O objetivo deste ensaio é modesto: limito-me a apresentar algumas objeções existentes na bibliografia contra a defesa de Thomas Nagel de que a vida humana é absurda, presente no ensaio “O Absurdo” (1971). Num primeiro momento faço uma apresentação dos argumentos de Nagel que pretendem demonstrar que a vida humana é absurda. Num segundo momento apresento as objeções de Gordon e Luper-Foy: a principal objeção é a de que os argumentos de Nagel não funcionam porque dependem de uma concepção equivocada do processo de justificações.
O que um filósofo quer dizer quando afirma que a vida humana é absurda? Na bibliografia sobre o sentido da vida, dizer que a vida humana é absurda freqüentemente equivale a dizer que a vida humana não tem sentido objetivo. E dizer que a vida humana não tem sentido objetivo, por sua vez, significa dizer que a vida humana não tem valor ou não vale a pena ser vivida. Irei pressupor neste ensaio que estas distinções conceituais captam o que a generalidade dos filósofos pretende dizer com esses termos na discussão sobre o sentido da vida. Deste modo interpretarei que Nagel, ao defender que a vida humana é absurda, está dizendo que a vida humana não tem sentido objetivo.
Nagel aponta como uma característica necessária do absurdo a colisão entre nossas pretensões e a realidade (p. 105). As situações cotidianas podem ser absurdas: é o caso de uma turma de colegas que faz uma festa surpresa para o aniversariante errado ou um galanteador que tem um desarranjo intestinal no meio de uma conquista amorosa. Mas não são essas incongruências humorísticas presentes no dia-a-dia que tornam a vida humana absurda. Para que a vida humana como um todo seja absurda, tal incongruência entre nossas pretensões e a realidade tem de ser universal e tem de se aplicar a todas as pessoas. Essa incongruência universal surge quando nos damos conta de uma “colisão entre a seriedade com que encaramos a nossa vida e a possibilidade perpétua de encarar como arbitrário, ou sujeito à dúvida, tudo o que encaramos com seriedade” (p. 106).
As nossas vidas estão repletas de decisões e exigem uma enorme quantidade de dedicação e seriedade de nossa parte. A intensidade com que cada ser humano pode atribuir importância à sua sobrevivência, vida sexual ou meio social pode variar, mas todo o ser humano, sem distinção, faz atribuições de valor e encara tais atribuições com seriedade. Esta é a nossa avaliação subjetiva ou o nosso ponto de vista “do interior” da vida. O problema é que não podemos evitar olhar para a nossa própria vida de um ponto de vista externo, perspectiva em que todas essas preocupações e atribuições de valor parecem gratuitas. Esta é a nossa avaliação objetiva ou o ponto de vista “do exterior” da vida. O absurdo é o resultado dessa colisão em nós, desse conflito entre o ponto de vista do interior e do exterior da vida. Não podemos deixar de nos dedicar às nossas vidas com seriedade, mas não podemos aplacar a dúvida que põe em causa essa dedicação. Como diz Nagel, “quando adoptamos esta perspectiva e reconhecemos a arbitrariedade do que fazemos, isso não nos descompromete com a vida, e nisso repousa o nosso absurdo” (p. 108). É a isto que chamo o argumento da arbitrariedade, e que pode ser representado da seguinte forma:
P1) Se todo ser humano é capaz de reconhecer que o seu esquema de justificações é arbitrário e não o abandona, a vida humana é absurda.
P2) Todo ser humano é capaz de reconhecer que o seu esquema de justificações é arbitrário e não o abandona.
C1) Logo, a vida humana é absurda.
Uma objeção óbvia a este argumento é que tem as mesmas deficiências do argumento da regressão das justificações, que Nagel descarta como inadequado no início do seu ensaio (p. 105). O argumento da regressão afirma que as atividades de nossas vidas como um todo são injustificadas porque acabam com a morte. Esse argumento enfrenta a objeção de que as justificações para nossas atividades se dão no seio da própria vida e por isso saber se nossas atividades como um todo são injustificadas é irrelevante para a justificação de cada uma dessas atividades. Não preciso de uma justificação maior quando evito ser atropelado por um carro e, pela mesma razão, saber que irei morrer um dia não torna injustificada minha cautela em não ser atropelado. Outra objeção ao argumento da regressão é que se nada pode ser justificado exceto em termos de algo fora de si, caímos numa regressão infinita e a exigência de justificação se torna despropositada. A exigência de justificação tem que parar em algum lugar, afirma Nagel.
Voltemos ao argumento da arbitrariedade: que relação tem este argumento com o argumento da regressão? P2 parece depender da exigência de justificação presente no argumento da regressão. Essa premissa afirma que o nosso sistema de justificações é arbitrário porque não admite qualquer possibilidade de justificação. Mas, podemos perguntar, se não faz sentido procurar uma justificação maior do que as que encontramos no interior da própria vida como podemos afirmar que nossos esquemas de justificação são arbitrários? Esta é uma exigência de justificação do próprio esquema de justificações. Mas se esta exigência é despropositada no argumento da regressão, também será despropositada no argumento da arbitrariedade. Como argumenta Jeffrey Gordon (1981), se não podemos defender que a vida humana é absurda com o argumento de que nossas atividades são injustificadas, também não podemos defender que a vida humana é absurda com o argumento de que o próprio esquema de justificações para as nossas atividades não pode ser justificado. Como a cadeia de justificações tem de acabar, descartamos como inadequado não apenas o argumento da regressão das justificações, mas também o argumento da arbitrariedade.
