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Crítica
20 de Janeiro de 2024   Filosofia

Alguém (ou algo) pensa por nós?

José Costa Júnior
What is Philosophy For?
de Mary Midgley
Londres: Bloomsbury, 2018

Partindo do pressuposto de que você viva num local abastecido por água e que esteja equipado por processos de esgotamento sanitário, considere por um momento o complexo sistema de encanamentos que faz com que esse sistema funcione. São muitos tubos e conexões, alguns mais recentes e outros mais antigos. Alguns passaram por consertos e outros continuam com vazamentos, também maiores ou menores, que demandam reparos urgentes ou nem tanto. Trata-se de uma rede vital para a manutenção do seu conforto e da funcionalidade de aspectos banais da sua vida: lavar a louça do almoço e as roupas da semana, tomar banho e beber água todos os dias e manter-se afastado da sujeira. Quando alguma parte ou a totalidade do sistema falhar, você sentirá os efeitos em algum momento: falta de água em função de rompimentos de canos, mau cheiro devido à problemas no esgoto, água suja em função de algum problema na chegada da água. Enfim, um sistema complexo, amplo e vital, elaborado por seres humanos ao longo do tempo e de acordo com as nossas necessidades mais básica. Quando falham, demandam reparos e revisões sob o risco de impactar decisivamente nossas vidas.

Para a filósofa britânica Mary Midgley, é possível traçar uma analogia sobre o papel da filosofia e as situações descritas acima. Nessa analogia, os complexos sistemas de pensamento mediante os quais vivemos são como as redes e tubulações do encanamento de nossas casas e prédios: enquanto funcionam bem, trazem alguma estabilidade, segurança e conforto. No entanto, em algum momento, podem começar a funcionar mal, apresentar problemas e demandarem revisão e reparos. É é aqui a filosofia é necessária: reparar e reestruturar nossos sistemas de pensamento, que muitas vezes possuem problemas que nos passam desapercebidos, mas que impactam decisivamente o modo como pensamos e lidamos com a realidade. Nesse sentido, a filosofia se parece com o “ofício de reparar os encanamentos e as conexões” que formam nossos sistemas de pensamento.

Um exemplo simples envolve a nossa relação com os outros animais e com o meio ambiente em geral: durante séculos, consideramos que o mundo natural estava ao nosso dispor, numa visão de grande alcance que envolvia a crença de superioridade e domínio humano. Desenvolvemos assim modos de vida pautados no extrativismo e no consumo intenso dos recursos naturais. No entanto, em algum momento, esse sistema de pensamento e o conjunto de crenças dele advindo passaram a ser, literalmente, insustentáveis, tanto por suas consequências (o crescente impacto ambiental), quanto por sua fundamentação (entre outros, o alegado fato de que a humanidade possui uma superioridade em relação às outras formas vivas). Uma revisão então se fez necessária, reconsiderando o sistema de pensamento como um todo e promovendo reparações conceituais básicas, que impacta decisivamente no conteúdo das crenças.

Mary Midgley, que nasceu em 1910 e nos deixou em 2018, desenvolveu essa analogia num artigo publicado em 1992, intitulado “Philosophical Plumbing” (“Encanamento filosófico”). Nele, promove também análises acerca dos métodos e do alcance da filosofia, que, ao lidar com os conceitos mais básicos que circunscrevem nossas vidas, não se trata de uma atividade “elevada” ou “distintiva”, mas sim de uma prática fundamental e necessária. Oriunda da tradição filosófica oxfordiana, na qual se formou e também contra a qual se rebelou, Midgley integrou um grupo de mulheres filósofas que contava ainda com Elizabeth Anscombe, Philippa Foot e Iris Murdoch. Esse conjunto manteve-se na vetusta Universidade de Oxford durante a Segunda Guerra, e com a ausência dos homens que estavam na frente de batalha, puderam levantar questões relevantes sobre a prática filosófica de então. O “Quarteto de Oxford” viria a participar de disputas e levantar objeções a posições filosóficas muito difundidas à época, como o emotivismo de A. J. Ayer e prescritivismo de R. M. Hare. Na década de 1980, Midgley também levantou questões às hipóteses do “gene egoísta”, de Richard Dawkins e de E. O. Wilson acerca das hipóteses da sociobiologia para explicar a natureza humana.

