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Crítica
27 de Março de 2016   Metafísica

Nominalismo na filosofia da matemática

Otávio Bueno
Tradução de Daniela Moura Soares

O nominalismo quanto à matemática (ou nominalismo matemático) é a perspectiva segundo a qual ou os objetos, as relações e as estruturas matemáticas não existem de todo em todo, ou não existem enquanto objetos abstratos (objetos que nem estão localizados no espaço-tempo, nem têm poderes causais). No último caso, fornece-se alguns substitutos concretos adequados para os objetos matemáticos.

Há, de modo geral, duas formas de nominalismo matemático: aquelas perspectivas que para evitar o compromisso com objetos matemáticos exigem a reformulação das teorias matemáticas — ou científicas — (e.g., Field 1980; Hellman 1989), e aquelas que não reformulam as teorias matemáticas ou científicas, oferendo, ao invés, uma explicação de como nenhum comprometimento com objetos matemáticos está envolvido quando estas teorias são usadas (e.g., Azzouni 2004). Ambas as formas de nominalismo serão aqui examinadas e avaliadas à luz de como abordam cinco problemas centrais na filosofia da matemática (nomeadamente, problemas que lidam com a epistemologia, com a ontologia, e com a aplicação da matemática, bem como com o uso de uma semântica uniforme e com a exigência de que as teorias matemáticas e científicas sejam interpretadas literalmente).

1. Duas perspectivas acerca da matemática: nominalismo e platonismo

Nas discussões ontológicas acerca da matemática, duas perspectivas são proeminentes. Segundo os platonistas, os objetos matemáticos (bem como as estruturas e as relações matemáticas) existem e são abstratos; isto é, não estão localizados no espaço e no tempo, e não têm qualquer conexão causal conosco. Embora esta caracterização dos objetos abstratos seja puramente negativa – indicando o que não são, capta, no contexto da matemática, os aspectos crucias que os objetos em questão supostamente têm. Segundo o nominalismo, os objetos matemáticos (incluindo, doravante, relações e estruturas matemáticas) não existem, ou pelo menos não precisam ser encarados como existentes para que possamos dar sentido à matemática. Portanto, o ônus do nominalista é mostrar como interpretar a matemática sem nos comprometermos com a existência de objetos matemáticos. Isto é na verdade um aspecto central do nominalismo: os que defendem esta perspectiva têm de mostrar que é possível obtermos pelo menos tanto poder explicativo quanto obtém o platonista, invocando, contudo, uma ontologia minimalista. Para consegui-lo, os nominalistas em filosofia da matemática estabelecem interconexões com a metafísica (se os objetos matemáticos existem), com a epistemologia (que tipo de conhecimento temos deles) e com a filosofia da ciência (como dar sentido às aplicações bem-sucedidas da matemática na ciência sem nos comprometermos com a existência de entidades matemáticas). Estas interconexões são uma das fontes da diversidade de perspectivas nominalistas.

Apesar das diferenças substanciais entre nominalismo e platonismo, estas teorias têm pelo menos um aspecto em comum: ambas conhecem muitas formas. Há várias versões de platonismo na filosofia da matemática: o platonismo padrão (ou platonismo baseado em objetos) (Gödel 1944, 1947; Quine 1960), o estruturalismo (Resnik 1997; Shapiro 1997), e o platonismo pleno (Balaguer 1998), entre outras perspectivas. De igual modo, há várias versões de nominalismo: ficcionalismo (Field 1980, 1989), estruturalismo modal (Hellman 1989, 1996), construtivismo (Chihara 1990), a perspectiva ardilosa (Melia 1995, 2000), figuralismo (Yablo 2001), nominalismo deflacionista (Azzouni 2004), nominalismo agnóstico (Bueno 2008, 2009) e perspectivas do faz-de-conta (Leng 2010), entre outras. Analogamente às suas contrapartes platonistas, as diversas propostas nominalistas têm diferentes motivações e enfrentam as suas próprias dificuldades. Tais dificuldades serão sucessivamente exploradas. (Um levantamento crítico de várias estratégias de nominalização em matemática encontra-se em Burgess e Rosen (1997). Os autores abordam detalhadamente tanto as questões técnicas como as questões filosóficas provenientes do nominalismo na filosofia da matemática.)

As discussões sobre nominalismo na filosofia da matemática no século XX começaram aproximadamente com o trabalho que W.V. Quine e Nelson Goodman desenvolveram acerca do nominalismo construtivista (Goodman e Quine 1947). Entretanto, como Quine posteriormente chamou a atenção, quantificar sobre classes era, afinal, indispensável (Quine 1960). Como se tornará claro a seguir, as respostas a este argumento da indispensabilidade têm gerado uma quantidade significativa de trabalho para os nominalistas. E é o foco no argumento da indispensabilidade que tipicamente distingue as perspectivas nominalistas mais recentes na filosofia da matemática — nas quais me centrarei — do nominalismo desenvolvido no início do século XX pela escola polaca de lógica (Simons 2010).

O nominalismo matemático é uma forma de anti-realismo acerca de objetos abstratos. Esta é uma questão independente do problema tradicional do nominalismo acerca de universais. Um universal, segundo um uso bastante comum, é algo que pode ser instanciado por diferentes entidades. Dado que os objetos abstratos não são espaciais nem temporais, não podem ser instanciados. O nominalismo matemático e o nominalismo acerca de universais são, portanto, independentes entre si (veja-se o verbete sobre nominalismo na metafísica). Poder-se-ia argumentar que alguns conjuntos incorporam o modelo de instanciação, pois um conjunto de objetos concretos pode ser instanciado por tais objetos. Não obstante, visto que este mesmo conjunto não pode ser instanciado deste modo — dado que os conjuntos são individuados pelos seus membros, e tão logo os seus membros sejam diferentes, os conjuntos resultantes não são os mesmos —, não é claro que mesmo estes conjuntos sejam instanciados. Concentrar-me-ei aqui no nominalismo matemático.

2. Cinco problemas

Na filosofia da matemática contemporânea, o nominalismo tem sido formulado em resposta às dificuldades enfrentadas pelo platonismo. Contudo, os nominalistas também encontram as suas próprias dificuldades ao desenvolver as suas respostas ao platonismo. Neste contexto, cinco problemas têm de ser abordados:

  1. O problema epistêmico da matemática;
  2. O problema da aplicação da matemática;
  3. O problema da semântica uniforme;
  4. O problema de interpretar o discurso matemático literalmente; e
  5. O problema ontológico.

Tipicamente, os problemas 1 e 5 são considerados dificuldades levantadas ao platonismo, ao passo que os problemas 2, 3 e 4 são comumente encarados como dificuldades colocadas ao nominalismo. (A seguir, discutirei o rigor deste juízo.) Cada um destes problemas será analisado sucessivamente.

2.1 O problema epistêmico da matemática

Dado que o platonismo postula a existência de objetos matemáticos, levanta-se a questão de como obtemos conhecimento acerca deles. O problema epistêmico da matemática é explicar a possibilidade do conhecimento matemático, posto que os objetos matemáticos em si parecem não desempenhar qualquer papel na formação das nossas crenças matemáticas (Field 1989).

Isto é encarado como um problema específico para o platonismo, visto que esta teoria postula a existência de objetos matemáticos, e seria de se esperar que tais objetos desempenhassem um papel na aquisição de conhecimento matemático. Afinal, do ponto de vista do platonista, tal conhecimento é acerca dos objetos matemáticos correspondentes. Contudo, apesar de inúmeras tentativas sofisticadas por parte dos platonistas, ainda há ampla controvérsia acerca de como exatamente tal processo deve ser articulado. Deverá ser entendido via intuição matemática, por meio da introdução de princípios e definições matemáticos adequados, ou requerer-se-á alguma forma de abstração?

Por sua vez, a questão epistêmica é muito menos problemática para os nominalistas, os quais, em primeiro lugar, não estão comprometidos com a existência de objetos matemáticos. Terão de explicar outras coisas, por exemplo: como pode o nominalista explicar a diferença entre um matemático — o qual conhece uma quantidade significativa de matemática — e um não-matemático, que não possui tal conhecimento? A diferença, segundo alguns nominalistas, baseia-se no conhecimento empírico e lógico — não no conhecimento matemático (Field 1989).

2.2 O problema da aplicação da matemática

A matemática é tipicamente usada de forma bem-sucedida nas teorias científicas. Como se pode explicar tal sucesso? Os platonistas supostamente têm uma resposta a este problema. Dado que os objetos matemáticos existem e são referidos pelas nossas teorias científicas de forma bem-sucedida, não é surpreendente que estas teorias sejam bem-sucedidas. A referência aos objetos matemáticos é apenas uma parte da referência àquelas entidades que são indispensáveis às nossas melhores teorias acerca do mundo. Isto dá origem ao problema da aplicabilidade da matemática, em termos do argumento da indispensabilidade.

Na verdade, uma das principais razões para acreditar na existência de objetos matemáticos — há quem afirme que esta é a única razão que não é uma petição de princípio (Field 1980) — é dada pelo uso indispensável da matemática na ciência. A idéia crucial — originalmente formulada por W.V. Quine, e posteriormente articulada, de uma maneira diferente, por Hilary Putnam — é a de que o compromisso ontológico deve restringir-se apenas àquelas entidades que são indispensáveis às nossas melhores teorias acerca do mundo (Quine 1960; Putnam 1971, Colyvan 2001a). Mark Colyvan formulou o argumento nos seguintes termos:

(P1) Temos de estar ontologicamente comprometidos com todas e apenas aquelas entidades que são indispensáveis às nossas melhores teorias do mundo.

(P2) As entidades matemáticas são indispensáveis às nossas melhores teorias do mundo.

Logo, (C) temos de estar ontologicamente comprometidos com entidades matemáticas.

A primeira premissa depende crucialmente do critério ontológico de Quine. Após sistematizar as nossas melhores teorias do mundo numa linguagem de primeira ordem, pode-se ler os seus compromissos ontológicos no valor das variáveis existencialmente quantificadas. Entretanto, como passamos dos compromissos ontológicos de uma teoria para aquilo com o qual temos de estar comprometidos? Este é o estágio no qual a primeira premissa do argumento da indispensabilidade emerge. Se estamos lidando com as nossas melhores teorias do mundo, precisamente aqueles itens que são indispensáveis a essas teorias constituem aquilo com o qual temos de estar comprometidos. (Evidentemente, uma teoria pode quantificar sobre mais objetos do que aqueles que são indispensáveis.) E ao identificar os componentes indispensáveis invocados na explicação de vários fenômenos — e vendo que entre eles se contam as entidades matemáticas —, o platonista está, então, numa posição de dar sentido ao sucesso da matemática aplicada.

Contudo, ocorre que, na verdade, é controverso se o platonista pode realmente explicar o sucesso da aplicação da matemática. Dado que os objetos matemáticos são abstratos, não é claro por que postular tais entidades é útil para compreender o sucesso da matemática aplicada. Pois o mundo físico — composto por objetos localizados no espaço-tempo — não é constituído pelas entidades postuladas pelo platonista. Consequentemente, não é claro por que a descrição correta de relações entre entidades (matemáticas) abstratas é sequer relevante para compreender o comportamento de objetos concretos no mundo físico envolvido na aplicação da matemática. Apenas mencionar que o mundo físico instancia estruturas (ou subestruturas) descritas em termos gerais por várias teorias matemáticas não é suficiente (veja-se, por exemplo, Shapiro 1997). Pois há um número infinito de estruturas matemáticas, e não há qualquer maneira de determinar univocamente qual delas é realmente instanciada — ou mesmo instanciada apenas parcialmente — numa região finita do mundo físico. Há aqui uma genuína sobredeterminação, visto que a mesma estrutura física no mundo pode ser acomodada por muitas estruturas matemáticas diferentes. Por exemplo, os fenômenos da mecânica quântica podem ser caracterizados por estruturas de teoria de grupos (Weyl 1928) ou por estruturas que emergem da teoria dos espaços de Hilbert (von Neumann 1932). Tais estruturas são matematicamente muito diferentes, e não há qualquer modo de decidir empiricamente entre elas.

Apesar da natureza controversa da afirmação do platonista de ser capaz de explicar o sucesso da matemática aplicada, acomodar tal sucesso é tipicamente encarado como uma vantagem significativa do platonismo. De modo menos controverso, o platonista é certamente capaz de descrever o modo como as teorias matemáticas são realmente usadas na prática científica, sem ter de as reescrever. Como tornar-se-á evidente a seguir, isto é uma vantagem significativa da teoria.

O nominalismo, por sua vez, enfrenta a dificuldade de ter de explicar o uso bem-sucedido da matemática na teorização científica. Visto que, segundo o nominalista, os objetos matemáticos não existem — ou pelo menos não são encarados como se existissem —, não é claro como a referência a tais entidades pode contribuir para o sucesso empírico das teorias científicas. Em particular, caso se mostre que a referência a entidades matemáticas é realmente indispensável às nossas melhores teorias do mundo, como pode o nominalista negar a sua existência? Como veremos, surgiram várias perspectivas nominalistas na filosofia da matemática em resposta ao desafio levantado por considerações baseadas na indispensabilidade da matemática.