Nagel tem uma resposta para essa objeção:
O passo atrás crucial não é dado exigindo mais uma justificação na cadeia de justificações, que não existe. As objecções a esta linha de ataque foram já formuladas; as justificações chegam ao fim. Mas é precisamente isto que alimenta a dúvida universal. Damos um passo atrás e descobrimos que todo o sistema de justificação e crítica, que controla as nossas escolhas e sustenta o nosso direito à racionalidade, se apoia em respostas e hábitos que nunca pomos em questão, que não sabemos como defender sem circularidade, e aos quais continuaremos a dar a nossa adesão mesmo depois de serem postos em questão. (p. 107)
A réplica de Nagel é que as objeções direcionadas ao argumento da arbitrariedade “erram o alvo”, pois este argumento não dependeria da exigência de justificações. Tenho fortes suspeitas, no entanto, de que essa defesa de Nagel não passa de contra-senso, uma vez que a arbitrariedade é, por definição, a ausência de justificações. Mas vamos conceder que as coisas sejam assim, por caridade interpretativa. Nesta nova interpretação do argumento, a arbitrariedade das nossas vidas não irá depender da nossa incapacidade de justificar as nossas atividades. Do que dependerá então? Talvez Nagel pretenda dizer que o nosso esquema que determina o que vale ou não vale a pena é arbitrário, não devido à ausência de um fundamento externo, pois não há tal coisa, mas devido à sua contingência e especificidade.
Vista do exterior, a vida humana é contingente e todo o sistema de justificação das nossas escolhas se baseia apenas em preconceitos ou arbitrariedades características de nossa espécie. Todos os critérios que utilizamos para decidir se algo vale ou não a pena representam um aspecto contingente da nossa própria constituição — julgamos que algumas coisas têm valor ou importância devido à nossa atual constituição, mas julgaríamos as coisas de modo diferente se fôssemos diferentes. A importância que Nagel atribui à contingência como um elemento necessário para o absurdo da vida parece ser sugerida na seguinte passagem:
Vemo-nos a partir do exterior, e toda a contingência e especificidade dos nossos objectivos e ocupações tornam-se claras. Contudo, quando adoptamos esta perspectiva e reconhecemos a arbitrariedade do que fazemos, isso não nos descompromete com a vida, e nisso repousa o nosso absurdo (p. 107–108).
Nesta interpretação, o argumento da arbitrariedade pretende nos convencer de que a vida humana é absurda devido à “contingência e especificidade” dos nossos objetivos. Mas qual é a relação entre a contingência e especificidade dos nossos objetivos e a absurdidade da vida humana? Se a vida humana é absurda devido à contingência e especificidade dos nossos objetivos devemos admitir que a vida humana não seria absurda se fosse necessária e geral. Mas, utilizando o mesmo gênero de argumentação que Nagel utiliza contra os defensores do absurdo no início de seu ensaio, não é a contingência e a especificidade da vida humana que fazem a vida ser absurda, se for absurda. Se uma vida é absurda quando é contingente e específica, não será uma vida necessariamente absurda se for necessária?
Nagel pode responder que esta objeção não funciona, pois a contingência e a especificidade dos nossos objetivos constituem um dos elementos necessários para o absurdo da vida humana, e não estariam presentes na situação em que a vida humana é necessária e geral. Mas será mesmo? Steven Luper-Foy (1992: 12) nos pede para imaginar uma versão do mito de Sísifo como um contra-exemplo a essa idéia. Imaginemos que ao invés de ser ordenado pelos deuses a empurrar uma pedra específica para um monte específico, mesmo ciente de que irão rolar monte abaixo quando chegarem ao topo, Sísifo fosse ordenado a empurrar pedras de um modo geral para montes de um modo geral. Além disso, Sísifo não teria qualquer liberdade para escapar desse castigo e terá de empurrar estas pedras necessariamente por toda a eternidade. A vida de Sísifo será absurda em tais situações? De acordo com Nagel deveríamos admitir que não, pois os seus objetivos são gerais e necessários, mas essa conclusão é uma reductio ad absurdum da sua tese. A experiência mental de Luper-Foy nos mostra que o argumento de Nagel não funciona, pois a especificidade e contingência dos nossos objetivos não são elementos necessários para a absurdidade da vida.