Além de tais programas críticos, Midgley desenvolveu uma série de hipóteses muito debatidas sobre a natureza humana (principalmente em Beast and Man: The Roots of Human Nature, de 1978), ética (Heart and Mind: The Varieties of Moral Experience, de 1981) e ética dos animais (Animals and Why They Matter: A Journey Around the Species Barrier, de 1983). Sua última investida, já no final do século XX e começo do século XXI, foi contra o que alegava ser excessos da visão científica na construção de explicações acerca da realidade (Science As Salvation: A Modern Myth and Its Meaning, de 1992) e, novamente, sobre a análise dita evolucionista da experiência humana (The Solitary Self: Darwin and the Selfish Gene, de 2010). Em sua profícua carreira, Midgley publicou 18 livros, incluindo os aqui citados, e muitos artigos, participando ativamente do debate filosófico do seu tempo, além do envolvimento constante no debate público, sobre questões de gênero, ciência, meio ambiente e educação.

Midgley retomou questões sobre o papel e os métodos da filosofia em What is Philosophy For?, livro publicado poucos meses antes de seu falecimento no ano de 2018 e que é uma boa mostra do tipo do trabalho filosófico de Midgley e sua longa carreira. Considerando principalmente o alcance e as expectativas das tecnologias na vida contemporânea, a filósofa promove reflexões importantes sobre perguntas do nosso tempo nesse estimulante livro, escrito na forma de um manifesto e que retoma alguns dos pontos caros à sua filosofia. Em meio à processos de transição, onde dúvidas e esperanças abrem espaços para promessas vazias e discursos pirotécnicos, a leitura de Midgley nos estimula à atenção e ao cuidado com sistemas de pensamento e seus conteúdos muitas vezes frágeis e pouco estruturados, porém grandiloquentes e aparentemente sofisticados. E oferece razões que demonstram o papel (e a necessidade) da filosofia no século XXI. O livro é dividido em cinco partes temáticas e, no que segue, abordamos em separado alguns temas de cada seção para apresentar a obra dessa filósofa relativamente pouco estudada nos países de língua portuguesa.

Na primeira parte (“The search for signposts”) Midgley defende que filosofar não é uma questão de resolver um conjunto fixo e específico de problemas, mas descobrir as muitas formas particulares de pensar que serão mais úteis à medida que tentamos explorar este mundo em constante mudança. Nesse sentido, as construções filosóficas não são finais e seu objetivo é sempre o de nos ajudar nas dificuldades presentes no modo como lidamos com a realidade. Midgley ressalta que a filosofia não compete com as ciências, que fornecem a maioria das nossas visões dominantes da realidade na atualidade. No caso, a filosofia tenta descobrir as formas de pensar que melhor ligarão estas várias visões — umas às outras e ao resto da vida. Ao longo da história, as questões que exigiram os grandes filósofos e filósofas — os grandes abismos que dividem e impactam a vida humana — não irão desaparecer, “do mesmo modo que não desaparecerão os espaços entre as ilhas e os continentes”. Sempre existirão motivos reais para os desentendimentos entre os seres humanos, diferenças de pontos de vista que podem facilmente criar dificuldades para o nosso raciocínio. Assim, nas palavras de Midgley, “a engenharia filosófica sempre será necessária.”

O motivo pelo qual alguns filósofos acabam por ser lembrados (e assim é construída a história da filosofia) não é por terem revelado novos fatos, mas por terem sugerido novas formas de pensar que implicam novas formas de viver — caminhos que eram de fato necessários. Em seus contextos, chamaram a atenção da sua época para absurdos por meio de contrastes, muitas vezes apresentando dificuldades em contraposição a um novo enquadramento e apontando os estranhos princípios. Midgley destaca aqui o fato de que muitas vezes a história da filosofia é relegada por estudiosos, uma vez que desconsideram a relevância das respostas já oferecidas para os problemas e questões em aberto na nossa relação com a realidade. No entanto, em todas as épocas é preciso mais trabalho dessa natureza porque a verdade acerca do mundo é tão complicada e instável como o próprio mundo. Isto não significa que as ideias anteriores tenham se tornado obsoletas, mas sim que as fissuras no interior em em torno destas ideias continuam a apresentar dificuldades e “têm simplesmente de ser ainda mais pensadas, agora com mais cuidado.”