2.3 O problema da semântica uniforme

Um dos aspectos mais significativos do platonismo é o fato de tal teoria permitir adotar a mesma semântica para o discurso matemático e científico. Dada a existência de objetos matemáticos, as afirmações matemáticas são verdadeiras exactamente no mesmo sentido em que as afirmações científicas o são. A única diferença emerge dos seus respectivos veridadores: as afirmações matemáticas são verdadeiras em virtude de objetos (matemáticos) abstratos e das relações entre eles, ao passo que as afirmações científicas são, em última análise, verdadeiras em virtude de objetos concretos e das relações correspondentes entre tais objetos. Este aspecto é idealizado, no sentido em que pressupõe que, de alguma forma, podemos conseguir extrair o conteúdo empírico das asserções científicas, independentemente da contribuição dada pela matemática que é geralmente usada para expressá-las. Os platonistas defensores do argumento da indispensabilidade insistem que não é possível fazer tal coisa (Quine 1960; Colyvan 2001 a); mesmo alguns nominalistas concordam (Azzouni 2011).

Ademais, como é típico na aplicação da matemática, há também afirmações mistas, as quais envolvem tanto expressões que referem objetos concretos, como expressões que referem objetos abstratos. O platonista também não tem qualquer problema em fornecer uma semântica unificada para estas afirmações, particularmente se o platonismo matemático estiver associado ao realismo acerca da ciência. Neste caso, o platonista é capaz de fornecer uma semântica referencial por completo. Evidentemente, o platonista acerca da matemática não tem de ser realista acerca da ciência — apesar de ser usual combinar o platonismo e o realismo deste modo. Em princípio, o platonista poderia adotar uma forma de antirrealismo acerca da ciência, tal como o construtivismo empirista (van Fraassen 1980; Bueno 2009). Desde que a forma de antirrealismo relativamente à ciência tenha espaço para uma semântica referencial (e muitas têm), o platonista não teria qualquer problema em fornecer uma semântica unificada para a matemática e a ciência (Benacerraf 1973).

Não é óbvio que o nominalista possa trazer tais benefícios. Como se tornará claro em breve, a maior parte das versões de nominalismo exigem uma paráfrase substancial da linguagem matemática. Consequentemente, tem de se oferecer uma semântica distinta para tal linguagem, em comparação com a semântica que é fornecida para o discurso científico.

2.4 O problema de encarar o discurso matemático literalmente

Um benefício análogo do platonismo é que esta teoria permite-nos encarar o discurso matemático literalmente, visto que as expressões matemáticas referem. Em particular, não há qualquer alteração na sintaxe das asserções matemáticas. Portanto, quando os matemáticos afirmam “Há um número infinito de números primos”, o platonista pode encarar esta afirmação literalmente, que descreve a existência de uma infinitude de primos. Na perspectiva platonista, há veridadores óbvios para as afirmações matemáticas: objetos matemáticos e as suas propriedades e relações correspondentes (Benacerraf 1973).

Aqui temos um benefício crucial do platonismo. Se um dos objetivos da filosofia da matemática é fornecer uma compreensão da matemática e da prática matemática, que os platonistas sejam capazes de encarar literalmente os produtos desta prática — por exemplo, as teorias matemáticas — e não tenham de reescrevê-las ou reformulá-las, é uma vantagem significativa. Afinal, o platonista está, deste modo, numa posição de examinar as teorias matemáticas como são realmente formuladas na prática matemática, ao invés de discutir um discurso paralelo oferecido pelas várias reconstruções da matemática dadas por aqueles que evitam o compromisso com objetos matemáticos (como os nominalistas).

A incapacidade para encarar o discurso matemático literalmente é de fato um problema para os nominalistas, os quais tipicamente têm de reescrever as teorias matemáticas relevantes. Conforme se tornará claro de seguida, é recorrente que as estratégias de nominalização para a matemática mudem também a sintaxe ou a semântica das afirmações matemáticas. Por exemplo, no caso do estruturalismo modal, os operadores modais são introduzidos para preservar consenso verbal com o platonista (Hellman 1989). A proposta é a de que cada afirmação matemática S é traduzida em duas afirmações modais: (i) se houvesse estruturas do tipo adequado, S seria verdadeira nestas estruturas, e (ii) é possível que haja tais estruturas. Como resultado, tanto a sintaxe como a semântica da matemática são alteradas. No caso do ficcionalismo matemático, introduz-se operadores de ficção (como “Segundo a aritmética…”) (Field 1989). Uma vez mais, a proposta resultante muda a sintaxe (e, portanto, a semântica) do discurso matemático. Este é um custo significativo destas teorias.

2.5 O problema ontológico

O problema ontológico consiste em especificar a natureza dos objetos com os quais uma concepção filosófica da matemática está comprometida. Poderá a natureza destes objetos ser adequadamente especificada? Serão os objetos em questão tais que simplesmente carecemos de boas razões para acreditar na sua existência? As formas tradicionais de platonismo têm sido criticadas por não conseguirem oferecer uma solução adequada a este problema. Em resposta, alguns platonistas têm argumentado que o compromisso com objetos matemáticos não é problemático, nem misterioso (veja-se, e.g., Hale e Wright 2001). De igual modo, muito embora alguns nominalistas não tenham de estar comprometidos com objetos matemáticos, podem estar comprometidos com outras entidades (como possibilia), as quais também podem dar origem a preocupações ontológicas. O problema ontológico é, deste modo, o de avaliar o estatuto dos compromissos fundamentais de uma teoria.

Três estratégias de nominalização serão discutidas de seguida: o ficcionalismo matemático (Field 1980, 1989), o estruturalismo modal (Hellman 1989, 1996), e o nominalismo deflacionista (Azzouni 2004). As primeiras duas rejeitam a segunda premissa do argumento da indispensabilidade. Fornecem “vias árduas” para o nominalismo (Colyvan 2010), no sentido em que o nominalista tem de desenvolver o trabalho complexo e difícil de mostrar como a quantificação sobre objetos matemáticos pode ser evitada para que se possa construir uma interpretação adequada da matemática. A terceira estratégia rejeita a primeira premissa do argumento, evitando, assim, a necessidade de argumentar a favor da dispensabilidade da matemática (na verdade, do ponto de vista de um nominalista deflacionista, a matemática é fundamentalmente indispensável). Ao reconsiderar o critério de compromisso ontológico de Quine — e sugerir que a quantificação sobre certos objetos não exige a sua existência — esta estratégia fornece uma “via fácil” para o nominalismo.

Embora este panorama não seja evidentemente exaustivo, visto que nem todas as teorias nominalistas serão aqui consideradas, as três perspectivas discutidas são representativas: ocupam pontos distintos no espaço lógico, e têm sido explicitamente desenvolvidas para lidar com os problemas anteriormente especificados.

3. Ficcionalismo matemático

3.1 Aspectos centrais do ficcionalismo matemático

Hartry Field forneceu, numa série de trabalhos, uma estratégia ingênua para a nominalização da ciência (Field 1980, 1989). Contrariamente às teses platonistas, Field não postula a verdade das teorias matemáticas para explicar a utilidade da matemática na ciência. Na sua perspectiva, é possível explicar as aplicações bem-sucedidas da matemática sem qualquer compromisso com objetos matemáticos. Portanto, fica bloqueado aquilo que ele pensa ser o principal argumento a favor do platonismo — que depende da aparente indispensabilidade da matemática à ciência. A natureza nominalista da explicação de Field emerge do fato de não se pressupor que os objetos matemáticos existem. As teorias matemáticas são, portanto, falsas. (Estritamente falando, Field observa, qualquer afirmação matemática existencial é falsa, e qualquer afirmação matemática universal é vacuamente verdadeira.) Ao conceber uma estratégia que mostra como dispensar objetos matemáticos na formulação das teorias científicas, Field rejeita o argumento da indispensabilidade, e fornece razões poderosas para a articulação de uma abordagem nominalista.

Prima facie, pode soar contraintuitivo afirmar que “Há um número infinito de números primos” é falso. Todavia, se os números não existem, este é o valor de verdade apropriado desta afirmação (pressupondo uma semântica comum). Em resposta a esta preocupação, Field (1989) introduz um operador ficcional, em termos do qual pode-se chegar a um acordo verbal com o platonista. No caso em questão, alguém poderia afirmar: “Segundo a aritmética, há um número infinito de números primos”, o que é claramente verdadeiro. Dado o uso de um operador ficcional, a teoria resultante é chamada ficcionalismo matemático.

A estratégia de nominalização formulada pelo ficcionalista matemático depende de dois movimentos inter-relacionados. O primeiro consiste em mudar o objetivo da matemática, que não é encarada como verdadeira, mas sim como algo diferente. Nesta perspectiva, a norma própria da matemática, que guiará o programa de nominalização, é a conservatividade. Uma teoria matemática é conservativa se for consistente com todas as teorias internamente consistentes acerca do mundo, onde estas teorias não envolvem qualquer referência a — nem quantificação sobre — objetos matemáticos, tais como conjuntos, funções, números, etc. (Field 1989, p.58). A conservatividade é mais forte do que a consistência (visto que se uma teoria é conservativa, é consistente, mas não vice-versa). Entretanto, a conservatividade não é mais fraca que a verdade (Field 1980, pp. 16–19; Field 1989, p.59). Field não está, portanto, admitindo um objetivo mais fraco para a matemática, mas apenas um objetivo diferente.

É precisamente porque a matemática é conservativa que, apesar de falsa, é útil. Evidentemente, tal utilidade é explicada sem qualquer compromisso com entidades matemáticas: a matemática é útil porque encurta as nossas derivações. Afinal, se uma teoria matemática M é conservativa, então uma asserção A acerca do mundo físico (isto é, uma asserção que não refere objetos matemáticos) segue-se de M e de um corpo N de tais asserções, apenas se A segue-se de N sozinho. Isto é, dado que temos um corpo suficientemente rico de asserções nominalistas, o uso da matemática não produz quaisquer consequências nominalistas inéditas. A matemática é apenas um instrumento para ajudar-nos nas derivações.

Consequentemente, a conservatividade pode ser empregada para desempenhar o trabalho exigido apenas se tivermos premissas nominalistas por onde começar (Field 1989, p. 129). Como Field chama a atenção, argumentar contra a sua perspectiva afirmando que se adicionarmos alguns fragmentos de matemática a um corpo de afirmações matemáticas (não nominalistas) podemos obter novas consequências que não poderiam ser alcançadas de outro modo (Field 1989, p. 128), é uma confusão. A restrição a asserções nominalistas é crucial.

O segundo movimento do ficcionalista matemático é fornecer tais premissas nominalistas. Field fez isto num caso importante: a teoria gravitacional newtoniana. Ele desenvolve um trabalho que tem uma tradição respeitável: a axiomatização — elaborada por Hilbert — da geometria (Hilbert 1971). Aquilo que Hilbert propôs foi uma formulação sintética da geometria, que desvencilha-se de conceitos métricos, e não inclui, portanto, qualquer quantificação sobre números reais. A sua axiomatização era baseada em conceitos como ponto, estar entre, e congruência. Intuitivamente falando, dizemos que um ponto y está entre os pontos x e z se y é um ponto no segmento de linha cujos pontos finais são x e z. Também intuitivamente, dizemos que o segmento de linha xy é congruente com o segmento de linha zw se a distância do ponto x ao ponto y é a mesma que a do ponto z ao ponto w. Após estudar as propriedades formais do sistema resultante, Hilbert provou um teorema da representação. Mostrou, numa teoria matemática mais forte, que dado um modelo do sistema axiomático para o espaço — que ele havia sugerido —, há uma função d de pares de pontos em números reais não-negativos tal que as seguintes ‘condições de homomorfismo’ são satisfeitas:

i. xy é congruente com zw se, e somente se, d( x, y) = d(z,w), para todos os pontos x, y, z, e w;

ii. y está entre x e z se, e somente se, d(x,y) + d(y,z) = d(x,z), para todos os pontos x, y e z.

Consequentemente, se a função d é encarada como representando distância, obtemos os resultados esperados acerca da congruência e do estar entre. Assim, embora não possamos falar acerca de números na geometria de Hilbert (não há qualquer destas entidades para que se possa quantificar sobre elas), há um resultado metateórico que associa asserções acerca de distâncias com aquilo que pode ser dito na teoria. Field chama contrapartes abstratas de asserções geométricas puras a tais afirmações numéricas, e podem ser usadas para traçar conclusões acerca de afirmações geométricas puras de uma maneira mais fácil. Na verdade, devido ao teorema da representação, as conclusões acerca do espaço, expressáveis sem números reais, podem ser alcançadas muito mais facilmente do que se conseguiria obter por meio de uma demonstração deflacionista a partir dos axiomas de Hilbert. Isto ilustra o ponto de Field de que a utilidade da matemática tem a sua origem no fato de abreviar derivações (Field 1980, pp. 24–29).

