Não é ela mesma, excepto de um modo circular, a propriedade que determina a identidade desse tipo indicado. Ao invés, vai aos ombros dessa identidade. Além disso, tal como a minha formulação atrás, a de Dodd envolve uma conexão essencial entre a propriedade associada e entidades contingentes, temporalmente iniciadas. Assim, a sua propriedade associada está aberta ao problema desenvolvido adiante para a propriedade associada que sugiro aqui. ↩︎︎

  12. Para a perspectiva de Wolterstorff acerca das propriedades como eternas, ver o seu pp. 51–53 e 88. ↩︎︎

  13. Fosse o determinismo verdadeiro acerca de um particular contingente, temporalmente iniciado, como Lincoln, uma cadeia causal estender-se-ia a partir de qualquer momento m em que a existência de Lincoln é determinada para Lincoln no seu nascimento em 1809. Da existência dessa cadeia decorreria, creio, que propriedades como ser filho de Lincoln (ou simplesmente ser Lincoln) e a sua complementar existem a partir de m até 1809 bem como entre 1809 e a morte de Lincoln em 1865. Porém, o universo aparentemente não é determinista deste modo, e essas propriedades não existem, portanto, previamente a Lincoln. Contudo, uma vez que Lincoln exista haverá, em circunstâncias normais, cadeias causais — que não têm de ser senão probabilísticas — começando com os eventos que envolvem Lincoln durante 1809–1865 e se estendem para lá da sua morte a qualquer momento arbitrário do futuro f. Parece, além disso, que os eventos estão ligados essencialmente aos eventos que os causam. Portanto (dada essa cadeia causal) será verdade em f que há uma ligação iniciada em f que remonta a Lincoln em 1865 e antes. Porque essa ligação existe em f, propriedades como as mencionadas existirão elas mesmas em f e noutros momentos do tempo após a morte de Lincoln. (A existência da propriedade ser filho de Lincoln em f será constituída, aproximadamente, pela existência em f de uma ligação que começa a partir dos eventos em f e remonta a Lincoln em 1865 e assim torna Lincoln, que não existe efectivamente em f, disponível em f como sujeito de predicações que envolvem a propriedade relacional geral alguém ser filho de alguém. A propriedade ser filho de Lincoln tem assim início em 1809 e persiste, desde que se torne Lincoln disponível deste modo. Usando essa propriedade restrospectivamente, nós em 2002 podemos então considerar Sócrates, que morreu em 399 a.C., e observar que ele não é filho de Lincoln.) Observações semelhantes aplicam-se a proposições singulares que envolvem Lincoln. Para perspectivas relacionadas, ver Robert Merrihew Adams, “Time and Thisness”, em Joseph Almog, John Perry e Howard Wettstein (orgs.), Themes from Kaplan (Oxford: Oxfrod University Press, 1989), pp. 23–42. Agradeço a Julian Dodd pelas perguntas que suscitaram estas observações. ↩︎︎

  14. Dodd, p. 436, e D. M. Armstrong, Universals (Boulder: Westview Press, 1989), cap. 5. Para questões acerca do critério de Armstrong além dos referidos adiante, ver a recensão de Levinson, Philosophical Review, vol. 101 (1992), pp. 654–660. ↩︎︎

