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Crítica
28 de Dezembro de 2018   Ética

Natureza humana e ciência política

Christopher Berry
Tradução de Matheus Silva

A relação entre fatos e valores pode ser apresentada na forma de um dilema. Se, por um lado, a natureza humana é uma questão de descrição factual (o que é) então como tal não pode prescrever (o que deve ser). Anthony Quinton afirma essa posição claramente: “a natureza dos homens é o conjunto das características definidoras em virtude das quais as coisas que as têm são identificadas como homens”. Essas características são de fato empíricas e assim nenhuma conclusão sobre o que os homens têm a permissão de fazer pode ser retirada do conceito em si (1967, p. 8). Pensar de outro modo seria cometer uma falácia naturalista. […]

Há, contudo, uma tradição de pensamento que é de origem primariamente aristotélica, que não aceita que fatos e valores precisam ser divorciados como o faz o dilema. Essa tradição é representada pela doutrina conhecida como “naturalismo ético”. O que é significativo nessa doutrina, e o que a torna pertinente para os nossos propósitos, é o papel nela desempenhado pelo conceito de natureza humana. […] Podemos começar melhor apresentando a falácia que essa perspectiva aristotélica da política, representada pelo naturalismo ético, é acusada de cometer.

O termo “falácia naturalista” foi introduzido por G. E. Moore e definido por ele como a opinião de que o bem significa uma noção simples ou complexa que pode ser definida em termos de qualidades naturais (1962, p. 73: grifo meu). Segundo Moore, o bem era indefinível e era sempre, em consequência disso, falacioso tentar defini-lo. Em relação ao que se propõe como definição é sempre possível perguntar acerca daquilo que se propõe se é um bem ou não — assim, se A é um bem é o mesmo que A é o que é desejado, é ainda possível perguntar “é um bem desejar A?” (p. 15). Refinamentos consideráveis têm sido feitos ao argumento de Moore de modo que embora R. M. Hare, por exemplo, considere “infeliz” o termo “naturalismo” no uso de Moore e a formulação do seu argumento errada, não obstante considera que o argumento crítico de Moore é “válido” e se baseia, “ainda que de modo inseguro, numa fundação segura” (1961, pp. 82–83). Hare de fato desenvolve um teste similar ao de Moore: “o meu argumento é de que não podemos dizer “x é um bom Asignifica o mesmo que “x é um A que é C”, porque então se torna impossível elogiar os A que são C ao dizer os “A que são C são bons A” (p. 89: grifo meu).

Como o enunciado aqui sugere, o cerne da explicação de Hare sobre a distinção entre descrição e avaliação é que “os termos valorativos têm uma função especial na linguagem: a de elogiar; assim, é claro que não podem ser definidos em termos de outras palavras que não realizam por si essa função” (p. 91). Mais simplesmente, já que “deve ser parte da função de um juízo moral prescrever ou guiar escolhas […] então está claro […] que nenhum juízo moral pode ser uma afirmação de fato puro” (p. 29).

Embora seja definitivo da abordagem de Hare que deve haver uma separação conceitual entre descrição e valoração, todavia ele é capaz de sustentar que “quase toda a palavra em nossa língua é capaz de ser usada ocasionalmente como uma palavra de valor” (p. 79). Ele cita como um exemplo a palavra “brilhante” e depois apresenta “organizado” e “diligente”. Essas duas últimas são exemplos de palavras cujo significado valorativo é secundário ao seu significado descritivo ao passo que, em contraste, com a palavra “bom” essa ordem é revertida com o significado valorativo assumindo prioridade. Hare permite que os termos morais tenham significado descritivo (1963, p. 21), mas nega que isso seja suficiente — tem de haver um elemento prescritivo. Ele acredita que os naturalistas poderão chegar a prescrições se disfarçarem uma palavra valorativa de descritiva. Como exemplos dessa prática ele fornece a palavra “natural” e “normal” (1961, p. 92). Esses termos são “veladamente avaliativos” e Hare acredita que quase todas as “definições naturalistas” desagregam-se quando são testadas contra o critério de que “para ser genuinamente naturalista, uma definição não pode conter qualquer expressão cuja aplicabilidade inclua um critério definido que envolva a criação de um juízo de valor” (1961, p. 92).

Dado isso, como vê Hare a conexão entre a prescrição e a descrição? A resposta é ao tomar uma decisão. Tomar uma decisão é para Hare “a verdadeira essência da moral” (1961, p. 54). Nada no uso das palavras ou em nossos estados psicológicos pode determinar qual é o nosso dever; essa determinação pode somente se seguir de “tomar uma decisão moral” (1961, p. 44) porque no fim “tudo se baseia sobre essa decisão de princípio” (1961, p. 69). Em contraste, (mas veja-se alguns comentários posteriores de Hare que talvez mitiguem o contraste, 1963, p. 97, 195) o que é característico da tradição do naturalismo ético aristotélico é que a prescrição e a descrição estão associadas por meio de um entendimento da natureza humana.