Falando de uma maneira aproximadamente correta, aquilo que Field mostrou foi como expandir os resultados de Hilbert acerca do espaço para o espaço-tempo. Analogamente à abordagem de Hilbert, ao invés de formular as leis newtonianas em termos de functores numéricos, Field mostrou que tais leis podem ser reformuladas em termos de predicados comparativos. Por exemplo, ao invés de adotar um functor como ‘o potencial gravitacional de x’, o qual é encarado como tendo um valor numérico, Field emprega um predicado comparativo como ‘a diferença de potencial gravitacional entre x e y é menor do que a diferença de potencial gravitacional entre z e w’. Baseando-se num corpo de teoremas da representação (que desempenha o mesmo papel do teorema da representação de Hilbert na geometria), Field mostra como vários functores numéricos podem ser ‘obtidos’ de predicados comparativos. Contudo, para usar estes teoremas, ele mostrou primeiro como formular as leis newtonianas numéricas (tais como a equação de Poisson para o campo gravitacional) apenas em termos de predicados comparativos. O resultado (Field 1989, pp. 130–131) é o seguinte teorema da representação expandido. Seja N uma teoria formulada apenas em termos de predicados comparativos (sem recorrer a functores numéricos). Para qualquer modelo S de N, cujo domínio seja constituído por regiões de espaço-tempo, existe:

  1. Uma função f bijectiva coordenada espaciotemporal (unívoca até uma transformação de Galileu) mapeando o espaço-tempo de S em quádruplos de números reais;
  2. Uma função g de densidade de massa (unívoca até uma transformação positiva multiplicativa) mapeando o espaço-tempo de S num intervalo de números reias não-negativos; e
  3. Uma função h de potencial gravitacional (unívoca até uma transformação linear positiva) mapeando o espaço-tempo num intervalo de números reais.

Ademais, todas estas funções ‘preservam a estrutura’, no sentido em que as relações comparativas definidas em termos destas funções coincidem com as relações comparativas usadas em N. Além disso, se f, g e h são tomadas como a denotação dos functores apropriados, preservam-se as leis da teoria gravitacional newtoniana, em suas formas functoriais.

Note-se que, ao quantificar sobre regiões de espaço-tempo, Field pressupõe uma perspectiva substancialista do espaço-tempo, de acordo com a qual há regiões de espaço-tempo que não estão completamente ocupadas (Field 1980, pp. 34–36; Field 1989, pp. 171–180). Dado este resultado, o ficcionalista matemático está autorizado a retirar conclusões nominalistas de premissas envolvendo N mais uma teoria matemática T. Afinal, devido à conservatividade da matemática, tais conclusões podem ser obtidas independentemente de T. O papel do teorema de representação expandido é, portanto, estabelecer que, apesar da ausência de quantificação sobre objetos matemáticos, precisamente a mesma classe de modelos é determinada pela formulação da teoria gravitacional newtoniana em termos de functores (como a teoria é normalmente expressa) ou em termos de predicados comparativos (como o ficcionalista matemático prefere). Assim, o teorema de representação expandido garante que o uso da conservatividade da matemática juntamente a afirmações nominalistas adequadas (formuladas por meio de predicados comparativos) não altera a classe de modelos da teoria original: preserva-se as mesmas relações comparativas. Portanto, aquilo que Field forneceu foi uma estratégia de nominalização, e visto que tal estratégia reduz a ontologia, parece uma candidata promissora a uma postura nominalista no que diz respeito à matemática.

Como deverá o ficcionalista matemático abordar teorias físicas, como eventualmente a teoria das cordas, que não parecem ser acerca de objetos concretos observáveis? Uma resposta possível, supondo a ausência de relevância empírica destas teorias, é simplesmente rejeitar que sejam teorias físicas, e por isso, rejeitar que sejam o tipo de teorias para as quais o ficcionalista matemático tenha de fornecer uma contraparte nominalista. Por outras palavras, até ao momento em que estas teorias adquiram a importância empírica relevante, não têm de ser uma preocupação para o ficcionalista matemático. Teorias deste tipo seriam classificadas como parte da matemática, ao invés de serem classificadas como parte da física.

3.2 Metalógica e a formulação da conservatividade

Todavia, é a matemática conservativa? Para estabelecer a conservatividade da matemática, o ficcionalista matemático tem usado resultados metalógicos, como a completude e a compacidade da lógica de primeira ordem (Field 1992, 1980, 1989). A questão, portanto, é se o ficcionalista matemático pode usar estes resultados para desenvolver o programa.

Em dois momentos cruciais, Field fez uso de resultados metalógicos: (a) na sua reformulação da noção de conservatividade em termos nominalisticamente aceitáveis (Field 1989, pp. 119–120; Field 1991), e (b) na sua demonstração nominalista da conservatividade da teoria dos conjuntos (Field 1992). Estes dois resultados são cruciais para Field, visto estabelecerem a adequação da conservatividade para o ficcionalista matemático. Pois (a) estabelece que o ficcionalista matemático pode formular tal noção sem violar o nominalismo, e (b) conclui que a conservatividade é um aspecto que a matemática realmente tem. Contudo, se estes dois resultados não são legítimos, a abordagem de Field não se sustenta. Considerarei agora se estes dois usos de resultados metalógicos são nominalisticamente aceitáveis.

3.2.1 Conservatividade e o teorema da compacidade

Comecemos com (a). O ficcionalista matemático tem dependido do teorema da compacidade para formular a noção de conservatividade de um modo aceitável, isto é, sem referência a entidades matemáticas. Como já foi observado, a conservatividade é definida em termos de consistência. Todavia, esta noção é normalmente formulada ou em termos semânticos (como a existência de um modelo apropriado), ou em termos de teoria da demonstração (em termos de demonstrações adequadas). Como Field reconhece, entretanto, estas duas formulações de consistência são platonistas, visto que dependem de objetos abstratos (modelos e provas), e não são, portanto, nominalisticamente aceitáveis.

A saída do ficcionalista matemático é evitar adentrar-se na metalinguagem para expressar a conservatividade da matemática. A idéia é expressar, na linguagem-objeto, a afirmação de que uma dada teoria matemática é conservativa, introduzindo uma noção primitiva de consistência lógica: ◇A. Assim, se B é uma frase, e B é o resultado de restringir B a entidades não-matemáticas, e M1, …, Mn são os os axiomas de uma teoria matemática M, então a conservatividade de M pode ser expressa pelo seguinte esquema (Field 1989, p. 120):

(C) Se ◇B, então ◇(B* ∧ M1 ∧ … ∧ Mn).

Noutras palavras, uma teoria matemática M é conservativa se é consistente com qualquer teoria consistente B* acerca do mundo físico.

Isto pressupõem, obviamente, que M foi finitamente axiomatizada. Contudo, como podemos aplicar (C) no caso de teorias matemáticas que são não finitamente axiomatizáveis (como a teoria de conjuntos de Zermelo-Fraenkel)? Neste caso, não podemos fazer a conjunção para todos os axiomas da teoria, visto que há um número infinito deles. Field tratou este problema, e sugeriu inicialmente que o ficcionalista matemático poderia usar quantificação substitucional para expressar estas conjunções infinitas (Field 1984). Num apêndice à versão revisada deste ensaio (Field 1989, pp. 119–120), observa que a quantificação substitucional pode ser evitada, dado que as teorias matemáticas e físicas em questão são expressas numa lógica para a qual se a compacidade sustenta-se. Pois neste caso a consistência da teoria num todo é reduzida à consistência de cada uma das suas conjunções finitas.

Há, contudo, três problemas com esta manobra.

  1. Uma preocupação acerca do uso da quantificação substitucional neste contexto envolve a natureza dos casos substitucionais. Se estes últimos se revelarem abstratos, o que será verdadeiro se tais casos substitucionais não forem meras inscrições, então não estão disponíveis para o nominalista. Se os casos substitucionais forem concretos, o nominalista terá de mostrar que há uma quantidade suficiente deles.
  2. O mero enunciado do teorema da compacidade envolve vocabulário de teoria de conjuntos: seja G ser um conjunto de fórmulas; se qualquer subconjunto de G for consistente, então G é consistente. Como podem os nominalistas depender de um teorema cujo o mero enunciado envolve entidades abstratas? Para usar este teorema, exige-se uma reformulação adequada.
  3. Admita-se que é possível reformular tal enunciado sem referir conjuntos. Pode assim o nominalista usar o teorema da compacidade? Como sabe-se bem, a demonstração deste teorema pressupõe a teoria de conjuntos. O teorema da compacidade é normalmente apresentado como um corolário do teorema da completude para a lógica de primeira ordem, cuja demonstração pressupõe a teoria de conjuntos (veja-se, por exemplo, Boolos e Jeffrey 1989, pp. 140–141). Alternativamente, para que o resultado da compacidade se demonstre diretamente, temos de construir o modelo apropriado de G — o qual, uma vez mais, exige teoria de conjuntos. Portanto, a menos que os ficcionalistas matemáticos sejam capazes de fornecer uma estratégia nominalista apropriada para a teoria de conjuntos em si, não estão autorizados a usar este resultado. Noutras palavras, exige-se muito mais trabalho antes de um nominalista do tipo de Field poder apoiar-se em resultados metalógicos.

Entretanto, talvez esta crítica deixe escapar o propósito do programa de Field como um todo. Como vimos, Field não exige que uma teoria matemática M seja verdadeira para ser utilizada. Demanda-se apenas que seja conservativa. Portanto, se M for adicionada a uma corpo B* de afirmações nominalistas, nenhuma conclusão nominalista inédita se obtém que não seja obtida apenas por B*. Noutras palavras, aquilo que a estratégia de Field requer é a formulação de corpos nominalistas apropriados de afirmações, aos quais a matemática possa aplicar-se. O mesmo ponto vale para resultados metalógicos: dado que são aplicáveis a afirmações nominalistas, Field está em casa.

O problema com esta réplica é que envolve o ficcionalista matemático num círculo. O ficcionalista não pode depender da conservatividade da matemática para justificar o uso de um resultado matemático (o teorema da compacidade) o qual é necessário à formulação da própria noção de conservatividade. Pois ao fazê-lo o ficcionalista pressupõe que a noção de conservatividade é nominalisticamente aceitável, e isto é exatamente o ponto em questão. Recorde-se que a motivação de Field para usar o teorema da compacidade era reformular a conservatividade sem ter de pressupor entidades abstratas (nomeadamente, aquelas exigidas pelas explicações semânticas — e de teoria da demonstração — de consistência). Assim, neste aspecto, o ficcionalista matemático ainda não pode usar a noção de conservatividade; de outro modo, o programa num todo não se colocaria de pé. Concluo que, analogamente a qualquer outra parte da matemática, os resultados metalógicos também têm de ser obtidos nominalisticamente. De outro modo, surgem dificuldades para o nominalismo.

3.2.2 Conservatividade e modalidade primitiva

Entretanto, talvez o ficcionalista matemático tenha uma saída. Como vimos, Field explica a noção de conservatividade em termos de uma noção primitiva de consistência lógica: ◇A. E também sugere que esta noção está relacionada ao conceito de consistência de teoria dos modelos — em particular, à formulação deste conceito na teoria de conjuntos finitamente axiomatizável de von Neumann-Bernays-Gödel (NBG). Isto é feito por meio de dois princípios (Field 1989, p. 108):

(MTP#) Se □ (NBG → há um modelo para ‘A’), então ◇A

(ME#) Se □ (NBG → não há qualquer modelo para ‘A’), então ⌝◇A.

Estou seguindo a terminologia de Field: ‘MTP#’ abrevia possibilidade na teoria dos modelos, e ‘ME#’ abrevia existência de um modelo. O símbolo ‘#’ indica que, segundo Field, estes princípios são nominalisticamente aceitáveis. Afinal, são substitutos modais dos princípios platônicos (Field 1989, pp. 103–109):

(MTP) Se há um modelo para ‘A’, então ◇A

(ME) Se não há qualquer modelo para ‘A’, então ⌝◇A.

Poder-se-á argumentar que, usando estes princípios, o ficcionalista matemático estará autorizado a usar o teorema da compacidade. Primeiro, deve-se tentar expressar este teorema de um modo nominalisticamente aceitável. Sem nos preocuparmos muito com detalhes, admitamos, para efeitos de discussão, que a seguinte caracterização cumprirá esta tarefa:

(Compacidade#) Se ⌝◇T, então ∃f A1, …, An[⌝◇(A1 ∧ … ∧ An)],

Onde T é uma teoria e cada Ai, 1 ≤ i ≤ n, é uma fórmula (um axioma de T). A expressão ‘∃f A1…An’ lê-se como ‘há um número finito de fórmulas A1…An’. (Este quantificador não é de primeira ordem. Contudo, não irei insistir na questão de que o nominalista parece precisar de um quantificador de lógica não de primeira ordem para expressar uma propriedade típica da lógica de primeira ordem. Esta é apenas uma das preocupações que estamos deixando de lado nesta formulação.) Esta versão é parasitária da seguinte formulação platonista do teorema da compacidade:

(Compacidade) Se não há qualquer modelo para T, então ∃f A1, …, An tal que não há qualquer modelo para (A1 ∧ … ∧ An).