A Parte 2 (“Tempting visions of science”) aborda o papel e os limites da filosofia e da ciência na compreensão da realidade. Midgley aponta que as considerações filosóficas podem trazer para a nossa visão paisagens que nem sequer sabíamos que existiam e considera que podemos chamar isso de “progresso”, mas, se o fizermos, com certeza não podemos dizer que é apenas o “próximo degrau de uma mesma escada”. Nesse contexto, a filosofia não se torna obsoleta, uma vez que o pensamento continua a ser necessário já que as dificuldades da vida que originalmente o convocaram permanecem. No caso da ciência, Midgley identifica sua ascensão como elemento explicativo de “forte e eficaz simbolismo” ainda no século XIX, quando sucedeu à posição de autoridade que costumava ser detida por credos religiosos. No entanto, a concepção fisicista ou materialista central da ciência é o que Midgley identifica como a tentativa de promover a visão de uma “única janela, um conjunto de fotografias tiradas de um ponto de vista particular”. Para ser usada, precisamos sempre de colocá-la juntamente com um contexto das outras ciências e com uma grande massa de conhecimento informal que passa pelo senso comum. “Nunca poderia ser o centro dominante de nossos pensamentos”, uma posição que se aproximaria perigosamente do cientificismo.

Nesse ponto, pode-se facilmente confundir a posição de de Midgley com uma posição anticientífica, quando na verdade, sua análise busca definir melhor o âmbito em que a ciência pode contribuir efetivamente para a compreensão da realidade e de nós mesmos. Os excessos de uma posição que coloca a ciência como único meio adequado para a compreensão da totalidade da realidade são, além de infrutíferos, pouco abertos à reflexão e dogmáticos. A posição cientificista “insistia que estas ciências físicas seriam relevantes muito em breve — na verdade, darão respostas satisfatórias logo que completarem os seus atuais programas de investigação”. No entanto, tais expectativas não se realizam, uma vez que certos aspectos da experiência humana e da realidade parecem não estar disponíveis para o tipo de investigação empírica que a prática científica envolve. É importante ressaltar que Midgley considera a relevância da ciência, inclusive para a prática filosófica (seu primeiro livro, Beast and Man, considera aspectos da biologia evolutiva e da zoologia para uma compreensão mais adequada do animal humano), porém sem que essa concepção seja a explicação última e definitiva para todos os aspectos da existência.

Já na Parte 3 (“Mindlessness and machine-worship”) Midgley aborda questões atuais acerca de nossas expectativas sobre a ciência e seus fins. Destaca inicialmente que a ciência é, afinal de contas, um produto da mente humana, “uma forma de raciocinar entre uma massa de outras formas que todos usamos”. Nesse sentido, “não é uma poção mágica que pode suplantar todas as nossas outras capacidades”. Trata-se de um conjunto de ferramentas, muito recentemente somada à enorme caixa de ferramentas da humanidade, para realizar um conjunto particular de tarefas. Porém, precisamente na época em que as pessoas cultas no Ocidente começavam a perder confiança nas respostas religiosas às grandes questões e em qualquer ideia de um mundo ordenado, surgiu no horizonte um novo oráculo oriundo da ciência, a Máquina, reclamando a autoridade final para oferecer respostas — situação evidenciada pela nossa atual fascinação por computadores e inteligências ditas artificias. E hoje, em vez destas familiares formas de pensar, aquilo que se espera que salve a humanidade é um tipo especial de avanço intelectual, um aumento particular das capacidades, talvez essencialmente capacidades eletrônicas, que se espera nos juntem às máquinas e nos conduzam à alguma salvação.