Há duas dificuldades envolvendo essa associação — uma procedimental (por assim dizer) e a outra substantiva. A dificuldade procedimental se baseia no uso deliberado de “associação” como “uma palavra evasiva”. O argumento de Hare (embora, de novo, tenham ocorrido algumas mudanças nessa explicação) bem como o de Moore, é um argumento sobre o significado e a lógica. Para eles, o naturalismo é insustentável porque interpretam a doutrina do acarretamento de modo que bem significa o mesmo que prazer (ou qualquer outro fato proposto), ou é acarretado por ele. Mas isso não é como os naturalistas o vêem (ou pelo menos como eles precisam vê-lo). Isto é, embora haja uma disputa genuína sobre a forma lógica dos argumentos válidos em ética, os naturalistas tendem a não se sentir associados a essa disputa.

Para exemplificar o problema processual podemos citar Stuart Hampshire, que implicitamente vira o feitiço contra o feiticeiro ao denominá-la a falácia de pressupor que todos os argumentos são dedutivos. A sua posição é que “em geral, um tipo de frase pode ser estabelecido e defendido exclusivamente por referência a outro tipo, sem que o primeiro tipo seja dedutível, ou logicamente derivável, do segundo” (1972, p. 51). Isso aplica-se à conexão entre afirmações sobre coisas físicas e afirmações sobre sensações. Também se aplica à conexão entre afirmações sobre o caráter das pessoas e afirmações sobre o seu comportamento. Assim, segue-se que:

Podemos adequadamente elucidar juízos morais ou práticos ao dizer que são estabelecidos e apoiados por argumentos consistindo de juízos factuais de um alcance particular, admitindo ao mesmo tempo que nunca são estritamente dedutíveis ou, nesse sentido, logicamente deriváveis, a partir de qualquer conjunto de juízos factuais. (1972, p. 51)

A ideia de Hampshire com respeito ao procedimento pode ser desenvolvido passando para o segundo problema, o substancial, pois é por meio de uma interpretação da natureza humana que a “elucidação” de Hampshire procede. Charles Taylor concorda que é uma ênfase equivocada se prender ao significado. A tese (continua ele) não é que “bem” significa “conducente à realização de desejos, necessidades e propósitos humanos”, mas que o seu uso é ininteligível fora de qualquer relacionamento com esses desejos, etc. (1973, p. 167). O uso elogioso, prescritivo, valorativo de “bem” deriva da natureza humana ou, como Taylor diz menos diretamente, de qualquer uso de uma “estirpe de seres que são tais que por meio de suas necessidades, desejos, etc., não são indiferentes aos vários resultados dos processos do mundo. Uma estirpe de anjos inativos sem deus, como espectadores realmente desinteressados, não teria qualquer uso para tal coisa [o bem]” (p. 168). É para Taylor um “fato” que os seres humanos não são indiferentes.

Esse tipo de argumento substantivo pode, é claro, ser disputado e quase tudo depende dos fundamentos dessa disputa. De muitas formas, a crítica comum do naturalismo ético consiste em fornecer contra-exemplos — nem todo o mundo, por exemplo, pensa que a felicidade e o bem estão associados. Mais em geral, o naturalismo ético é considerado deficiente por que não pode gerar qualquer explicação definitiva sobre o que é a vida boa para o Homem. Isso não é somente devido à grande diversidade de concepções da vida boa que têm sido mantidas, mas também porque, como John Cottingham expressou, “qualquer característica ou atividade proposta como definitiva da natureza ou essência do homem pode ser negada por um agente humano no sentido de que ele pode conduzir a sua vida sem referência à aquela característica ou atividade” (1983, p. 465). Esta ideia, como Cottingham observará, está no coração do existencialismo. […]

É porque os candidatos a conteúdo da moralidade são disputáveis que Hare considera que os critérios do raciocínio moral residem nas características formais da prescritividade e da universalidade:

Quando estamos tentando decidir em um caso concreto o que devemos fazer, o que estamos buscando […] é uma ação com a qual possamos nos comprometer (prescritividade), mas que estamos ao mesmo tempo preparados para aceitar como algo que exemplifica um princípio de ação a ser prescrito aos outros em circunstâncias similares (universalizabilidade). (1963, pp. 89-90).