Para que os ficcionalistas matemáticos estejam autorizados a usar o teorema da compacidade, terão de mostrar que a formulação nominalista (Compacidade#) segue-se da formulação platonista (Compacidade). Neste sentido, se esta última é adequada, então a primeira também o é. Mais precisamente, o que tem de se mostrar é que (Compacidade#) segue-se de um substituto modal de (Compacidade). Afinal, visto que aquilo que está em questão é a legitimidade do teorema da compacidade sob bases nominalistas, seria uma petição de princípio pressupor, desde o começo, a versão platonista completa. Como veremos, há duas maneiras de tentar estabelecer este resultado. Lamentavelmente, nenhum funciona: ambos são formalmente inadequados.

As duas opções começam do mesmo modo. Suponha-se que

(1) ⌝◇T.

Temos de estabelecer que

(2) ∃f A1 …An ⌝◇(A1 ∧ … ∧ An).

Segue-se de (1) e (MTP#) que

(3) ⌝□ (NBG → há uma modelo para ‘T’),

e portanto,

◇(NBG ∧ não há qualquer modelo para ‘T’).

Admita-se o substituto modal para o teorema da compacidade:

(CompacidadeM) □ (NBG → se não há qualquer modelo para ‘T ’, então ∃f A1…An tal que não há qualquer modelo para (A1 ∧ …∧ An)).

Note-se que, visto que o substituto modal é formulado em termos de modelos (ao invés de ser formulado em termos de operador modal), isto ainda não é o que os ficcionalistas matemáticos precisam. Aquilo de que precisam é (Compacidade#), mas temos de mostrar que podem obtê-lo. Neste altura, as opções começam a divergir.

A primeira opção consiste em inferir de (4) e (CompacidadeM) que

(5) ◇(∃f A1…An tal que não há qualquer modelo for (A1 ∧ …∧ An)).

Há, contudo, dificuldades com esta manobra. Primeiro, observe-se que (5) não é equivalente a (2), que é o resultado a ser alcançado. Ademais, contrariamente a (2), (5) é formulada em termos de teoria dos modelos, visto que incorpora uma afirmação acerca da não existência de um certo modelo. E o que é exigido é uma afirmação similar em termos de uma noção primitiva de consistência. Noutras palavras, precisamos da contraparte nominalista de (5), ao invés de (5).

Contudo, (5) tem um aspecto bom. É uma formulação modalizada da consequência da (Compacidade). E visto que (5) apenas expressa a possibilidade de que não há qualquer modelo de um tipo particular, pode-se argumentar que isto é nominalisticamente aceitável. (Como será analisado de seguida, os estruturalistas modais propõem uma estratégia de nominalização explorando a modalidade deste modo; veja-se Hellman (1989).) Field, contudo, é cético acerca desta manobra. Na sua perspectiva, a modalidade não é um substituto genérico da ontologia (Field 1989, pp. 252–268). E uma das suas preocupações é que, ao permitir a introdução de operadores modais, como uma estratégia genérica de nominalização, eliminamos o conteúdo físico da teoria em consideração ao modalizá-lo. Contudo, visto que não é de esperar que as afirmações metalógicas tenham consequências físicas, a preocupação não tem de surgir aqui. Mais precisamente, dado que (5) não estabelece aquilo que tem de ser estabelecido, não resolve o problema.

A segunda opção consiste em passar para (5’) ao invés de (5):

(5’) □ (NBG → ∃f A1…An tal que não há qualquer modelo para (A1 ∧ …∧ An)).

Note-se que se (5’) fosse estabelecido, teríamos resolvido a questão. Afinal, com uma simples reformulação de (ME#) — nomeadamente, se □ (NBG → ∃f A1…An tal que não há qualquer modelo para (A1 ∧ …∧An)), então ⌝◇(A1 ∧ …∧ An) —, segue-se de (5’) e (ME#) que

(2) ∃f A1…An ⌝◇(A1 ∧ …∧ An),

que é a conclusão de que precisamos. O problema aqui é que (5’) não se segue de (4) e (CompacidadeM). Logo, não podemos derivar isto.

Claramente, pode muito bem haver uma outra opção que estabeleça a conclusão pretendida. Entretanto, o ficcionalista matemático tem de, no mínimo, apresentá-lo, antes de estar autorizado a usar resultados metalógicos. Até então, não é claro que estes resultados sejam nominalisticamente aceitáveis.

3.2.3 Metalógica e a prova da conservatividade da teoria de conjuntos

Passo agora à questão (b): a prova nominalista de Field da conservatividade da teoria dos conjuntos. Admita-se que o conceito de conservatividade foi formulado de um modo nominalisticamente aceitável. Se a demonstração de Field estivesse correta, ele teria demonstrado que a própria matemática é conservativa — se pressupomos as reduções usuais da matemática à teoria de conjuntos. Como demonstra Field a conservatividade da teoria de conjuntos? Por meio de um argumento engenhoso, que adapta uma das demonstrações platonistas de Field da conservatividade (Field 1980). Para os nossos propósitos, não temos de analisar os detalhes deste argumento, mas simplesmente observar que num ponto crucial a completude da lógica de primeira ordem é usada para estabelecer a sua conclusão (Field 1992, p. 118).

O problema com esta manobra é que, mesmo que os ficcionalistas matemáticos formulem o enunciado do teorema da completude sem referir entidades matemáticas, a demonstração deste teorema pressupõe a teoria de conjuntos (veja-se, por exemplo, Boolos e Jeffrey 1989, pp. 131–140). Logo, os ficcionalistas não podem usar o teorema sem destruir o seu nominalismo. Afinal, a questão de fornecer uma demonstração nominalista da conservatividade da teoria de conjuntos é mostrar que, sem se recorrer à matemática platonista, o ficcionalista matemático é capaz de estabelecer que a matemática é conservativa. Field ofereceu um argumento platonista para o resultado da conservatividade (Field 1980) — um argumento que invoca explicitamente propriedades da teoria de conjuntos. A idéia foi fornecer uma redução do platonismo: usando a matemática platonista, Field tentou estabelecer que a matemática era conservativa e, assim, dispensável em última análise. Em contraste com a estratégia anterior, o objetivo era fornecer uma demonstração da conservatividade da teoria de conjuntos que um nominalista pudesse aceitar. Contudo, visto que a demonstração nominalista depende do teorema da completude, não é claro de todo em todo que seja realmente nominalista. Os ficcionalistas matemáticos devem primeiro conseguir provar o resultado da completude sem pressupor a teoria de conjuntos. Alternativamente, devem fornecer uma estratégia de nominalização para a própria teoria de conjuntos, o que os autorizará, então, a usar resultados metalógicos.

Todavia, poder-se-á argumentar que o ficcionalista matemático exige apenas a conservatividade da teoria de conjuntos na qual se demonstra o teorema da completude. Deve ser claro, agora, que esta réplica é inteiramente uma petição de princípio, visto que o problema em questão é exatamente provar a conservatividade da teoria de conjuntos. Deste modo, o ficcionalista não pode pressupor que este resultado está já estabelecido na metateoria.

Por outras palavras, sem uma estratégia de nominalização mais ampla, que permita que a própria teoria dos conjuntos seja nominalizada, parece difícil ver como os ficcionalistas matemáticos podem usar resultados metalógicos como parte dos seus programas. O problema, entretanto, é que não é claro de todo em todo que, pelo menos na forma articulada por Field, o programa ficcionalista matemático possa ser alargado à teoria dos conjuntos. Pois tal programa fornece uma estratégia de nominalização apenas para teorias científicas, isto é, para o uso da matemática na ciência (por exemplo, na teoria gravitacional newtoniana). A abordagem não se ocupa da nominalização da matemática em si.

Em princípio, alguém poderia objetar, isto não deveria ser um problema. Afinal, a motivação dos ficcionalistas matemáticos para desenvolver as suas abordagens tem-se focado numa questão: superar o argumento da indispensabilidade — lidando, assim, com o uso da matemática na ciência. E a estratégia geral, como vimos, tem sido fornecer contrapartes nominalistas para teorias científicas relevantes.

O problema desta objeção, entretanto, é que dada a natureza da estratégia de Field, a tarefa de nominalizar a ciência não pode ser alcançada sem que se nominalize também a teoria de conjuntos. Assim, o que é preciso é um nominalismo mais em aberto, um nominalismo mais lato, que ande de mãos dadas com a ciência, mas também com a metalógica. Assim como está, a abordagem do ficcionalista matemático deixa um abismo considerável.

3.3 Avaliação: benefícios e problemas do ficcionalismo matemático

3.3.1 O problema epistêmico

Dado que os objetos matemáticos não existem, o problema de como podemos obter conhecimento deles simplesmente desaparece na perspectiva do ficcionalista matemático. Contudo, outro problema emerge ao invés: o que distingue um matemático (que sabe muita matemática) de um não-matemático (que não tem tal conhecimento)? A diferença aqui (de acordo com Field 1984) não é acerca de ter ou não carência de conhecimento matemático, mas é, ao invés, acerca do conhecimento lógico: acerca de saber quais teoremas matemáticos seguem-se de certos princípios matemáticos, e quais não se seguem. O problema epistêmico é assim dissolvido — contanto que o ficcionalismo matemático forneça uma epistemologia para a lógica.

Na verdade, o que tem de se oferecer é em última análise uma epistemologia para a modalidade. Afinal, na explicação de Field, para evitar o compromisso platonista com modelos ou demonstrações, o conceito de consequência lógica é entendido em termos do conceito modal primitivo de possibilidade lógica: A segue-se logicamente de B se a conjunção de B com a negação de A é impossível, isto é, ⌝◇ (B ⌝A).

Entretanto, como se estabelecem tais juízos de impossibilidade? Em quais condições sabemos que se sustentam? Em casos simples, envolvendo afirmações elementares, estabelecê-los pode não ser problemático. O problema emerge quando se invoca afirmações mais substanciais. Nestes casos, parece que precisamos de uma quantidade significativa de informação matemática para sermos capazes de determinar se as impossibilidades em questão realmente sustentam-se ou não. Considere-se, por exemplo, a dificuldade de estabelecer a independência do axioma da escolha — e da hipótese do contínuo — dos axiomas da teoria de conjuntos de Zermelo-Fraenkel. Neste caso, temos de construir modelos matemáticos significativamente complexos, os quais dependem do desenvolvimento de técnicas matemáticas especiais para os construir. O que se exige do ficcionalista matemático neste estádio é a nominalização da própria teoria de conjuntos — algo que, como vimos, Field ainda nos deve.

3.3.2 O problema da aplicação da matemática

Analogamente ao problema epistêmico, o problema da aplicação da matemática é parcialmente resolvido pelo ficcionalista matemático. Field fornece uma explicação da aplicabilidade da matemática que não exige a verdade das teorias matemáticas. Como vimos, isto exige que a matemática seja conservativa no sentido relevante. Entretanto, não é claro se Field estabeleceu a conservatividade da matemática, dado a sua maneira restrita de introduzir vocabulário que não pertence à teoria de conjuntos nos axiomas da teoria de conjuntos como parte da sua tentativa de prova da conservatividade da teoria de conjuntos (Azzouni 2009b, p. 169, nota 47: dificuldades adicionais para o programa ficcionalista-matemático encontram-se em Melia 1998, 2000). Field estava trabalhando com a ZFU restrita (teoria de conjuntos Zermelo-Fraenkel com o axioma da escolha modificado) para permitir Urelemente — objetos que não são conjuntos —, embora não permita que apareça nos axiomas da compreensão qualquer vocabulário que não pertença à teoria de conjuntos, isto é, substituição ou separação (Field 1980, p.17). Esta é, no entanto, uma enorme restrição, dado que quando a matemática é realmente aplicada, o vocabulário que não pertence à teoria de conjuntos — quando traduzido em linguagem de teorias de conjuntos — terá de aparecer nos axiomas da compreensão. Como formulada por Field, a demonstração não consegue lidar com o caso crucial de aplicações reais da matemática.

Ademais, também não é claro se o programa de nominalização proposto pelo ficcionalista matemático pode estender-se a outras teorias científicas, como a mecânica quântica (Malament 1992). Mark Balaguer respondeu a este desafio tentando nominalizar a mecânica quântica de modo análogo ao modo do ficcionalista matemático (Balaguer 1998). Entretanto, como defendeu Bueno (Bueno 2003), a estratégia de Balaguer é incompatível com inúmeras interpretações da mecânica quântica, em particular com a versão da interpretação modal de Bas van Fraassen (van Fraassen 1991). E dado que a estratégia de Balaguer invoca propensões fisicamente reais, não é claro se isto é mesmo compatível com o nominalismo. Como resultado, a nominalização da mecânica quântica permanece ainda um problema considerável para o ficcionalista matemático.