Dessa forma, em décadas recentes, uma esperança muito comum passou a ser a ampliação da competência das máquinas de modo a cobrir toda uma grande massa de questões de fundo. Tais expectativas tornaram-se tão fortes que fizeram com que as pessoas formassem aquilo que, em tempos anteriores, seria compreendido como uma estranha superstição, uma crença de que, em algum lugar do futuro, as vantagens da inteligência não-humana se combinariam de alguma forma com o pensamento humano para “fornecer oráculos de confiança para todas as dificuldades”. E o momento em que se espera que isso aconteça tem até mesmo um nome: “Singularidade.” Escrevendo em 2018, Midgley adianta alguns dos atuais impasses acerca das expectativas sobre o papel e o impacto das máquinas, debates que foram ampliados nos últimos anos e que envolvem a tensão entre o pensamento humano comum e aquilo que as máquinas poderão ou não fazer (Poderão pensar? Tomar nossos empregos? Melhorar nossas vidas? Ou nada disso?) Em sua análise, Midgley estimula uma visão crítica acerca de tais possibilidades, chamando a atenção para o fato de que, no fundo, quem pensa e quem estrutura as ditas máquinas para pensar (ou não) somos nós.

Já na Parte 4 (“Singularities and the cosmos”) Midgley amplia o desafio à expectativas que considera infundadas, além de defender o pensamento humano como o meio viável para lidarmos com os problemas que a realidade nos impõem. Primeiramente, aponta que muitas das profecias sobre a “inteligência” artificial da máquinas tratam a inteligência como algo quantificável, uma substância padronizada e invariável que, quando empregada em maiores quantidades, produz sempre um melhoramento padronizado no desempenho. Esta forma mítica de falar não tem nada a ver com a forma como a inteligência — e o pensamento em geral — se desenvolve realmente nos seres humanos. A dificuldade aqui presente é que a vida humana contém muitos tipos diferentes de inteligência, uma vez que somos solicitados a tentar tipos diferentes de compreensão e cada um desses desafios necessita do tipo adequado de inteligência.

Para Midgley, o que precisamos é uma atenção das mentes humanas determinadas a dirigir os seus esforços para o conjunto mais difícil de problemas que nos assola, e mudar essa perigosa ilusão contemporânea de que seremos ultrapassados. Toda esta especulação acerca dos pormenores de nossos dispositivos, como se pudessem substituir-nos no trabalho de reformular a civilização, é uma mera (e perigosa) distração. O deslocamento ocorrido durante os dois últimos séculos, da confiança em Deus para um futuro baseado em máquinas, não foi na verdade produzido por qualquer força ou argumento. A sua mitologia, que presentemente se centra na colonização do espaço e inclui a singularidade, não é derivada de fatos; é uma amostra de uma realização ilusória. O que é notável aqui é a velocidade, a prontidão com a imagética baseada em máquinas continua a aparecer para substituir o que se perdeu.

Por fim, na Conclusão, Midgley finaliza seu manifesto, que funciona também como uma defesa da filosofia, considerando seus limites e possibilidades frente ao cientificismo e seus perigosos mitos. Uma motivação geral do livro e da obra de Midgley é em geral a crítica de todo o credo redutor, cientificista, mecanicista e fantasista que continua a distorcer constantemente a imagem do mundo da nossa era. Esse credo, embora com frequência desacreditado durante o último século, continua a ostentar o lisonjeiro nome de mentalidade “moderna”. É reverenciada como a única alternativa possível, situação que limita o nosso pensamento e que pode, muitas vezes, desprezar o questionamento e a reflexão próprias da filosofia. No entanto, é provável que o raciocínio filosófico se manterá bastante importante, na medida em que ninguém nem algo pensará por nós. Será preciso pensar na forma de melhor pensar acerca destes novos e difíceis tópicos e desafios que envolvem nosso tempo — como imaginá-los, como visualizá-los, como inseri-los numa imagem do mundo convincente. E, se não formos nós próprios a fazê-lo, é difícil ver quem poderá fazer isso. Afinal, é sempre preciso ficarmos atentos ao encanamento de nossas casas e também aos fundamentos de nossos sistemas de pensamento.

José Costa Júnior

Referências

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ISSN 1749-8457