  15. Wolterstorff (pp. 48 e 117) aceita tipos (categorias) inconsistentes por razões semelhantes. ↩︎︎

  16. Esta não é uma análise completa. Apenas esboço um critério que concorda com perspectivas comuns e evita as sugestões implausíveis de Dodd. Poder-se-ia desenvolver este critério em termos da posição de que a propriedade f existe em t nos casos em que seja verdade ou não em t que algo é f ou que é não-f. (Compare-se Wolterstorff, pp. 51–53. Wolterstorff adopta essa posição para sugerir que todas as propriedades são eternas, mas ignora o facto de que, antes de Lincoln existir, tanto ser Lincoln como a sua complementar, ser-não-Lincoln, não existem.) A propósito, Dodd (p. 436, nota 19) sugere que a perspectiva de Wolterstorff de que todas as propriedades — e portanto todos os tipos — são eternos é desconfirmada pela sua observação de que ao compor “fazemos que algo se torne uma obra” (p. 88). Contudo, decerto que a ideia é a de que embora Beethoven não crie o tipo (para Wolterstorff eterno) que é a Quinta Sinfonia, ele faz que esse tipo satisfaça pela primeira vez o predicado “é uma obra”. Essa posição está próxima da de Dodd. Para mais acerca da perspectiva de Wolterstorff, ver o seu “The Work of Making a Work of Music”, em Philip Alperson (org.), What is Music?, 2ª ed. (University Park, PA: Penn State Press, 1994). ↩︎︎

  17. Como vimos, Dodd e Wolterstorff pressupõem esta ideia. Levinson não o faz explicitamente, mas supõe que os “tipos implícitos” (“todas as estruturas puramente abstractas que não são inconsistentes”, p. 80) existem assim que se garanta um enquadramento geral de possibilidades. Walton descreve os seus padrões em termos que outros autores usam para os tipos e considera que são dependentes do observador e especificados por propriedades (pp. 240–241). Porém, ele evita prudentemente discutir a metafísica da existência de tipos e propriedades. ↩︎︎

  18. Para teorias sobre propriedades, ver Philip Bricker, “Properties”, em The Encyclopedia of Philospohy Supplement (Nova Iorque: Macmillan, 1996) e Levinson, “Attributes”, em Handbook of Metaphysics and Ontology (Munique: Philosophia Verlag, 1991). ↩︎︎

  19. O que se segue são observações incompletas sobre as categorias e tipos naturais. (Wolterstorff [p. 46] entende as obras de arte e as categorias naturais como duas espécies de categorias, ao passo que Levinson [p. 81] sugere que as espécies biológicas são estruturas ou tipos indicados. Dodd [pp. 435 e 437] reconhece que criança nascida em 1999 e modelos de artefactos contam como tipos.) ↩︎︎

  20. Ignoro questões sobre, por exemplo, a existência, dadas as leis da física, dos elementos transurânicos (einsteinium, meitnerium, etc.) como elementos (tipo) mesmo antes de terem sido sintetizados no início da década de 1950. (Compare-se também com os dentes da galinha, um tipo ao que parece geneticamente definido na galinha, manifesto no passado evolutivo da ave, e capaz de reaparecer dadas certas alterações ambientais.) Mesmo que (como parece pouco claro) esses tipos existam antes de terem exemplificações, têm ainda assim relações causais definidas por meio de leis físicas com o que efectivamente existe. Porém, não é isso o que sucede com muitos dos outros padrões não exemplificados que as propriedades arbitrárias especificam. Ao falar de padrões que têm um lugar em cadeias causais, tenho em mente o género de causalidade de propriedades de ordem superior — aqui alargada aos padrões que as propriedades especificam — a favor do qual argumentam filósofos da ciência como Ron McClamrock, Existential Cognition (Chicago: University of Chicago Press, 1995), cap. 3, e Eliott Sober, The Nature of Selection, 2ª ed. (Chicago: University of Chicago Press, 1994). ↩︎︎

  21. Ao longo desta discussão os leitores devem introduzir, de uma maneira consistente com a mesma, quaisquer teorias do significado, representação e expressão que considerem mais plausíveis. ↩︎︎

  22. O estabelecimento da prática faz que, necessariamente, qualquer coisa que exemplifique o padrão e seja produzida de acordo com a prática tenha as características. Consequentemente, o próprio padrão é usado pela comunidade de modo a veicular essas características ou outras análogas (características análogas caso um padrão e as suas exemplificações não partilhem propriedades univocamente). Portanto, dada a prática, o padrão em si passa a ter essas características. ↩︎︎