Contudo, ainda que tais dificuldades possam ser todas ultrapassadas, não é claro que o ficcionalista matemático tenha oferecido uma explicação da aplicação da matemática que nos permita dar sentido ao modo como as teorias matemáticas são realmente aplicadas. Afinal, a explicação ficcionalista exige que rescrevamos as teorias relevantes, encontrando versões nominalistas adequadas. Isto deixa inteiramente intacta a questão de dar sentido ao processo real de aplicação da matemática, dado que nenhuma de tais reformulações foram sequer empregadas na prática científica real. Ao invés de responder a aspectos reais do processo de aplicação, o ficcionalista cria um discurso paralelo num esforço de fornecer uma reconstrução nominalista do uso da matemática na ciência. A reconstrução mostra, na melhor das hipóteses, que os ficcionalistas matemáticos não têm de se preocupar com a aplicação da matemática no que diz respeito a aumentar a sua ontologia. Contudo, permanece ainda o problema de estarem em posição de dar sentido ao uso real da matemática na ciência. Este problema, crucial para a compreensão da prática matemática, permanece.

Uma dificuldade semelhante também emerge para a versão do ficcionalismo de Balaguer (veja-se a segunda metade de Balaguer 1988). Balaguer depende da possibilidade de se distinguir entre os conteúdos matemáticos e físicos de uma teoria matemática aplicada: em particular, a verdade dessa teoria sustenta-se apenas em virtude de fatos físicos, sem qualquer contribuição da matemática. É controverso, no entanto, se a distinção entre o conteúdo físico e o matemático pode ser caracterizada sem implementar um programa de nominalização como o de Field. Neste caso, as mesmas dificuldades que o último enfrenta transmitem-se também à explicação de Balaguer (Colyvan 2010; Azzouni 2011).

Ademais, de acordo com Azzouni (Azzouni 2009b), para que os cientistas usem uma teoria científica, têm de a asserir. Na sua perspectiva, não é suficiente para os cientistas reconhecer que uma teoria científica é verdadeira (ou que exibe alguma outra virtude teórica). Exige-se que assiram a teoria. Em particular, teriam portanto de asserir uma teoria nominalista. Não podem simplesmente contemplar tal teoria; têm de ser capazes de a asserir também (Azzouni 2009b, notas de rodapé 31, 43, 53, e 55, e p. 171). Portanto, os nominalistas que concedem este ponto a Azzouni têm de mostrar — para lidar com a questão da aplicação da matemática — que os cientistas estão numa posição de asserir as teorias nominalistas relevantes.

3.3.3 Semântica uniforme

Num aspecto, os ficcionalistas matemáticos oferecem uma semântica uniforme para o discurso matemático e científico, noutro aspecto, não fornecem. Inicialmente, ambos os tipos de discurso são avaliados do mesmo modo. Os elétrons e as relações entre eles fazem que certas afirmações da mecânica quântica sejam verdadeiras; por sua vez, os objetos matemáticos e as relações entre eles fazem que as afirmações matemáticas correspondentes sejam verdadeiras. Ocorre apenas que, contrariamente aos elétrons numa interpretação realista da mecânica quântica, os objetos matemáticos não existem. Portanto, como mencionado, afirmações existenciais matemáticas, como ‘há um número infinito de números primos’, são falsas. Embora as atribuições de valores de verdade resultantes para as afirmações existenciais entrem em conflito com as da prática matemática, pelo menos oferece-se a mesma semântica para as linguagens matemáticas e científicas.

Numa tentativa de ser consistente com as atribuições de valores de verdade que são normalmente exibidas no discurso matemático, o ficcionalista matemático introduz um operador ficcional: ‘Segundo a teoria matemática M…’. Tal operador, entretanto, muda a semântica do discurso matemático. Aplicado a uma afirmação matemática verdadeira, pelo menos a alguma que o platonista reconheça como verdadeira, o resultado será uma afirmação verdadeira — mesmo de acordo com o ficcionalista matemático. Por exemplo, de ambas as perspectivas — platonista e ficcionalista —, a afirmação ‘segundo a aritmética, há um número infinito de números primos’ revela-se verdadeira. Contudo, neste caso, o ficcionalista matemático já não pode oferecer uma semântica unificada para a linguagem matemática e científica, dado que esta última não envolve a introdução de operadores ficcionais. Assim, se os ficcionalistas matemáticos são ou não capazes de fornecer uma semântica uniforme depende em última análise de os operadores ficcionais serem ou não introduzidos.

3.3.4 Encarando a matemática literalmente

Uma consequência imediata da introdução de operadores ficcionais é que o discurso matemático já não é encarado literalmente. Como mencionámos, sem tais operadores, o ficcionalismo matemático produz atribuições de valores de verdade incomuns para as afirmações matemáticas. No entanto, com os operadores de ficção em uso, a sintaxe do discurso matemático muda, e desta forma este último não pode ser encarado literalmente.

3.3.5 O problema ontológico

O problema ontológico — o problema da aceitabilidade dos compromissos ontológicos feitos pelo ficcionalista matemático — fica basicamente resolvido. Não se faz qualquer compromisso com objetos matemáticos, em princípio. Embora se introduza uma noção modal primitiva, isto tem apenas um papel limitado na nominalização da matemática: permitir a reformulação nominalista do conceito crucial de conservatividade. Como vimos, entretanto, sem uma nominalização adequada da própria teoria de conjuntos, não é claro se o programa ficcionalista é em última análise bem-sucedido.

4. Estruturalismo modal

4.1 Aspectos centrais do estruturalismo modal

O estruturalismo modal oferece um programa de interpretação da matemática que incorpora dois aspectos: (a) uma ênfase nas estruturas como o objecto de estudo principal da matemática, e (b) uma completa eliminação da referência a objetos matemáticos por meio da interpretação da matemática em termos de lógica modal (primeiramente sugerido por Putnam (1967), e desenvolvido em Hellman (1989, 1996)). Dados estes aspectos, a abordagem resultante denomina-se interpretação estrutural modal (Hellman 1989, pp. vii-vii e 6–9).

Supostamente, a proposta também satisfaz duas exigências importante (Hellman 1989, pp. 2–6). A primeira é que as afirmações matemáticas devem ter valores de verdade, rejeitando-se assim desde o início leituras ‘instrumentalistas’ . A segunda é que: ‘a explicação razoável deve ser transparente acerca de como a matemática de fato aplica-se ao mundo material’ (Hellman 1989, p. 6). Assim, o problema da aplicabilidade deve ser examinado.

Para abordar estas questões, o estruturalista modal sugere um enquadramento geral. A ideia principal é que embora a matemática ocupe-se do estudo de estruturas, tal estudo pode ser realizado focando-se apenas em estruturas possíveis, e não em estruturas efetivas. Deste modo, a interpretação modal não está comprometida com estruturas matemáticas efetivas; não há qualquer comprometimento com a existência de tais estruturas enquanto objetos ou com quaisquer objetos que venham a constituir tais estruturas. Deste modo, evita-se o compromisso ontológico com tais estruturas: a única afirmação é que as estruturas em questão são possíveis. Para articular este aspecto, a interpretação estrutural modal é formulada numa linguagem modal de segunda ordem baseada em S5. Entretanto, para evitar o compromisso com uma caracterização de teoria de conjuntos dos operadores modais, Hellman encara tais operadores como primitivos (1989, pp. 17, e 20–23).

Dá-se dois passos. O primeiro é apresentar uma estratégia de tradução apropriada, em termos da qual cada afirmação matemática comum S seja encarada como elíptica para uma afirmação hipotética, qual seja: que S sustentar-se-ia numa estrutura de um tipo apropriado.

Por exemplo, se estivermos considerando afirmações de teoria dos números, como as articuladas na aritmética de Peano (abreviando, PA), as estruturas com as quais estamos preocupados são ‘progressões’ ou ‘sequências ’ que satisfazem os axiomas de Peano. Neste caso, cada afirmação particular S traduz-se (aproximadamente) como:

◻︎∀X(X é uma sequência ⍵ que satisfaz os axiomas de PA → S sustenta-se em X).

De acordo com esta afirmação, se houvesse sequências satisfazendo os axiomas de PA, S assegurar-se-ia em tais sequências. Esta é a componente hipotética da interpretação estrutural modal (para uma análise detalhada e uma formulação precisa, veja-se (Hellman 1989, pp. 16–24)). A componente categórica constitui o segundo passo (Hellman 1989, pp. 24–33). A ideia é pressupor que as estruturas do tipo apropriado são logicamente possíveis. Neste caso, temos que

◇∃X(X é uma sequência ⍵ que satisfaz os axiomas de PA).

Isto é, é logicamente possível que haja sequências satisfazendo os axiomas de PA. Seguindo esta abordagem, as traduções de afirmações matemáticas que preservem a verdade podem ser apresentadas sem custos ontológicos, dado que só se pressupõe a possibilidade das estruturas em questão.

O estruturalista modal sugere então que a prática de demonstrar teoremas pode ser readquirida neste enquadramento (falando de um modo aproximado, aplicando o esquema de tradução a cada linha da demonstração original do teorema sob consideração). Ademais, usando o esquema de tradução e codificações apropriadas, pode-se argumentar que a aritmética, a análise real e, até um certo grau, mesmo a teoria de conjuntos são recuperadas num cenário nominalista (Hellman 1989, pp. 16–33, 44–47, e 53–93). Em particular, ‘fazendo uso de codificações, praticamente toda a matemática que tipicamente se encontra em teorias físicas comuns pode ser executada na [análise real]’ (Hellman 1989, pp. 45–46). Entretanto, a questão de a teoria dos conjuntos ter sido nominalizada deste modo ou não é, na verdade, problemática — como o estruturalista modal reconhece. Afinal, não é uma questão óbvia estabelecer mesmo a possibilidade da existência de estruturas com muitos objetos inacessíveis.

Com o enquadramento estabelecido, o estruturalista modal pode então considerar o problema da aplicabilidade. A ideia principal é adotar a componente hipotética como base para acomodar a aplicação da matemática. As estruturas relevantes são as que tipicamente se usam em áreas particulares da ciência. Duas considerações têm de ser feitas neste ponto.

A primeira é a forma geral das afirmações da matemática aplicada (Hellman 1989, pp. 118–124). Estas afirmações envolvem três componentes cruciais: as estruturas que são usadas na matemática aplicada, os objetos não-matemáticos aos quais as estruturas matemáticas se aplicam, e uma afirmação de aplicação que especifica as relações particulares entre as estruturas matemáticas e os objetos não-matemáticos. As estruturas matemáticas relevantes podem ser formuladas na teoria dos conjuntos. Chamemos Z à teoria dos conjuntos usada em contextos aplicados. (Esta é a teoria dos conjuntos de Zermelo de segunda ordem, a qual é finitamente axiomatizável; irei denotar a conjunção dos axiomas de Z por ∧Z.) Os objetos não-matemáticos de interesse no contexto de aplicação podem ser expressos em Z como Urelemente,1 isto é, como objetos que não são conjuntos. Tomaremos ‘U’ como a afirmação de que certos objetos não-matemáticos de interesse estão incluídos como Urelemente nas estruturas de Z. Finalmente, ‘A’ é a afirmação de aplicação, descrevendo as relações particulares entre as estruturas matemáticas relevantes de Z e os objetos não-matemáticos descritos em U. As relações particulares envolvidas dependem do caso em questão. Podemos agora apresentar a forma geral de uma afirmação matemática aplicada (Hellman 1989, p. 119):

◻︎∀X∀f ((∧Z & U)X (∈f) → A).

Na antecedente, ‘(∧Z & U)X (∈f)’ é uma abreviação para os resultados de se transcrever os axiomas da teoria dos conjuntos de Zermelo com todos os quantificadores relativizados à variável X de segunda ordem, substituindo cada ocorrência do símbolo de pertença ‘’ com a variável ‘f’ de relação binária. Segundo a afirmação da matemática aplicada, se houvesse estruturas satisfazendo a conjunção dos axiomas da teoria de conjuntos Z de Zermelo, incluindo alguns objetos não-matemáticos referidos em U, A sustentar-se-ia em tais estruturas. A afirmação de aplicação A expressa as relações em questão, tais como um isomorfismo ou homomorfismo entre um sistema físico e certas estruturas de teoria dos conjuntos. Esta é a componente hipotética interpretada para expressar quais relações sustentar-se-iam entre certas estruturas matemáticas (formuladas como estruturas de ∧Z) e as entidades estudadas no mundo (os Urelemente).