A ideia principal aqui é que essas regras de raciocínio moral são eticamente neutras. Não comprometem quem raciocina com qualquer opinião moral particular. Isso tem o efeito de tornar contingente a conexão entre fatos e valores. Nenhuma configuração particular de fatos pode sancionar qualquer conjunto particular de valores; temos sempre a liberdade para escolher ou decidir. Por exemplo, os efeitos redistributivos factualmente demostráveis das taxas progressivas de impostos são consistentes com os juízos de que se deve diminuir as taxas ou de que se deve aumentá-las. Em contraste — e aqui chegamos ao cerne da importância desse debate para os nossos interesses — o papel de uma teoria da natureza humana, nessa tradição aristotélica, é fornecer uma razão para negar essa contingência. Fá-lo ao afirmar que em virtude da natureza do Homem há uma estrutura inevitável do que os seres humanos fazem e do que valorizam. […] Devido a essa estrutura, as formas de existência humana têm um caráter não-contingente e assim há limites aos fatos que podem ser invocados em defesa do juízo moral (Williams, 1972, p. 75). Esta conexão entre “limites” e a natureza humana formará o ingrediente básico do Capítulo Sete, mas há dois pontos de clarificação que devem ser feitos. Em primeiro lugar, isto não afetar a questão de a existência humana poder muito bem ser em si uma questão contingente. Em segundo lugar, e mais significativamente, invocar a ficção científica não é uma objeção real a essa posição. Putnam expressa bem essas invocações quando observa o seguinte:

Se há seres em, digamos, Alpha Centauri, que não podem sentir dor e que não se importam com a morte individual, então muito provavelmente nosso alvoroço sobre “assassinato e sofrimento” lhes parecerá muito barulho por nada. Mas o próprio facto de essa forma de vida ser extraterrestre significa que não podem entender as questões morais envolvidas. Se nossa “objetividade” é objetividade humanamente falando, é ainda assim objetividade suficiente. (1981, p. 168).

Esta ideia da não-contingência pode ser aprofundada por meio de uma elaboração contínua do naturalismo ético. O fundamento do naturalismo ético é que o argumento e a recomendação morais não podem se fundamentar a si próprios na decisão individual. Essa posição é o principal enfoque em um artigo bem conhecido de Philippa Foot. Ela procura demonstrar, contra Hare, que há algumas coisas que contam, e outras que não contam, a favor de uma conclusão moral, e que “um homem não pode decidir por si o que é indício de correção e incorreção moral tal como não pode decidir o que é indício de inflação monetária ou de um tumor do cérebro” (1978, p. 99). Dando o exemplo da “rudeza”, ela afirma que depois de se estabelecer a aceitabilidade desse vocabulário, o termo tem uma aplicação apropriada de modo que “se segue que um homem não pode tomar a sua própria decisão pessoal sobre as considerações que devem contar como indícios na moral” (p. 106). Para Foot, parece “inegável” que conceitos morais como correção, obrigação e dever estão relacionados a conceitos de dano, vantagem e importância. Este argumento é reiterado por, por exemplo, Mary Midgley, quando comenta que “não faz sentido” que as noções morais possam ser contingências vazias (1980, p. 216); o vocabulário moral é relacionado aos desejos e necessidades de seres vivos, de, “mais em particular, seres humanos” (p. 220). Tanto Foot como Midgley concedem tipicamente, é claro, que essas relações não são diretas e que exigem investigação paciente.

O que essa investigação demonstraria é a qualidade não-arbitrária, não-auto-fundamentada do juízo moral. A fonte dessa não-arbitrariedade é a natureza humana. É apenas este sentido não-arbitrário de “natureza” que o naturalista ético precisa invocar (Monro, 1967, p. 121). Ou seja, não há necessidade de estar comprometido com a afirmação “x existe”, portanto “x deve existir”. A natureza não está sendo utilizada como um padrão externo para permitir um critério do que devemos fazer. Se o fosse, o seu uso estaria aberto à crítica de J. S. Mill de que

ou é correto que devemos matar porque a natureza mata; torturar porque a natureza tortura; arruinar e devastar porque a natureza faz semelhante coisa; ou devemos não considerar de todo em todo o que a natureza faz, mas o que é bom fazer. Se alguma reductio ad absurdum existir, é certamente o que isto é. (1904, p. 18).

Sustentar um conceito de natureza é sustentar que os seres humanos têm uma natureza, e em virtude dessa natureza há certos tipos de atividades que são satisfatórias para eles. Assim, os humanos fazem o que fazem porque são o que são. O próprio Mill atesta isso em uma passagem que a crítica de G. E. Moore tornou famosa, nomeadamente: “o único indício que é possível fornecer de que algo é desejável é que as pessoas efetivamente a desejam” (1972, p. 32). Em outras palavras, não tem sentido considerar desejável algo que está fora da experiência humana de um objeto desejado, tal como (para usar um dos exemplos de Foot) não faria sentido considerar que bater as palmas três vezes numa hora é uma boa ação (p. 118).