  23. Nesses casos o significado da palavra e o significado do falante (e também outras características do uso da língua) combinam-se. Isso é precisamente o que tais tipos expressivos envolvem. ↩︎︎

  24. Num ensaio lúcido que apareceu depois de eu ter concluído o texto deste artigo, Stefano Predelli observa a necessidade de uma nova entidade se, em perspectivas “estruturalistas” como a de Levinson ou (aparentemente) a minha, há que dar lugar à criação da obra musical (“Musical Ontology and the Argument from Creation”, British Journal of Aesthetics, vol. 41 [2001], pp. 279–292; ver p. 289). Conclui, todavia, que essas perspectivas parecem incapazes de satisfazer o critério da criação. Se a minha aobrdagem nesta artigo está correcta, essa conclusão é prematura. ↩︎︎

  25. O tipo existe quando a comunidade se encontra na posição de produzir e reconhecer as exemplificações. Se a comunidade então assim faz ou não dependerá de factores adicionais. Entendo de modo bastante amplo a ideia de a comunidade se encontrar naquela posição. Esta inclui casos em que o compositor faz soar mentalmente uma peça que nunca comunica ou casos em que regista na partitura uma obra que nunca é executada, nem mesmo na imaginação. Porém, tal interpretação ampla não é essencial à minha perspectiva. Reconheço também tipos cuja existência decorre da existência daqueles tipos que a prática comunitária estabelece explicitamente. (Se alguém institui o basebol ou o xadrez, então a comunidade encontra-se em posição de produzir e reconhecer jogadas e movimentos independentemente de estes serem ou não efectivamente produzidos.) A minha explicação da constituição comunitária de uma obra-tipo por via do uso de um padrão poderia tornar-se mais complicada de modo a acolher variações do padrão numa obra. (Por exemplo, sendo alteradas algumas notas, a mesma obra no geral poderia persistir.) Ignoro aqui esses refinamentos. Qualquer pessoa avessa a aceitar padrões além de propriedades deveria observar que a presente explicação dos tipos pode ser reformulada meramente em termos do uso, por uma comunidade, das propriedades associadas (ou em termos do papel causal que tais propriedades desempenham na natureza), embora não defenda aqui tal reformulação. Por fim, a presente explicação dos tipos é independente da perspectiva acerca da existência de propriedades apresentada na secção III. Mesmo se rejeitarmos essa perspectiva, poderemos ainda aceitar a explicação e considerar os tipos indicados como coisas iniciadas. ↩︎︎

  26. A obra-tipo o é assim aproximadamente o padrão puro P que efectivamente tem, por via da prática comunitária, a propriedade essencial E de ser usado da maneira especificada. Ao tratarem o seu uso de exemplificações de P como uma propriedade que necessariamente pertence a algo que conta como uma exemplificação da sua obra o, os membros da comunidade fazem de E uma propriedade que necessariamente pertence ao próprio P tal como P ocorre na sua obra. (Compare-se com a nota 22.) Também fazem que E funcione como propriedade definidora da sua obra (por contraste com alguma outra obra, que não tenha E). Assim, o (a que poderíamos chamar “P-com-E” tem E essencialmente. Portanto o não pode existir sem ter E, De modo que o é distinta de P. O meu discurso neste artigo acerca do padrão como portador de uma propriedade essencial (e do tipo como soma do padrão e dessa propriedade essencial) é para ser entendido como uma abreviação dessa perspectiva. Trata-se, estritamente, não do puro padrão em sim esmo mas da entidade o a que o padrão puro subjaz, que tem a propriedade essencialmente. (A presente concepção da criação de tipos sugere uma abordagem geral, que espero desenvolver ulteriormente, para algumas outras entidades em disputa.) ↩︎︎