A segunda consideração examina mais detalhadamente as relações entre os objetos físicos (ou materiais) estudados e o enquadramento matemático. Estas são as relações de ‘determinação sintética’ (Hellman 1989, pp. 124–135). Mais especificamente, temos de determinar quais relações entre objetos não-matemáticos podem ser encaradas, na antecedente de uma afirmação matemática aplicada, como a base para especificar “a situação material efetiva” (Hellman 1989, p. 129). A proposta estruturalista modal é considerar os modelos de uma teoria T’ abrangente. Esta teoria abarca e conecta o vocabulário da teoria matemática aplicada (T) e o vocabulário sintético (S) em questão, o qual intuitivamente fixa a situação material efetiva. Pressupõe-se que T determina, até ao isomorfismo, um tipo particular de estrutura matemática (contendo, por exemplo, Z), e que T’ é uma extensão de T. Neste caso, uma “base sintética” sugerida será adequada se as seguintes condições ocorrem:

Seja a a classe dos modelos (matematicamente) padrões de T’, e seja V o vocabulário completo de T’: então S determina V em a se, e só se, para quaisquer dois modelos m e m’ em a, e quaisquer bijeções f entre os seus domínios, se f é um isomorfismo S, é também um isomorfismo V. (Hellman 1989, p. 132.)

A introdução de isomorfismo neste contexto origina-se, claro, da necessidade de acomodar a preservação de estrutura entre a parte matemática (aplicada) do domínio sob estudo e a parte não-matemática. Isto ocorre no caso crucial no qual a preservação das propriedades sintéticas e das relações (isomorfismo S) por meio de f conduz à preservação das relações matemáticas analíticas aplicadas (isomorfismo V) da teoria T’ geral. Deve-se notar que a estrutura ‘sintética’ não é destinada a ‘captar’ a estrutura completa da teoria matemática em questão, mas apenas a sua parte aplicada. (Recorde-se que Hellman começou com uma teoria matemática aplicada T.)

Isto ilustra-se com um exemplo simples. Suponha-se que há um número finito de objetos físicos que exibem uma ordem linear. Podemos descrever isto definindo uma função destes objetos num segmento inicial dos números naturais. Aquilo que a condição de determinação sintética do estruturalista modal exige é que a ordenação física entre os objetos capte por si só esta função e a descrição que isto oferece dos objetos. Não se afirma que a estrutura completa dos números naturais se capta desse modo. Este exemplo também fornece uma ilustração da afirmação matemática aplicada mencionada acima. Os Urelemente (objetos que não são conjuntos) são os objetos físicos em questão, a relação matemática relevante é o isomorfismo, e a estrutura matemática é um segmento de números naturais com as suas ordens usuais.

Na concepção estrutural modal, a matemática é aplicada estabelecendo-se um isomorfismo apropriado entre (partes de) estruturas matemáticas e aquelas estruturas que representam a situação material. Este processo está justificado, visto que tal isomorfismo estabelece a equivalência estrutural entre os (partes relevantes dos) níveis matemáticos e não-matemáticos.

Entretanto, esta proposta enfrenta duas dificuldades. A primeira diz respeito ao estatuto ontológico da equivalência estrutural entre os domínios matemáticos (aplicados) e não-matemáticos. Com base em que podemos afirmar que as estruturas sob consideração são matematicamente as mesmas, se algumas dizem respeito a objetos ‘materiais’? Evidentemente, dado que a equivalência estrutural é estabelecida por meio de um isomorfismo, os objetos materiais são já formulados em termos estruturais — isto significa que alguma matemática já foi aplicada ao domínio em questão. Noutras palavras, para ser capaz de representar a aplicabilidade da matemática, Hellman pressupõe que alguma matemática foi já aplicada. Isto significa que uma caracterização puramente matemática da aplicabilidade da matemática (via preservação estrutural) é inerentemente incompleta. O primeiro passo na aplicação, nomeadamente modelação matemática do domínio material, não é acomodada, e não pode sê-lo, visto que nenhum isomorfismo está aqui envolvido. Na verdade, dado que por hipótese o domínio não é articulado em termos matemáticos, não se define aqui qualquer isomorfismo.

Pode-se argumentar que a explicação estrutural modal não exige um isomorfismo entre estruturas matemáticas (aplicadas) e aquelas que descrevem a situação material. A explicação exige apenas um isomorfismo entre dois modelos padrões de uma teoria geral T’, que conecte a teoria matemática T e a descrição S do domínio material. Em réplica, note-se que isto apenas empurra a dificuldade para um nível mais elevado. Para T’ se alargar à teoria matemática aplicada T e fornecer uma conexão entre T e a situação material, um modelo de T’ terá de ser, em particular, um modelo tanto de T como de S. Assim, se a afirmação de determinação sintética do estruturalista modal for satisfeita, um isomorfismo entre dois modelos de T’ determinará um isomorfismo entre os modelos de S e os de T. Deste modo, exige-se ainda um isomorfismo entre as estruturas descrevendo a situação material e as oriundas da matemática aplicada.

A segunda dificuldade foca-se no estatuto epistêmico da afirmação de que há uma equivalência estrutural entre os domínios matemáticos e não-matemáticos. Com base em quê sabemos que há esta equivalência? Talvez se possa dizer que a equivalência é normativamente imposta para que o processo de aplicação possa existir. Contudo, esta sugestão conduz a um dilema. Ou apenas pressupõe-se que sabemos que a equivalência ocorre, e a questão epistêmica é circular (dado que as razões para isto estão em questão), ou pressupõe-se que não sabemos que a equivalência ocorre — e isto é a razão pela qual temos de impor a condição — caso em que esta última é claramente destituída de razões. Entretanto, pode-se argumentar que não há qualquer problema aqui, visto que estabelecemos o isomorfismo examinando as teorias físicas dos objetos materiais sob consideração. Contudo, o problemaé que para formular tais teorias físicas usamos tipicamente matemática. E a questão é precisamente explicar tal uso, isto é, fornecer algum entendimento das razões pelas quais chegamos a saber que as estruturas matemáticas relevantes são isomórficas relativamente às estruturas físicas relevantes.

A questão principal subjacente a tais considerações tem sido suficientemente enfatizada (embora em um contexto diferente): o isomorfismo não parece uma condição apropriada para captar a relação entre estruturas matemáticas e o mundo (veja-se, por exemplo, da Costa e French 2003). Há, evidentemente, uma intuição correta subjacente ao uso de isomorfismo neste nível, e isto está relacionado à ideia de justificar a aplicação da matemática: o isomorfismo não garante que as estruturas matemáticas aplicadas S e as estruturas M que representam a situação material são matematicamente as mesmas. O problema é que as caracterizações baseadas em isomorfismo tendem a ser excessivamente fortes. Exigem que alguma matemática tenha já sido aplicada à situação material, e que tenhamos conhecimento da equivalência estrutural entre S e M. Aquilo que é necessário é um enquadramento no qual a relação entre as estruturas relevantes seja mais fraca que o isomorfismo, mas que sustente ainda a aplicabilidade, embora de um modo menos rigoroso (e.g., Bueno, French e Ladyman 2002).

4.2 Avaliação: benefícios e problemas do estruturalismo modal

4.2.1 O problema epistêmico

O estruturalista modal resolve parcialmente o problema epistêmico da matemática. Pressupondo que o esquema de tradução estrutural modal funciona para a teoria de conjuntos, os estruturalistas modais não têm de explicar como podemos ter conhecimento da existência de objetos, relações e estruturas matemáticas — dada a ausência de compromisso com tais entidades. Entretanto, têm ainda de explicar o nosso conhecimento da possibilidade das estruturas relevantes, visto que o esquema de tradução compromete-os com tal possibilidade.

Uma preocupação que emerge aqui é que, no caso de estruturas matemáticas substanciais (como as invocadas na teoria de conjuntos), o conhecimento da possibilidade de tais estruturas pode exigir o conhecimento de partes substanciais da matemática. Por exemplo, para saber que as estruturas formuladas na teoria dos conjuntos de Zermelo são possíveis, presumivelmente temos de saber que a teoria em si é consistente. Contudo, a consistência da teoria apenas pode ser estabelecida em outra teoria, cuja consistência, por sua vez, também tem de ser estabelecida — e confrontamo-nos com um regressão. Seria arbitrário simplesmente pressupor a consistência das teorias em questão, dado que se tais teorias revelam-se na verdade inconsistentes, dada a lógica clássica, tudo poderia ser demonstrado nelas.

Evidentemente, tais considerações não estabelecem que o estruturalista modal não pode desenvolver uma epistemologia para a matemática. Apenas sugerem que mais desenvolvimentos na frente epistêmica parecem necessários para abordar de forma mais completa o problema epistêmico da matemática.

4.2.2 O problema da aplicação da matemática

Similarmente, o problema da aplicação da matemática é parcialmente resolvido pelo estruturalista modal. Afinal, fornece-se um enquadramento para interpretar o uso da matemática na ciência, e em termos deste enquadramento a aplicação da matemática pode ser acomodada sem o compromisso com a existência dos objetos correspondentes.

Uma preocupação que emerge (além da já mencionada no final da seção 4.1) é que, similarmente ao que acontece com o ficcionalismo matemático, o enquadramento proposto não nos permite dar sentido aos usos efetivos da aplicação da matemática. Ao invés de explicar como a matemática é de fato aplicada na prática científica, o enquadramento estrutural modal é apresentado tendo em vista conduzir esta prática e eliminar o compromisso com entidades matemáticas. Contudo, mesmo que o enquadramento seja bem-sucedido nesta última tarefa, permitindo assim ao estruturalista modal evitar o compromisso relevante, a questão de como dar sentido ao modo como a matemática é realmente usada em contextos científicos ainda permanece. Fornecer um esquema de tradução para uma linguagem nominalista não aborda esta questão. Um aspecto significante da prática matemática é então deixado sem explicação.

O estatuto do argumento da indispensabilidade dentro da interpretação estrutural modal é bastante único. Por um lado, a conclusão do argumento é indeterminada (se o esquema de tradução proposto é aceito), visto que se pode evitar o compromisso com a existência de objetos matemáticos. Por outro lado, pode-se usar uma versão revisada do argumento da indispensabilidade para motivar a tradução para a linguagem modal, enfatizando assim o papel indispensável desempenhado por noções modais primitivas introduzidas pelo estruturalista modal. A ideia é mudar a segunda premissa do argumento, insistindo que estas traduções estruturais modais das teorias matemáticas são indispensáveis às nossas melhores teorias do mundo, e concluindo que temos de estar ontologicamente comprometidos com a possibilidade das estruturas correspondentes. Neste sentido, os estruturalistas modais podem invocar o argumento da indispensabilidade como justificação do esquema de tradução que defendem e, portanto, como justificação da possibilidade de estruturas relevantes, que são mencionadas na conclusão do argumento revisado. Contudo, ao invés de justificar a existência de objetos matemáticos, o argumento justificaria apenas o compromisso com as traduções estruturais modais das teorias matemáticas e a possibilidade de estruturas matemáticas.

4.2.3 Semântica uniforme

Com a introdução de operadores modais e o esquema de tradução proposto, o estruturalista modal é incapaz de fornecer uma semântica uniforme para teorias científicas e matemáticas. Apenas estas últimas, contrariamente às primeiras, exigem tais operadores. Na verdade, Field argumentou que se os operadores modais fossem invocados na formulação de teorias científicas, não apenas os seus conteúdos matemáticos, mas também os seus conteúdos físicos seriam nominalizados (Field 1989). Afinal, neste caso, ao invés de afirmar que alguns estados físicos ocorrem realmente, a teoria afirmaria apenas a possibilidade de tais estados físicos ocorrerem.

Uma estratégia para evitar esta dificuldade (perder o conteúdo físico de uma teoria científica devido ao uso de operadores modais) é empregar um operador de efetividade. Colocando-se adequadamente tais operadores no âmbito dos operadores modais, é possível desfazer a nominalização do conteúdo físico em questão (Friedman 2005). Sem a introdução do operador de efetividade, ou alguma tática relacionada, não é claro que o estruturalista modal esteja em posição de preservar o conteúdo físico da teoria física em questão.

Contudo, a introdução de um operador de efetividade neste contexto exige a distinção entre conteúdo nominalista e conteúdo matemático. (Que tal distinção não possa de ser feita de todo em todo é defendido em Azzouni 2011.) De outro modo, não há qualquer garantia de que a aplicação do operador de efetividade não produzirá mais do que aquilo que é fisicamente real.

Entretanto, mesmo com a introdução de tal operador, haveria ainda uma diferença significativa, no esquema de tradução estrutural modal, entre a semântica para o discurso matemático e a semântica para o discurso científico. Pois o primeiro, contrariamente ao segundo, não invoca tal operador. O resultado é que o estruturalismo modal não parece capaz de fornecer uma semântica uniforme para a linguagem matemática e científica.

4.2.4 Encarando a matemática literalmente

Dada a necessidade de introduzir operadores modais, o estruturalista modal não encara o discurso matemático literalmente. Na verdade, pode-se argumentar, este é o propósito da teoria! Encarado literalmente, o discurso matemático parece estar comprometido com objetos e estruturas abstratas — um compromisso que o estruturalista modal claramente pretende evitar.

