“Narrativa” é uma daquelas palavras formidáveis que está a tornar-se cada vez mais comum. Os jornalistas contemporâneos acabaram por adorá-la, mas os seus predecessores das gerações anteriores tê-la-iam desdenhado por ser excessivamente pretensiosa. Mas agora parece moeda corrente — do New York Times à Fox News Network.
Um dos casos em que isto é particularmente evidente foi na cobertura das eleições presidenciais de 2008 dos Estados Unidos. Durante o processo eleitoral, falava-se constantemente das “narrativas” dos candidatos, ou da necessidade de “mudarem a sua narrativa”. O uso surge também em discussões de celebridades, o que não é surpreendente, dado a imprensa tratar muitas vezes os candidatos políticos aproximadamente como celebridades. Além disso, juntamente com a “narrativa”, outros artefactos do jargão narratológico, como “fechamento”, entram também no uso quotidiano. Pois o calão jornalístico, especialmente o da imprensa electrónica, contamina-nos a todos inegavelmente.
Os jornalistas de hoje, ao contrário dos de outros tempos, têm cada vez mais preparação universitária. Muitas vezes são até pós-graduados. De modo que é talvez previsível que adoptem o vocabulário dos seus professores, disseminando-o depois fortemente. “Pós-modernismo” e “desconstrução” são exemplos complementares deste fenómeno. Assim, faz perfeitamente sentido que os jornalistas de hoje espalhem noções como a de “narrativa”, dado que a narrativa tem sido um tópico de grande interesse académico, pelo menos desde os anos 70 do século XX, sobretudo em departamentos de literatura, mas também de psicologia, sociologia e até música. Daí que a narrativa se tenha tornado um artefacto do discurso corrente por força das classes tagarelas.
Contudo, apesar de ser uma preocupação de outras disciplinas académicas, a narrativa não tem constituído um tópico de escrutínio comparável nos departamentos de filosofia. Teve realmente lugar nos debates sobre a natureza da história dos anos 60 do século XX, como aconteceu com o livro de Arthur Danto Analytical Philosophy of History (mais tarde reintitulado Narration and Knowledge). E, talvez em resultado do livro After Virtue, de Alasdair MacIntyre — um livro que sofreu a influência das noções de Hannah Arendt e Paul Ricoeur relativas à identidade narrativa das pessoas — o debate sobre se os eus são constituídos por narrativas de vida entrou no domínio da filosofia anglófona. Contudo, a publicação nesta área continuou escassa até recentemente, mantendo-se em geral afastados entre si os dois domínios de discurso mencionados, apesar de vários artigos deste volume sugerirem que esta distância pode estar a diminuir.
Contudo, como se mencionou, os filósofos interessam-se cada vez mais pela narrativa (indício a favor disto são duas revistas de filosofia que dedicaram recentemente números ao tópico da narrativa: Philosophical Papers 32 (Novembro de 2003) e Mind and Language 19 (Setembro de 2004)). Isto pode acontecer por razões externas à disciplina de filosofia. À medida que o uso e a discussão da narrativa se torna mais comum na cultura em geral, é mais natural que os filósofos lhe prestem atenção e que comecem a analisá-la, dado que uma das tarefas da filosofia é o exame da rede conceptual das nossas ideias e categorias. Logo, como o conceito de narrativa é mais proeminente nas nossas práticas, é de esperar que os filósofos se ocupem mais dele.
Contudo, pode também haver uma pressão no interior da filosofia para nos interrogarmos quanto à narrativa. Recentemente, certos desenvolvimentos na filosofia arte, documentados em revistas como The Journal of Aesthetics and Art Criticism, chamaram quase automaticamente a atenção para a narrativa. O que tenho em mente é o interesse crescente em formas de arte específicas, em contraste com um interesse na Arte com letra maiúscula. Além disso, muitas destas formas de arte — literatura, teatro, cinema, etc. — são predominantemente narrativas. Consequentemente, para dar início a uma filosofia da literatura, por exemplo, é inevitável, com efeito, uma discussão da natureza da narrativa. Assim, uma via para a atenção filosófica agora desperta sobre a narrativa tem a ver com um interesse renovado na estética de formas de arte particulares, especificamente as artes narrativas. E isto, claro, faz de The Journal of Aesthetics and Art Criticism uma plataforma ideal a partir da qual se pode fazer avançar a compreensão filosófica contemporânea da narrativa.
