O meu amigo João veio cá casa tomar um café. Enquanto aqueço a água, digo-lhe: “existe uma chávena no armário”. O João abre o armário. Et voilà! O João encontra uma chávena no armário. De acordo com a teoria da verdade como correspondência, a frase “existe uma chávena no armário” é verdadeira se, e só se, é um facto que existe uma chávena no armário. Para o caso, esta teoria supõe que existe um objecto no mundo exterior, numa dada localização espaciotemporal, que transforma a frase “existe uma chávena no armário” numa frase verdadeira.
O João é matemático e costuma falar do seu trabalho. Enquanto tomamos o nosso cafezinho, ele costuma pronunciar frases sobre a existência de números, funções, conjuntos, etc. Por exemplo, “existe um número par primo”, “a função é diferenciável, porque a derivada da função existe”, “existe um valor que minimiza a função”, etc. O problema que este tipo de afirmações levanta é que, por muito que procuremos no mundo exterior à nossa volta, não conseguimos encontrar nenhum dos objectos que essas frases referem. Ou seja, não existe algo como um armário “mágico” que possamos abrir e encontrar, digamos, o número 2. O número 2 seria o objecto que transformaria a frase “existe um número par primo” numa frase verdadeira.
Em oposição ao parágrafo anterior, alguns filósofos defendem uma concepção empirista para a matemática. Ou seja, para estes autores os números, bem como outros objectos matemáticos, encontram-se localizados no espaço-tempo. Penelope Maddy (1990), por exemplo, defende que os conjuntos matemáticos existem no espaço-tempo. O conjunto a respeito de dois ovos encontra-se localizado na posição espaciotemporal dos próprios ovos. Todavia, estas concepções empiristas enfrentam sérias dificuldades. Uma objecção corrente é que um ignorante absoluto em matemática, nomeadamente, que desconheça os números, por muito que olhe para uma caixa de ovos nunca obterá qualquer crença numérica a respeito do conjunto de ovos que a caixa contém. Portanto, não parece que os números sejam objectos que existam no espaço-tempo.
A matemática é supostamente uma ciência. Qualquer ciência tem a pretensão de estabelecer afirmações verdadeiras. Todavia, os objectos da matemática não parecem existir no mundo exterior à nossa volta. Como pode a matemática ser uma disciplina com afirmações verdadeiras, se não houver tais objectos matemáticos? Este é um problema sério. Todos nós que estudámos um pouco de matemática sabemos que os matemáticos estão constantemente a pronunciar a palavra “verdade”. Sem objectos, não parece que a haja verdades matemáticas.
Antes de avançar importa notar que a conexão entre verdade e objectos não é exaustiva. Naturalmente, há muitas afirmações presumidamente verdadeiras, mesmo na ausência dos alegados objectos que referem. Por exemplo, afirmações morais verdadeiras como “não devemos matar inocentes” não implicam necessariamente que desatemos à procura de objectos particulares no mundo exterior para determinar o seu valor de verdade. Mesmo no âmbito da filosofia da matemática, a conexão entre verdade e objectos tem sido desafiada, defendendo a existência de verdades matemáticas mesmo na ausência dos presumíveis objectos que elas referem (Chihara 1991).
Uma solução para o problema acima é antiga e remonta ao mundo das Formas de Platão. A versão contemporânea dessa solução é aquela que defende que se postule a existência de objectos abstractos. Objectos abstractos são objectos sem localização espaciotemporal e sem poderes causais. As proposições matemáticas referem estes objectos. Dada a natureza destes objectos, não surpreende que não os encontremos no mundo exterior à nossa volta. São objectos num alegado mundo platónico, fora do espaço-tempo.
Até aqui tudo bem. Postular a existência de objectos abstractos, como números, funções, conjuntos, etc., parece resolver o nosso problema acima, mas é uma solução fraquinha. Obviamente, podemos postular a existência de muitos outros objectos apenas porque nos apetece! Ao longo da história, as mitologias são um repositório infundo de postulação das mais diversas entidades — deuses, anjos, santos, mafarricos, etc. — que levantam também alguns problemas sobre a sua suposta existência. Ou seja, não basta postular a existência de um objecto para que, automaticamente, esse objecto passe a existir. Assim, foi necessário pensar em argumentos que motivassem a existência de tais objectos abstractos.
Um dos melhores argumentos a favor da existência de objectos matemáticos foi formulado, de forma independente, por Quine e Putnam. É conhecido na comunidade filosófica como argumento da indispensabilidade matemática de Quine-Putnam. Uma versão do argumento é a seguinte:
Argumento de Quine-Putnam
- Devemo-nos comprometer com a existência de todos, e só aqueles, objectos que são indispensáveis às nossas melhores teorias científicas.
- Os objectos matemáticos são indispensáveis às nossas melhores teorias científicas.
- Logo, devemo-nos comprometer com a existência de objectos matemáticos.
O argumento é válido, mas a primeira premissa é mais forte do que o necessário para obter a conclusão. Se na premissa eliminarmos a expressão “e só aqueles”, continuamos a obter a mesma conclusão. Todavia, esta expressão é relativamente pacífica na discussão. A premissa é suportada por uma doutrina naturalista. O naturalismo é uma reacção ao cartesianismo que defendia uma primazia da filosofia relativamente à ciência. O naturalismo, nos termos em que Quine o define para a epistemologia, nivela a filosofia e a ciência, defendo uma paridade entre ambas. Nos dias de hoje, a maior parte dos filósofos é naturalista, não desejando estabelecer compromissos com objectos esotéricos. A inclusão da expressão “e só aquelas” na premissa corta de uma penada esses compromissos esotéricos.