Entretanto, permanece a questão: é que, para bloquear tal compromisso, oferece-se um discurso paralelo à prática matemática real. O discurso é ‘paralelo’, dado que a prática matemática tipicamente não invoca os operadores introduzidos pelo o estruturalista modal. Pois quem pretende entender o discurso matemático tal como é usado na prática da matemática, e que tenta identificar os aspectos adequados desta prática que impedem o compromisso com entidades matemáticas, a proposta de tradução tornará particularmente difícil a realização deste objetivo.

4.2.5 O problema ontológico

O estruturalista modal resolveu, em parte, o problema ontológico. Nenhum compromisso com objetos matemáticos parece necessário para implementar o esquema de tradução proposto. A principal preocupação emerge da introdução de operadores modais. Contudo, como o estruturalista modal enfatiza, estes operadores não pressupõem uma semântica de mundos possíveis: são introduzidos como termos primitivos.

Entretanto, visto que a tradução modal de axiomas matemáticos é encarada como verdadeira, surge a questão: o que torna verdadeiras tais afirmações? Por exemplo, quando afirma-se que ‘é possível que haja estruturas satisfazendo os axiomas da aritmética de Peano’, o que é responsável pela verdade de tal afirmação? Claramente, o estruturalista modal não irá fundamentar a possibilidade em questão na verdade efetiva dos axiomas de Peano, pois esta manobra, numa interpretação razoável, exigiria o platonismo. Tampouco irá o estruturalista modal justificar a possibilidade relevante com base na existência de uma prova de consistência para os axiomas de Peano. Afinal, qualquer demonstração, como tal, é um objeto abstrato, e invocar isto no fundamento do estruturalismo modal claramente ameaça a coerência da perspectiva como um todo. Ademais, invocar uma versão modalizada de tal demonstração de consistência seria circular, visto que isto pressupõe que o uso de operadores modais está de antemão justificado. Em última análise, aquilo que é necessário para resolver apropriadamente o problema ontológico é uma explicação adequada do discurso modal.

5. Nominalismo deflacionista

5.1 Aspectos centrais do nominalismo deflacionista

Segundo o nominalista deflacionista, é perfeitamente consistente insistir que as teorias matemáticas são indispensáveis à ciência, afirmar que as teorias matemáticas e científicas são verdadeiras, e negar que existam objetos matemáticos. Chamarei à perspectiva ‘nominalismo deflacionista’, posto que exige compromissos mínimos para dar sentido à matemática (Azzouni 2004), propõe uma visão deflacionista da verdade (Azzouni 2004, 2006), e defende uma formulação direta da teorias matemáticas, sem que se exija que sejam reconstruídas ou reescritas (Azzouni 1994, 2004).

O nominalismo deflacionista oferece um ‘caminho fácil’ para o nominalismo, que não exige qualquer forma de reformulação do discurso matemático, enquanto reconhece a indispensabilidade da matemática. Apesar do fato de a quantificação sobre objetos e relações matemáticas ser indispensável às nossas melhores teorias do mundo, este fato não oferece qualquer razão para acreditar na existência das entidades correspondentes. Isto porque, como Jody Azzouni chama a atenção, deve-se distinguir dois tipos de compromisso: compromisso de quantificador e compromisso ontológico (Azzouni 1997; 2004, p. 127 e pp. 49–122). Incorremos em compromisso de quantificador quando as nossas teorias implicam afirmações existencialmente quantificadas. Contudo, a quantificação existencial, insiste Azzouni, não é suficiente para o compromisso ontológico. Afinal, quantificamos frequentemente sobre objetos que não temos qualquer razão para acreditar que existem, como entidades ficcionais.

Para incorrermos em compromisso ontológico — isto é, para estarmos comprometidos com a existência de um dado objeto — é preciso satisfazer um critério para o que existe. Há, evidentemente, vários critérios possíveis para aquilo que existe (como eficácia causal, observabilidade, possibilidade de detecção, e assim por diante). Contudo, o critério que Azzouni defende, e ele encara-o como aquele que tem sido coletivamente adotado, é a independência ontológica (2004, p. 99). Aquilo que existe são as coisas que são ontologicamente independentes das nossas práticas linguísticas e processos psicológicos. O ponto é que se inventámos algo com as nossas práticas linguísticas ou processos psicológicos, não há qualquer razão para estarmos comprometidos com a existência do objeto correspondente. E tipicamente, resistiríamos a tal compromisso.

Os processos psicológicos em si existem, de acordo com o critério de independência ontológica? Pode-se argumentar que a maioria dos processos psicológicos de fato existem, pelo menos aqueles que vivemos ao invés daqueles que construímos. Afinal, a motivação subjacente ao critério de independência é que aquelas coisas que apenas construímos verbalmente ou psicologicamente não existem. Ter uma dor de cabeça ou acreditar que há um computador na minha frente agora são processos psicológicos que não construí. Logo, parece que pelo menos estes tipos de processos psicológicos realmente existem. Em contraste, imaginações, desejos, e esperanças são processos que construímos, e assim não existem. Contudo, a motivação subjacente ao critério parece divergir, nestes casos, daquilo que é implicado pela formulação real do critério. Pois o critério insiste na dependência ontológica das “nossas práticas linguísticas e processos psicológicos”. Visto que dores de cabeça e crenças são em si processos psicológicos, presumivelmente não são ontologicamente independentes de processos psicológicos. Portanto, não existem. Isto significa que se o critério for aplicado tal como está, nenhum processo psicológico existe. Por razões semelhantes, romances, conteúdos mentais, e instituições também não existem, posto que são todos objetos abstratos dependentes das nossas práticas linguísticas e processos psicológicos, segundo o nominalista deflacionista (Azzouni 2010a, 2012).

Quine, evidentemente, identifica compromisso de quantificador com compromisso ontológico, pelo menos no caso crucial dos objetos que são indispensáveis às nossas melhores teorias do mundo. Tais objetos são aqueles que não podem ser eliminados por meio de paráfrase e sobre os quais temos de quantificar quando sistematizamos as teorias relevantes (usando lógica de primeira ordem). Segundo o critério de Quine, estes são precisamente os objetos com os quais estamos comprometidos. Azzouni insiste que devemos resistir a esta identificação. Mesmo que os objetos das nossas melhores teorias sejam indispensáveis, mesmo que quantifiquemos sobre eles, isto não é suficiente para estarmos ontologicamente comprometidos com eles. Afinal, os objetos sobre os quais quantificamos podem ser ontologicamente dependentes de nós — das nossas práticas linguísticas ou processos psicológicos — e assim podemos apenas tê-los construído. Contudo, neste caso, claramente não há qualquer razão para estar comprometido com as suas existências. Entretanto, para aqueles objetos que são ontologicamente independentes de nós, estamos comprometidos com as suas existências.

Acontece afinal que, na perspectiva de Azzouni, os objetos matemáticos dependem ontologicamente das nossas práticas linguísticas e de processos psicológicos. E portanto, muito embora possam ser indispensáveis às nossas melhores teorias do mundo, não estamos ontologicamente comprometidos com eles. Logo, o nominalismo deflacionista é na verdade uma forma de nominalismo.

Todavia, em que sentido os objetos matemáticos dependem das nossas práticas linguísticas e processos psicológicos? No sentido em que a postulação pura de certos princípios é suficiente para a prática matemática: ‘Um tópico matemático com os seus postulados concomitantes pode ser criado ex nihilo registrando-se simplesmente um conjunto de axiomas’ (Azzouni 2004, p. 127). A única limitação adicional que o ato puro de postular tem de enfrentar, na prática, é que os matemáticos deveriam pensar que a matemática resultante é interessante. Isto é, as consequências que se seguem dos princípios matemáticos relevantes não deveriam ser óbvias, e deveriam ser computavelmente tratáveis. Assim, dado que o ato puro de postular é (basicamente) suficiente em matemática, os objetos matemáticos não têm qualquer peso epistêmico. Tais objetos, ou ‘postulados’, são denominados extremamente fracos (ultrathin) (Azzouni 2004, p. 127).

A mesma manobra que o nominalista deflacionista faz para distinguir compromisso ontológico do compromisso de quantificador é também usada para distinguir o compromisso ontológico com objetos F de afirmar a verdade de ‘Há Fs’. Embora as teorias matemáticas usadas na ciência sejam (encaradas como) verdadeiras, isto não é suficiente para comprometermo-nos com a existência dos objetos que supostamente são objecto dessas teorias. Afinal, segundo o nominalista deflacionista, pode ser verdadeiro que há F, mas para estarmos ontologicamente comprometido com F, é preciso satisfazer um critério para aquilo que existe. Como Azzouni chama a atenção:

“Encaro as afirmações matemáticas verdadeiras como literalmente verdadeiras; rejeito tentativas de mostrar que tais afirmações matemáticas literalmente verdadeiras não são indispensáveis à ciência empírica, e ainda, não obstante, posso dizer que os termos matemáticos não referem coisa alguma. Sem o critério de Quine para as corromper, as afirmações de existência não têm ontologia”. (Azzouni 2004, pp. 4–5)

No cenário nominalista deflacionista, o compromisso ontológico não é assinalado de um modo especial na linguagem natural (ou mesmo na linguagem formal). Apenas não extraímos compromissos ontológicos das doutrinas científicas (mesmo que estejam adequadamente sistematizadas). Afinal, sem o critério de compromisso ontológico de Quine, nem a quantificação sobre um dado objeto (numa linguagem de primeira ordem), nem a formulação de afirmações verdadeiras acerca de tal objeto implicaria a existência deste último.

No seu livro de 1994, Azzouni não se comprometeu como o nominalismo, pela razão de que os nominalistas tipicamente exigem uma reconstrução da linguagem matemática — algo que, como vimos, ocorre de fato tanto com o ficcionalista matemático (Field 1989) como o estruturalista modal (Hellman 1989). Entretanto, nenhuma reconstrução como estas foi implementada, ou exigida, na proposta sugerida por Azzouni (Azzouni 1994). O fato de os objetos matemáticos não desempenharem qualquer papel no modo como as verdades matemáticas são conhecidas claramente expressa uma atitude nominalista — uma atitude que Azzouni explicitamente endossa em (Azzouni 2004).

A proposta nominalista deflacionista expressa de uma maneira satisfatória uma perspectiva que deveria ser encarada seriamente. E contrariamente a outras versões de nominalismo, tem o benefício significativo de propor que o discurso matemático seja encarado literalmente.

5.2 Avaliação: benefícios do nominalismo deflacionista e um problema

Das perspectivas nominalistas discutidas neste ensaio, o nominalismo deflacionista é a perspectiva que chega mais perto de resolver (ou, em alguns casos, dissolver) os cinco problemas que têm sido usados para avaliar as propostas nominalistas. Com as possíveis exceções das questões de encarar a linguagem matemática literalmente e o problema ontológico, todos os problemas restantes são tratados explicitamente e de uma forma bem-sucedida. Discutirei cada um deles de cada vez.

5.2.1 O problema epistêmico dissolvido

Como pode o nominalista deflacionista explicar a possibilidade de conhecimento matemático, dada a natureza abstrata dos objetos matemáticos? Nesta versão do nominalismo, este problema extingue-se. O conhecimento matemático é em última análise obtido daquilo que se segue dos princípios matemáticos. Dado que os objetos matemáticos não existem, não desempenham qualquer papel no modo como os resultados matemáticos são conhecidos (Azzouni 1994). O que se exige é que o resultado matemático relevante seja estabelecido via demonstração. As demonstrações são a fonte do conhecimento matemático.

Pode-se argumentar que certas afirmações matemáticas são conhecidas sem a demonstração correspondente. Considere-se a frase de Gödel invocada na demonstração do teorema da incompletude de Gödel: a frase é verdadeira, mas não pode ser demonstrada no sistema sob consideração (se o último for consistente). Temos conhecimento da frase de Gödel? Claramente temos, apesar do fato de a frase não ser derivável no sistema em questão. Como resultado, o conhecimento invocado aqui é de um tipo diferente daquele articulado em termos do que pode ser demonstrado num dado sistema.

Na minha perspectiva, o nominalista deflacionista não tem qualquer problema em dar sentido ao nosso conhecimento da frase de Gödel. É um tipo intuitivo de conhecimento, que emerge daquilo que a frase em questão afirma. Tudo o que é exigido para saber que a proposição é verdadeira é entendê-la apropriadamente. Contudo, este não é o modo como os resultados matemáticos são tipicamente estabelecidos: eles têm de ser demonstrados.

Segundo Azzouni, conhecemos a frase de Gödel se formos capazes de incluir um sistema sintaticamente incompleto (como a aritmética de Peano) num sistema mais forte no qual o predicado de verdade para o sistema original ocorra e no qual a frase de Gödel seja demonstrada (Azzouni 1994, pp. 134–135; Azzouni 2006, p. 89, nota 38, último parágrafo, e pp. 161–162).