A natureza humana é a “matéria-prima” da moralidade e ignorá-la, como Hare, limitando a moralidade a princípios formais é, de uma perspectiva naturalista, ignorar a própria razão de ser da moralidade. Para que as regras morais o sejam têm de afetar algo que importa, algo que interessa e não algo trivial. O que é tido como importante tem de ter alguma relação com os interesses humanos (Hampshire, 1965, p. 259). Mesmo que, como Calvino, se considere que o Homem como tal não tem valor porque tudo o que é valioso emana de Deus, o que importa é ainda a resposta adequada a Deus, nomeadamente, viver uma vida cristã de sobriedade, retidão e piedade (1953, vol. 2, p. 9). Estas três constituem então as virtudes humanas e a substância da moralidade humana: viver uma vida luxuriosa, obstinada e ímpia é viver uma vida pior que a comprometida com Deus. Assim, mesmo neste caso nada promissor, a defesa de Geoffrey Warnock de um conteúdo nuclear da moralidade não é destruída. Warnock pergunta retoricamente:

Não será natural, e além disso uma posição perfeitamente defensável, reservar a denominação de ideais morais para aqueles cuja busca supostamente tende efetivamente a fazer o bem ao invés do mal, a fazer as coisas no todo melhores do que piores, ao passo que se considera que não faz parte de qualquer ponto de vista moral os ideais abertamente destrutivos, ou prejudiciais ou sem sentido ou insanos? (1967, p. 59, grifo do autor).

Há um aspecto adicional a extrair das palavras de Warnock. Ele indica que há uma conexão “natural” entre a aceitação de um conjunto de premissas empíricas (o que efetivamente causa dano) e a aceitação de uma conclusão normativa (a moralidade). A fonte dessa “naturalidade” é a natureza do Homem. O obverso disso é que seria “antinatural” ou perverso não associar a moralidade ao bem-estar humano. Todavia, é possível ser perverso. É essa possibilidade que é explorada por Hare e os outros antinaturalistas. Como a conexão entre a moralidade e o bem-estar humano não é uma doutrina lógica de acarretamento estrito, então Hare e os outros são perfeitamente capazes de insistir que não há necessidade aqui — é sempre possível abster-se de aceitar a avaliação (Hare, 1963, pp. 189–190). Talvez seja importante, contudo, observar, em conclusão, que há um sentido em que essa possibilidade é parasitária relativamente à fundação naturalista. Hume (o suposto pai da dicotomia ser/dever ser) fornece na realidade um exemplo deste ponto. Hume rejeita a perspectiva dos “políticos” (ele tem Hobbes e Mandeville em mente) que “extirpariam todo sentido de virtude da humanidade” porque é impossível que o artifício “seja a única causa da distinção que fazemos entre virtude e vício. Pois se a natureza não nos ajudou nesse particular seria em vão que os políticos falariam de honesto e desonesto, digno de elogio e culpa […] a natureza tem de fornecer os materiais e de nos dar alguma noção das distinções morais” (1888, p. 500).

Onde isso nos deixa? Identificamos duas implicações da perspectiva de que a natureza humana enquanto conceito prático tenha uma dualidade prescritiva e descritiva. Na primeira implicação, a natureza humana só poderia ter lugar na ciência política se fosse uma noção descritiva. O carácter prático do conceito, contudo, serviu para tornar esta restrição insustentável. Mas isto não garante necessariamente a conclusão de que o conceito é portanto inútil; ao invés, fornece uma razão para querer uma abordagem mais abrangente do estudo da política. A segunda implicação diz respeito a como noutra perspectiva da política, a aristotélica, a noção de natureza humana é central precisamente em virtude desta dualidade. Nesta perspectiva naturalista, os valores são valorizados pelos homens e mulheres como expressões da sua humanidade constitutiva. Uma teoria da natureza humana sustenta que esta humanidade constitutiva é o fato da questão. Mas, é claro, o contexto que estabelece quais são os fatos relevantes da questão é disputável. Essa disputabilidade origina-se em essência do fato de que evocar a noção de natureza humana é fazer, pelo menos implicitamente, certas afirmações sobre a conduta humana e essas, como verdades práticas, poderiam ser de outro modo.

Christopher Berry
Human Nature: Issues in Political Theory (Londres: Macmillan Education, 1986). Revisão da tradução de Desidério Murcho.

Referências bibliográficas

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ISSN 1749-8457