Um problema imediato para o argumento é com o próprio termo “indispensabilidade”. Na verdade, o que significa ser um objecto indispensável a uma teoria científica? A resposta de Quine é bastante original e recorre à Lógica. Determinamos os objectos indispensáveis às nossas melhores teorias científicas verificando se os termos que designam esses objectos são variáveis ligadas a quantificadores. Trocando isto por miúdos, quando afirmámos, por exemplo, “existe uma chávena no armário” o termo “chávena” está ligado ao termo “existe”. Em termos lógicos, o termo “existe” interpreta-se como sendo o tal quantificador — para o caso, quantificador existencial. Se escrevermos as nossas teorias científicas numa linguagem lógica particular, os termos dos objectos matemáticos aparecem ligados a estes quantificadores. Logo, os objectos matemáticos são indispensáveis às nossas melhores teorias científicas.
Na primeira premissa, o problema principal encontra-se na quantificação “todos”. Será que efectivamente nos devemos comprometer com todas as entidades indispensáveis às nossas melhores teorias científicas? À primeira vista, não. A ciência está repleta de idealizações. No cálculo de forças no plano inclinado, assumimos que os objectos deslizam ao longo de um plano sem atrito, quando, na verdade, é sabido que não existe algo como planos inclinados sem atrito. Na teoria de gases, assumimos que os gases são ideais, onde as moléculas têm colisões elásticas, quando, na verdade, é sabido que não existe algo como colisões elásticas. Na física de objectos macroscópicos, assumimos que os objectos são contínuos, quando, na verdade, são constituídos por átomos microscópicos. No movimento planetário, em geral, assumimos que os planetas percorrem trajectórias elípticas estáveis, quando, na verdade, a atracção gravitacional entre planetas não possibilita um movimento planetário elíptico estável. E há muitos outros casos.
Se as nossas melhores teorias científicas estão comprometidas com objectos idealizados, que sabemos de antemão não estabelecerem uma correspondência verdadeira com os objectos que efectivamente existem, então também podemos começar a suspeitar que não nos devemos comprometer com os objectos matemáticos. Além do mais, tais objectos são abstractos e, para alguém com escrúpulos fisicistas, essa será uma razão acrescida para cortarmos tais objectos da nossa ontologia. Os objectos matemáticos estarão assim a par das idealizações científicas.
Como referi, a primeira premissa é suportada por uma doutrina naturalista. Ora, o filósofo naturalista não tem de subscrever tudo o que a ciência afirma. Há espaço para discussão entre ambos: a filosofia está a par da ciência. À luz desta doutrina, dando um passo atrás, as idealizações científicas são claramente falsas, enquanto os objectos matemáticos não parece que sejam objectos “falsos” nas teorias científicas. Por outras palavras, as idealizações científicas são dispensáveis, em virtude da sua falsidade evidente, enquanto os objectos matemáticos não caem nesta mesma categorização das idealizações. Portanto, as razões que temos para rejeitar as idealizações não podem ser igualmente aplicadas para rejeitar os objectos matemáticos.
A segunda premissa parece uma platitude. Basta folhear qualquer manual de Física para constatar que os objectos matemáticos fazem parte das nossas teorias físicas. No entanto, esta premissa foi engenhosamente desafiada por Hartry Field (1980) em Science without Numbers. Nesse livro, Field reescreveu a teoria gravitacional de Newton, limpando-a de todo e qualquer objecto matemático. Com este projecto, Field pretendeu mostrar que, na verdade, a matemática é apenas instrumental nas nossas teorias científicas. Por indução, as restantes teorias científicas também poderão ser expurgadas de toda e qualquer referência a objectos matemáticos.
Os indispensabilistas não tardaram a responder ao projecto de Field. Primeiro, a pretensão indutivista está longe de ser justificada. Mesmo que consigamos reescrever a teoria gravitacional sem objectos matemáticos, não se segue que as restantes teorias científicas também possam ser “limpas” de objectos matemáticos. Segundo: será que a teoria gravitacional reescrita de Field continua a ser uma das nossas melhores teorias científicas? Aquilo que faz uma teoria ser uma das nossas melhores teorias científicas obedece a alguns critérios epistemológicos, como simplicidade, fecundidade, unidade, etc. À luz desses critérios, se compararmos a teoria gravitacional original com a teoria gravitacional reescrita de Field, a primeira continua a ser melhor do que a segunda; por exemplo, é obviamente mais simples.
Antes de terminar quero referir uma pequena diversão a propósito do argumento principal deste texto. O argumento refere os nomes de Quine e Putnam, porém nenhum deles alguma vez formulou uma versão explícita e detalhada do argumento. Nos livros e artigos que estes autores foram publicando ao longo da vida apenas existem passagens em que referem o papel da aplicabilidade da matemática na ciência. Essa referência é, em todo o caso, uma obviedade: a aplicabilidade matemática na ciência existe desde que existe matemática e desde crianças nos apercebemos da mesma. Que é a contagem infantil de berlindes, digamos, se não uma aplicação matemática? Assim, a literatura filosófica está cheia de versões desse alegado argumento que, na verdade, os presumíveis pais do mesmo nunca escreveram explicitamente em parte alguma!
Neste texto apenas levantei um pouco o véu sobre o argumento da indispensabilidade matemática de Quine-Putnam. A literatura filosófica em volta deste pequeno argumento, no entanto, é muito vasta. Por exemplo, há livros inteiramente consagrados ao argumento (Colyvan 2001); há artigos unicamente dedicados a discutir versões subtilmente diferentes do argumento (Panza e Sereni 2015); e chega mesmo a haver artigos com títulos literatos como “Realismo Científico e Nominalismo Matemático: um Casamento no Inferno” (Colyvan 2006). O sítio PhilPapers, um sítio de referência para os investigadores em Filosofia, indica 228 referências para a secção dos argumentos da indispensabilidade em matemática.1