Claramente, a explicação não transforma o conhecimento matemático em algo fácil de obter, dado que, normalmente, não é uma questão simples determinar que um dado resultado segue-se ou não de um dado grupo de axiomas. Parte da dificuldade emerge do fato de as consequências lógicas de um grupo não trivial de axiomas não serem geralmente transparentes: exige-se um trabalho significativo para estabelecê-las. Isto é como deve ser, dada a natureza não trivial do conhecimento matemático.

5.2.2 Dissolvendo o problema da aplicação da matemática

O nominalista deflacionista oferece várias considerações no sentido de não haver qualquer problema filosófico genuíno no sucesso da matemática aplicada (Azzouni 2000). Uma vez que se dá uma atenção específica à opacidade da implicação — a nossa incapacidade para ver, antes de termos uma demonstração, as consequências de várias afirmações matemáticas — muita da alegada surpresa no sucesso da matemática aplicada deve extinguir-se. Em última análise, o chamado problema da aplicação da matemática — entender como é possível que a matemática possa ser aplicada de forma bem-sucedida ao mundo físico — é uma questão artificialmente concebida e não um problema genuíno.

Colyvan defende a perspectiva oposta (Colyvan 2001b), insistindo que a aplicação da matemática à ciência coloca um problema genuíno. Em particular, argumenta que duas grandes explicações filosóficas da matemática, o ficcionalismo de Field e o realismo platonista de Quine, são incapazes de explicar o problema. Assim, conclui que o problema afeta o debate realismo/antirrealismo na filosofia da matemática. O nominalista deflacionista insistiria que aquilo que fundamentalmente está em questão — a opacidade da implicação — não é um problema especial, muito embora na medida em que seja um problema, é um problema igualmente enfrentado por realistas e antirrealistas acerca da matemática.

Isto não significa que a aplicação da matemática seja uma questão simples. Claramente, não é. Todavia, as dificuldades envolvidas na aplicação bem-sucedida da matemática não levantam um problema filosófico especial, particularmente quando a questão da opacidade da implicação é reconhecida — uma questão que tanto é comum à matemática aplicada como à matemática pura.

A questão de entender o modo como a matemática de fato é aplicada é algo que o nominalista deflacionista trata explicitamente, examinando cuidadosamente os aspectos centrais e as limitações dos diferentes modelos da aplicação da matemática (veja-se, em particular, a segunda parte de (Azzouni 2004)).

5.2.3 Semântica uniforme

O nominalista deflacionista, como vimos, não está apostado em oferecer uma reconstrução, ou qualquer tipo de reformulação, das teorias matemáticas (a exceção aqui é o caso das teorias matemáticas ou científicas inconsistentes). Nenhuma semântica especial se exige para dar sentido à matemática: a mesma semântica que é usada no caso das teorias científicas é invocada para as teorias matemáticas. Pode parecer que a exigência de uma semântica uniforme fica assim satisfeita. Contudo, a situação é mais complicada.

Pode-se argumentar que o nominalista deflacionista tem de fornecer a semântica para as afirmações universais e existenciais na matemática, na ciência e na linguagem natural. Afinal, soa paradoxal afirmar: “É verdade que há números, mas os números não existem”. O que é tal afirmação? O nominalista deflacionista responderá observando que esta é precisamente a semântica padrão da lógica clássica, com as condições familiares para os quantificadores universais e existenciais, porém sem o pressuposto de que tais quantificadores acarretam compromissos ontológicos. O fato de nenhuma importância ontológica ser atribuída aos quantificadores não muda a sua semântica. Afinal, a metalinguagem na qual a semântica é desenvolvida tem já quantificadores universais e existenciais, e tais quantificadores não têm de ser interpretados como se fornecessem quaisquer compromissos ontológicos além daqueles que os quantificadores da linguagem-objeto fornecem.

Pode-se argumentar que o nominalista deflacionista tem de introduzir a distinção entre usos ontologicamente sérios (ou ontologicamente comprometedores) dos quantificadores e usos ontologicamente inócuos (ou ontologicamente não comprometedores). Sendo assim, isto presumivelmente exigiria uma semântica diferente para aqueles quantificadores. Em resposta, o nominalista deflacionista negará a necessidade de tal distinção. Para assinalar o compromisso ontológico, usa-se um predicado de existência, o qual expressa independência ontológica. Aquelas coisas que são ontologicamente independentes de nós (isto é, das nossas práticas linguísticas e processos psicológicos) são aquelas com as quais estamos ontologicamente comprometidos. A marca do compromisso ontológico não é feita no mesmo nível que os quantificadores, mas antes por meio do predicado de existência.

Isto significa, contudo, que muito embora a semântica seja uniforme ao longo das ciências, da matemática e da linguagem comum, o nominalista deflacionista exige a introdução do predicado de existência. Contudo, pelo menos à primeira vista, este predicado parece não ter uma contraparte no modo como a linguagem é usada nestes domínios. É a mesma semântica que é partilhada, mas a formalização do discurso exige uma linguagem expandida para acomodar o predicado de existência. Como resultado, a uniformidade da semântica vem com o custo da introdução de um predicado especial na linguagem para assinalar compromisso ontológico na formalização.

Talvez o nominalista deflacionista responda argumentando que o predicado de existência já faz parte da linguagem; talvez argumente implicitamente por meio de fatores retóricos e contextuais (Azzouni 2007, seção III: Azzouni 2004, capítulo 5). Aquilo que seria então necessário seria indícios a favor de tal afirmação, e uma indicação de como exatamente o predicado se encontra de fato na ciência, na matemática e em contextos comuns. Considere-se, por exemplo, as proposições:

(S) Não há qualquer conjunto de todos os conjuntos.

(P) Não existem planos perfeitamente sem atrito.

(M) Os ratos existem; os ratos falantes não existem.

Presumivelmente, em todos estes casos, usa-se o predicado de existência. Como resultado, as frases poderiam ser formalizadas como se segue:

(S) ∀x (Sx → ¬ Ex), onde ‘S’ é (para efeitos de simplicidade) o predicado ‘conjunto de todos os conjuntos’, e ‘E’ é o predicado de existência.

(P) ∀x (Px → ¬Ex), onde ‘P’ é (para efeitos de simplicidade) o predicado ‘plano perfeitamente sem atrito’, e ‘E’ é o predicado de existência.

(M) ∃x (Mx ∧ Ex) ∧ ∀x ((Mx ∧ Tx) → ¬Ex), onde ‘M’ é o predicado ‘rato’, ‘T’ é o predicado ‘falar’, e ‘E’ é o predicado de existência.

Em todos estes casos, a formalização exige alguma mudança na forma lógica das proposições da linguagem natural para introduzir o predicado de existência. E isto é argumentavelmente um custo da perspectiva. Afinal, nestes casos, a linguagem matemática, científica e natural não parece ser encarada literalmente — um tópico ao qual dedico-me agora.

5.2.4 Encarando a linguagem matemática literalmente

Vimos que com a introdução do predicado de existência não é claro que o nominalista deflacionista seja de fato capaz de encarar a linguagem matemática literalmente. Afinal, alguma reconstrução da linguagem parece necessária. Deve-se reconhecer que o nível de reconstrução envolvido é significativamente menor do que o que se encontra nas versões de nominalismo discutidas anteriormente. Ao contrário destas, o nominalista deflacionista é capaz de acomodar aspectos significativos da prática matemática sem precisar criar um discurso completamente paralelo (em particular, não é preciso introduzir operadores modais nem ficcionais). Entretanto, algum nível de reconstrução é ainda necessário para acomodar o predicado de existência, o que então compromete a capacidade do nominalista deflacionista para encarar a linguagem matemática literalmente.

Uma preocupação relacionada é que o nominalista deflacionista introduz uma noção incomum de referência que não pressupõe a existência dos objetos que são referidos (Bueno e Zalta 2005). Esta manobra anda de mãos dadas com o entendimento de que os quantificadores não são ontologicamente comprometedores, e isto parece limitar a capacidade do nominalista deflacionista para encarar a linguagem matemática literalmente. Afinal, um uso especial de ‘referir’ é necessário para acomodar a afirmação de que “‘a’ refere b, mas b não existe”. O nominalista deflacionista, no entanto, resiste a esta acusação (Azzouni 2009a, 2010a, 2010b).

5.2.5 O problema ontológico

O problema ontológico também é dissolvido pelo nominalista deflacionista. Evidentemente, o nominalista deflacionista não tem qualquer compromisso com objetos matemáticos ou com qualquer ontologia modal (incluindo mundos possíveis, entidades abstratas como substitutos de mundos possíveis, ou outras formas de substituir a expressão de afirmações modais). O nominalismo deflacionista não apenas evita o compromisso com objetos matemáticos, mas também afirma que tais objetos não têm de todo em todo quaisquer propriedades. Isto significa que a ontologia do nominalista deflacionista é extremamente diminuta: apenas propõe, em última análise, objetos concretos — objetos ontologicamente independentes dos nossos processos psicológicos e práticas linguísticas. Em particular, nenhum domínio de objetos inexistentes é postulado, tampouco um reino de propriedades genuínas de tais objetos. Por ‘propriedades genuínas’ quero dizer aquelas propriedades que se sustentam apenas em virtude do que são os objetos em questão, e não em resultado de alguma relação externa com outros objetos. Por exemplo, embora Sherlock Holmes não exista, tem a propriedade de ser pensado por mim conforme escrevo esta frase. Esta não é, contudo, uma propriedade genuína de Sherlock Holmes no sentido pretendido.

O nominalismo deflacionista não é uma forma de meinongianismo (Azzouni 2010a). Embora a ontologia do nominalismo deflacionista não seja significativamente diferente da ontologia do meinongiano, a ideologia destas duas perspectivas — pelo menos pressupondo uma interpretação particular e tradicional de meinongianismo — é significativamente diferente. O nominalista deflacionista não está comprometido com quaisquer objetos subsistentes, por contraste com aquilo que é encarado como um aspecto distintivo do meinongiano.

Não é claro para mim, contudo, que esta leitura tradicional do meinongianismo esteja correta. Se considerarmos que os objetos subsistentes são abstratos, e se considerarmos que só existem objetos concretos, o cenário resultante, ideologicamente, não é significativamente diferente do defendido pelo nominalista deflacionista. Entretanto, os nominalistas deflacionistas distanciam-se do meinongianismo (Azzouni 2010a).

Com compromissos ontológicos esparsos, o nominalista deflacionista sai-se muito bem na linha ontológica. Uma fonte de preocupação é o quão esparso em última análise é a ontologia do nominalista deflacionista. Por exemplo, os platonistas insistiriam que os objetos matemáticos são ontologicamente independentes dos nossos processos psicológicos e das nossas práticas científicas, e — usando o critério de compromisso ontológico oferecido pelo nominalista deflacionista — insistiriam que estes objetos de fato existem. Analogamente, os realistas modais (como Lewis 1986) também argumentariam que mundos possíveis são ontologicamente independentes de nós no sentido relevante, concluindo assim que estes objetos também existem. Os nominalistas deflacionistas tentarão resistir a estas conclusões. Contudo, a menos que os seus argumentos sejam bem-sucedidos neste aspecto, permanece a preocupação de que é possível que o nominalista deflacionista tenha uma ontologia ontologicamente mais robusta do que aquela que afirma ter — dado o critério de compromisso ontológico proposto.

Pode-se argumentar que os nominalistas deflacionistas estão mudando as regras do debate. Afirmam que os matemáticos obtêm afirmações da forma “Há F”, mas insistem que os objetos em questão não existem, posto que devemos distinguir o compromisso de quantificador do compromisso ontológico. Esta estratégia é fundamentalmente diferente da encontrada nas propostas nominalistas discutidas anteriormente. Isto equivale à negação da primeira premissa do argumento da indispensabilidade (“Temos de estar ontologicamente comprometidos com todas e apenas aquelas entidades indispensáveis às nossas melhores teorias do mundo”). Muito embora a quantificação sobre entidades matemáticas seja indispensável às nossas melhores teorias do mundo (assim, o nominalista deflacionista aceita a segunda premissa do argumento), este fato não implica que tais entidades existam. Afinal, podemos quantificar sobre objetos que não existem, dado a rejeição da primeira premissa do argumento da indispensabilidade.

Contudo, estão os nominalistas deflacionistas realmente mudando as regras do debate? Se o critério de compromisso ontológico de Quine fornece tais regras, então estão. Mas por que devemos aceitar que o critério de Quine desempenhe tal papel? Os nominalistas deflacionistas disputam este pressuposto profundamente arraigado nos debates sobre ontologia. E ao fazê-lo, preparam o caminho para o desenvolvimento de uma forma diferente de nominalismo na filosofia da matemática.

Otávio Bueno
Stanford Encyclopedia of Philosophy, org. Edward N. Zalta.

Bibliografia

Nota

  1. O termo “urelemente” tem aproximadamente o mesmo significado que o termo “elemento primitivo”. ↩︎︎

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