Isto remete para outro problema da defesa de Nagel acerca do absurdo da vida: a idéia de que a vida humana só é absurda porque temos autoconsciência:
Por que não é absurda a vida de um rato? A órbita da Lua também não é absurda, mas não envolve quaisquer labutas ou objectivos. Um rato, contudo, tem de labutar para viver. Contudo, não é absurdo porque não tem as capacidades de autoconsciência e autotranscendência que lhe permitiriam ver que é apenas um rato. Se isso acontecesse, a sua vida tornar-se-ia absurda, dado que a autoconsciência não o faria deixar de ser um rato e não lhe permitiria elevar-se acima das suas labutas de rato. (p. 113)
O rato é muito semelhante ao homem devido à especificidade e contingência dos seus objetivos. A diferença crucial é que a vida do rato escapa da absurdidade porque não tem consciência de si. O homem tem consciência, mas desse modo torna sua vida absurda. É por isso que Nagel afirma enfaticamente que a condição principal do absurdo é “obrigar uma consciência transcendente não convencida a ficar ao serviço desse empreendimento imanente e limitado que é uma vida humana” (p. 114).
Podemos assim entender por que Nagel discorda de Camus quando este afirma que a vida humana é absurda porque o mundo não satisfaz nossas exigências de sentido. Se de fato a absurdidade da vida humana for apenas o resultado de um conflito entre o nosso reconhecimento da arbitrariedade de nossas preocupações últimas e nossa incapacidade simultânea de abandonar o nosso compromisso com elas, poderíamos alterar o mundo da maneira que desejarmos, mas a vida humana permaneceria absurda. Somente uma alteração da nossa capacidade de autoconsciência (uma propriedade essencial de todo ser humano) pode modificar a absurdidade da vida.
Esta especificidade da defesa de Nagel do absurdo foi alvo de inúmeras críticas. Gordon, por exemplo, objeta que
Nagel compromete-se assim com a idéia paradoxal de que a vida de uma pessoa que nunca percebe a arbitrariedade da nossa condição humana não é absurda [...] se há algum sentido válido em que a vida humana como tal é absurda, não será possível alterar essa verdade meramente por falhar em ter o insight requerido. (Gordon 1984: 6)
Do mesmo modo, Luper-Foy objeta dizendo que
Nagel quer acrescentar que a existência dessa discrepância não é suficiente para nos tornar absurdos. Somos absurdos apenas se virmos a discrepância. Mas por que cargas de água não dizer que a própria discrepância é absurda? Por que razão o que vemos sub specie aeternitatis não nos impressiona como absurdo a menos que o que estamos a ver seja a nossa absurdidade? A situação de um Sísifo que nunca perde tempo a ver a sua futilidade ao empurrar pedras ainda é absurda. (Luper-Foy 1992: 16)
Essas objeções militam contra a idéia de que o insight a respeito de nossa arbitrariedade é uma condição necessária da absurdidade. Há uma forte intuição realista aqui que nos diz que a contradição entre a arbitrariedade de nossas preocupações humanas e a nossa atitude de seriedade para com as mesmas é suficiente para tornar nossas vidas absurdas — quer reconheçamos essa contradição, quer não. Ao contrário do que Nagel afirma, uma pessoa que não se deu conta da arbitrariedade de suas preocupações não só não irá escapar da absurdidade como irá aumentá-la ainda mais com a sua ignorância. É o que acontece na fábula do rei nu (Gordon: 6): se estivesse ciente da sua nudez, mas precisasse aparecer assim em público isto seria certamente absurdo. Mas não é menos absurdo quando não acredita que está nu. Nagel pode objetar que a idéia de que a absurdidade é apenas a discordância entre nossa seriedade inevitável e a arbitrariedade de nossas ocupações nos leva a admitir que a vida de um rato também é absurda, o que seria uma reductio dessa idéia. Mas por que seria implausível admitir que a vida de um rato é absurda? Mesmo no interior do limitado alcance de suas possibilidades, fixado pelos seus instintos, um rato ainda é um ser vivo com devoção apaixonada à sua sobrevivência. E pura e simplesmente não é óbvio que a vida de animais destituídos de autoconsciência não pode ser absurda — se há alguma razão independente para apoiar a intuição contrária a esta idéia, Nagel não a apresenta no seu ensaio.
A defesa de Nagel do absurdo da vida enfrenta pelo menos duas objeções centrais:
Tais objeções jogam por terra a defesa de Nagel e é difícil imaginar que modificações nos seus argumentos poderiam evitar esses problemas: as objeções parecem apontar defeitos fundamentais na defesa de Nagel. Como os argumentos apresentados em “O Absurdo” não funcionam, podemos seguramente dizer que a tese de Nagel acerca do absurdo da vida foi refutada em definitivo? Quinze anos após a publicação de “O Absurdo”, Nagel apresenta no livro Visão a Partir de Lugar Nenhum (2004) uma nova bateria de argumentos em defesa do absurdo da vida. Ao que tudo indica, contudo, algumas das principais objeções aqui apresentadas ainda se mantêm contra sua defesa.1 Mas este é um tema para outro ensaio.
Matheus Martins Silva
Para um exame detalhado e diversas objeções aos novos argumentos de Nagel confira o trabalho de Steven Luper-Foy (1992) já citado nesse artigo.