  27. O mesmo se aplica também a invenções como o telefone, bem como a diversas melodias e padrões visuais, como observa Thomasson (pp. 132–133) numa discussão abrangente e lúcida dos abstracta, relações de dependência, artefactos e obras de arte. A sua explicação deve ser lida por quem quer que se interesse por estas questões. Ela dá ênfase ao papel das práticas humanas na constituição de diversos géneros de abstracta dependentes, mas é demasiado uniformista no tratamento de todas as obras musicais como tipos indicados, rigidamente ligados aos seus criadores específicos. Tampouco faz qualquer distinção como a que introduzi entre padrões e tipos, nem discute detalhadamente o modo como os abstracta contextualmente vinculados vêm a existir ou aquilo em que consistem as ligações contextuais em casos particulares. ↩︎︎

  28. Tipos como o Thunderbird dão-nos uma razão ulterior para distinguir entre os meros padrões e os tipos. Dado que da existência de propriedades decorre a existência dos padrões, o padrão abstracto de ter uma certa organização de aço, plástico e outros materiais, produzida pela Ford Motor Company, existirá uma vez que a empresa exista, juntamente com uma miríade de outros padrões desse género. (Relembremos a secção III.) Contudo, o modelo real que é o Thunderbird existe apenas quando a empresa efectivamente estabelece esse padrão como standard para produção e reconhecimento. ↩︎︎

  29. Haverá também tipos naturais indicados — padrões com um lugar na causalidade natural, que estejam essencialmente ligados à sua origem em actos naturais particulares? Responder a esta questão depende de teorias científicas sobre tipos naturais. Nenhuma resposta a priori é possível. Levinson (p. 81) sugere que as espécies biológicas poderão ser tipos indicados. ↩︎︎

  30. Relembremos as notas de rodapé 22 e 26 e as observações que seguem. ↩︎︎

  31. Aqui e antes ignorei questões não discutidas por Wolterstorff e Dodd acerca da identidade de propriedades e da unicidade da propriedade associada de um tipo. A presente discussão torna natural (se contornarmos tais assuntos) pensar que a propriedade associada do tipo T é definida aproximadamente como a propriedade P tal que, necessariamente, x exemplifica T se e somente se x tem P (e analogamente para os padrões). Como foi observado na nota 9, da existência de uma propriedade associada, assim definida, decorrerá a existência do tipo correspondente. (Dada essa definição, será então verdadeiro ou falso para cada entidade x que x tem P e, portanto, verdadeiro ou falso que x exemplifica T. Porém, a última não pode ser verdadeira ou falsa a menos que T exista.) Contudo, como também foi observado na nota 9, os argumentos anteriores, na secção IV, mostram que continuará não sendo verdade que todas as propriedades são propriedades associadas, segundo a definição. Da existência de uma propriedade, na maioria dos casos, portanto, não decorrerá a existência de qualquer tipo correspondente. Além disso, nessa definição, tais propriedades associadas e tipos que existem serão amiúde iniciados, pois não raro envolvem essencialmente cadeias causais ou práticas humanas temporalmente iniciadas. ↩︎︎

  32. Note-se também as ressalvas de Levinson em Music, Art and Metaphysics, pp. 163–164 (e na p. 145 da sua recensão de Currie), que prescindem de qualquer requerimento de que os tipos indicados tenham de estar ligados essencialmente a momentos particulares do tempo. ↩︎︎

  33. Agradeço a Anthony Ungar e Ron McClamrock por reacções úteis e a Jerrold Levinson pelo encorajamento e sugestões. A revisão final beneficiou da atenção editorial de Peter Lamarque e de conversas com Amie Thomasson, Robert Stecker e Kendall Walton. A correspondência por email com Julian Dodd (o qual estou certo de que permanece céptico) foi também útil. Para outra defesa dos tipos indicados, ver Saam Trivedi “Against Musical Works as Eternal Types”, British Journal of Aesthetics, vol. 42 (2002), pp. 73–82. ↩︎︎

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