Em qualquer caso, sejam quais forem as causas subjacentes, os filósofos estão agora a explorar a ideia de narrativa com um tipo de energia e acúmen que não víamos desde que Aristóteles escreveu a sua Poética. Além disso, como se pode ver neste volume, os interesses filosóficos na narrativa não são circunscritos, espalhando-se antes por diversas áreas da filosofia, incluindo a metafísica, epistemologia, questões sobre a natureza do carácter, psicologia filosófica, questões relativas à relação da narrativa com as emoções, assim como nas filosofias das formas de arte narrativas individuais.
Uma questão importante na ontologia da narrativa envolve descobrir as condições para re-identificar instâncias da mesma narrativa. A este respeito, “Story Identity and Story Type”, de Aaron Smuts, aborda a noção de a mesma história poder ser contada em meios diferentes. O que é contar a história da Cinderela num texto literário, em desenhos animados e numa apresentação teatral? Poderá exactamente a mesma história ser contada várias vezes? Smuts examina soluções alternativas para esta questão e preocupa-o que, numa teoria estrita da identidade das histórias, aquela que é por hipótese a mesma história nunca poderá ser contada, ao passo que se tivermos uma teoria mais condescendente, será difícil distinguir entre um tipo geral de história e aquela que é por hipótese a mesma história.
Não há apenas preocupações metafísicas relativamente à natureza e identidade das narrativas. Dado que as narrativas pressupõem narradores, levantam-se também questões com respeito à natureza e identidade desses narradores. Em “Imagining De Re and the Symmetry Thesis of Narration”, Nicholas Diehl introduz a discussão sobre se há tipos similares de narradores entre formas de arte diferentes. Terão o filme e a literatura, por exemplo, as mesmas agências narrativas ou agências narrativas simétricas? Diehl responde “sim”. Pelo menos com respeito à existência de narradores ficcionais abrangentes (tanto explícitos como implícitos), há convergência entre as artes narrativas.
A narrativa não levanta apenas questões ontológicas, mas também epistemológicas. Afirma-se muitas vezes que as narrativas — tanto históricas como ficcionais — contribuem para a nossa reserva de conhecimento. Mas alguns filósofos argumentam que isto está para lá do alcance da narrativa, ao passo que outros procuram mostrar como isto se pode fazer. Na Secção II, “Narrative and Epistemology”, o artigo de Paisley Livingston, “Narrativity and Knowledge”, examina cuidadosamente afirmações gerais a favor e contra as contribuições epistémicas da narrativa. Livingston sublinha que nesta área de investigação faz mais sentido prestar atenção aos efeitos reais de narrativas particulares do que oferecer uma teoria — numa ou noutra direcção — sobre o valor epistémico da narrativa.
A discussão sobre se a narrativa é adequada para fornecer valor epistémico é explorada nos dois artigos seguintes desta secção. Em “Contrafactual Narrative Explanation”, Daniel Dohrn sustenta que o que chama “paradigmáticos cenários narrativos contrafactuais” podem contribuir para testar a validade contrafactual de pretensas generalizações. Em contraste, no artigo “Understanding Narratives and Narrative Understanding”, Ismay Barwell faz vibrar uma nota menos confiante. Barwell sublinha que o tipo de coerência que as narrativas têm e que lhes dão uma sensação satisfatória de completude não implica que as explicações narrativas sejam boas. Na verdade, muitas explicações narrativas satisfatórias, incluindo históricas, não são sólidas.
A secção III diz respeito à narrativa e ao carácter. Apesar de poder haver narrativas sem personagens — como a história do Big Bang, o relato da formação dos continentes em resultado do movimento das placas tectónicas da Terra, e a teoria da evolução — é razoável pensar que a maior parte das nossas narrativas, especialmente as que mais nos importam, contêm personagens, pessoas, ou seres que são como pessoas, como a aranha de Charlotte's Web, que detêm traços psicológicos humanos. Muitas vezes, damos vida às personagens lendo em voz alta. Além disso, isto leva-nos outra vez às questões levantadas na secção anterior deste volume, dado que podemos perguntar-nos se as alegadas ideias sagazes que recolhemos das narrativas sobre personagens, nomeadamente personagens ficcionais, são epistemicamente fidedignas.
Em “Narrative and the Psychology of Character”, Gregory Currie passa em revista a relação entre narrativa e personagem e sustenta que foram feitas uma para a outra. Isto sugere que dar atenção a personagens é particularmente apropriado quando se aprecia ficções narrativas; mas, ao mesmo tempo, levanta suspeitas sobre a transferência de pensamentos respigados da contemplação de personagens ficcionais para conclusões sobre pessoas de carne e osso.
Em “Virtual People: Ficcional Characters through the Frames of Reality”, Ira Newman dedica-se a explicar o modo como a nossa entrega a personagens ficcionais pode dar uma contribuição genuinamente cognitiva “para ser usada no mundo real para lá da ficção”. Deste modo, Newman, como Currie, leva-nos de volta aos debates introduzidos na Secção II: podem as narrativas, em particular as narrativas ficcionais, dar-nos algo de autenticamente real com respeito ao conhecimento, especialmente com respeito ao conhecimento sobre pessoas efectivas e os seus caracteres?
Grande parte da nossa relação com as narrativas tem a ver com a nossa relação com personagens e, no caso típico, essas relações têm uma carga emocional. Assim, a Secção IV centra-se na relação entre a narrativa e as emoções. No artigo “In Sympathy with Narrative Characters”, Alessandro Giovannelli dedica-se a esmiuçar a natureza dessa entrega. Sublinha a importância da afinidade na nossa ligação a personagens ficcionais, ao mesmo tempo que defende a perspectiva de que a empatia deve ser entendida como uma componente da afinidade.
Em “Narrative Thinking, Emotion, and Planning”, Peter Goldie discute o modo como as narrativas provocam respostas emocionais, exibindo ao fazê-lo o tipo de resposta afectiva considerada imprescindível ou apropriada perante os acontecimentos e estados de coisas narrados na história. Contudo, Goldie sublinha também que as narrativas, especialmente as literárias, não são como a vida real e, consequentemente, argumenta que não podem ser tomadas como análogos de como viver e como responder emocionalmente a coisas exteriores às ficções. Assim, Goldie faz-nos regressar ao debate sobre a narrativa que perpassa todo este volume, especialmente na secção “Narrative and Epistemology” — nomeadamente, até que ponto podem as narrativas, em particular as ficcionais, dar-nos acesso epistémico a uma realidade não narrativizada e não ficcionalizada.
Este volume abre com os artigos de Smuts e Diehl, que reconhecem que a narrativa é uma prática persistente na imprensa. Smuts e Diehl concentram-se nas questões metafísicas levantadas por esta prática. A última secção deste volume, “Narrative Art Forms”, reabre esta discussão centrando-se em duas formas de arte narrativa que habitualmente são objecto de escassa atenção enquanto narrativas, em particular por parte de filósofos. Esses ensaios são “Narrative in Comics”, de Henry John Pratt, e “Narrative Pictures”, de Bence Nanay, dois ensaios cujos títulos se explicam sem dúvida a si mesmos.
Levantei a hipótese de o interesse filosófico por artes narrativas individuais, como a literatura, cinema e teatro, ser um factor importante do interesse filosófico corrente na narrativa. A este respeito, parece que uma conclusão adequada deste volume é continuar o projecto que começou por dar origem ao interesse actual na narrativa. Assim, concluímos com análises de pinturas e bandas desenhadas narrativas — não para fechar a discussão, mas para a levar por diante.