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5 de Março de 2020   Ética

A moral e o pão de queijo

José Costa Júnior
Human Kindness and the Smell of Warm Croissants: An Introduction to Ethics
de Ruwen Ogien
Tradução de Martin Thom
Nova Iorque: Columbia University Press, 2015, 256

O que nos torna bons ou maus? Essa profunda questão filosófica foi alvo de um experimento psicológico desenvolvido em 1997 pelo psicólogo Richard Baron. O estudo foi publicado num periódico americano tradicional da área de psicologia social e descreve os métodos e resultados da pesquisa de Baron. Primeiramente, os transeuntes de um grande shopping center foram expostos a situações em que poderiam ou não ajudar outras pessoas em situações corriqueiras e sem grandes custos de tempo ou de recursos. No entanto, as observações apontaram que os transeuntes eram significativamente mais propensos a ajudar alguém a recuperar uma caneta que caiu, ou em proporcionar algum tipo de ajuda, quando tais situações ocorreram na presença de odores agradáveis de comida (por exemplo, biscoitos, croissants e bolos quentes) do que na ausência de tais odores. Num segundo momento do estudo, foram realizadas mudanças no modo como os transeuntes foram expostos a oportunidades de ajuda, para observar se o seu humor ou a sua disposição para ajudar seriam diferentes. No entanto, a ordem em que as situações ocorriam não teve efeito nem no humor nem na disposição para ajudar, que continuou sendo significativamente maior na presença de fragrâncias agradáveis.

Uma questão que surge para filósofos é se os experimentos comportamentais como este trazem algum impacto para questionamentos filosóficos acerca da bem ou da natureza humana. Alguém poderia afirmar que a consideração das informações oriundas dessas pesquisas para a reflexão em relação ao que somos e ao que fazemos não passa de fatos isolados, sem grande relevância para a discussão ampla e geral própria da filosofia. No entanto, essa possível objeção não encerra o debate, uma vez ainda não se abordou de forma efetiva o alcance dos resultados para uma reflexão mais geral. Uma série de experimentos psicológicos voltados para questões morais estão disponíveis e possibilitam informações interessantes para filósofos morais. Além de tais experimentos realizados por psicólogos, economistas e outros estudiosos, diversos experimentos de pensamento também são cada vez mais comuns nos debates sobre ética (podemos dizer que a prática é até comum: um famoso e tradicional experimento de pensamento em filosofia moral é utilizado por Platão, no Livro II da República, ao testar possibilidades de resposta para o caso de Giges e seu anel). Assim, surgiu nas últimas décadas uma prática filosófica interdisciplinar, que busca analisar, discutir e considerar dados de investigações empíricas e experimentos de pensamento, principalmente nos debates da filosofia moral. Trata-se da filosofia moral experimental.

No caso do experimento de Baron, sobre o efeito de croissants quentes na bondade dos transeuntes do shopping, poderíamos perguntar se tais resultados não trazem consequências para a teoria aristotélica da ética das virtudes, por exemplo. Ao evidenciar o caráter situacionista das ações humanas, essa investigação levantaria questionamentos para quem defende a possibilidade de estruturação de um caráter estável e treinado para agir bem em cada caso. Se uma situação banal, como cheiros de assados, pode impactar a nossa bondade, teríamos alguma segurança em relação à noção de virtudes ou caráter? São essas e outras possibilidades e questões levantadas pela filosofia moral experimental que o filósofo francês Ruwen Ogien aborda em Human Kindness and the Smell of Warm Croissants: An Introduction to Ethics. Publicado originalmente em francês em 2011, este pequeno livro traz uma série de experimentos (factuais ou mentais) que são úteis para abordar diversas questões em filosofia moral. Tratam-se de problemas, dilemas e paradoxos que estimulam questões, levantam possibilidades e debatem pressupostos de propostas filosóficas tradicionais. Ogien também aborda o que chama de “ingredientes da ‘cozinha’ moral”, discutindo principalmente a tensão entre as nossas intuições morais e as regras do raciocínio moral.

Já no prefácio, Ogien explica que a ambição do seu livro introdutório é modesta: busca colocar à disposição daqueles que se interessam pelo tema uma caixa de ferramentas intelectuais para não ficar intimidado frente a grandes palavras, como “Dever”, “Virtude” ou “Dignidade”. Um dos pontos principais do livro é a sua constante discussão acerca das intuições morais humanas, isto é, os juízos diretos, espontâneos e supostamente evidentes que todos nós temos acerca de situações morais. O autor discute as origens, os fundamentos e a validade de tais intuições, juntamente com as tentativas de organização do raciocínio moral desenvolvidas pelos filósofos do longo da história. Cita e problematiza o que chama de três regras fundamentais do raciocínio moral:

  1. “Dever implica poder”, isto é, não se pode obrigar ninguém a fazer o impossível;
  2. “De um fato não de pode derivar um dever”, isto é, fatos não implicam deveres;
  3. “Deve-se tratar os casos similares de forma similar”, isto é, é necessário manter os mesmos critérios de avaliação e decisão nos diferentes casos.

Ao longo do livro, o autor dará inúmeros exemplos do uso de tais regras e também dos questionamentos possíveis.

A sua exposição considera também diversos experimentos psicológicos e mentais, com o objetivo de questionar ou confirmar as hipóteses filosóficas tradicionais. Assim, define a filosofia moral experimental como uma disciplina em gestação, que mescla o estudo científico da origem das normas morais nas sociedades humanas e animais com a reflexão sobre o valor dessas normas, e qual será a sua contribuição para a filosofia (se houver). Para muitos filósofos, essa contribuição seria nula, pois os experimentos psicológicos abordam fatos e não valores e normas, estes, sim, o objeto de uma filosofia moral propriamente dita. No entanto, Ogien mostra possibilidades relevantes para a consideração de experimento psicológicos na filosofia moral experimental, principalmente em relação à compreensão do modo como os seres humanos lidam tradicionalmente com as circunstâncias à sua volta, principalmente em questões ligadas à moralidade (tendências, vieses, influências, posicionamentos, entre outros traços comportamentais).

Outros questionamentos específicos sobre o uso de experimentos mentais em filosofia moral envolvem o caráter frágil e artificial das situações apresentadas. Tais descrições ficcionais e circunstanciais não poderiam servir para abordar e discutir hipóteses morais mais gerais, dado a sua simplicidade e estrutura. No entanto, para Ogien, tal objeção ao uso de experimentos não funciona, uma vez que não se trata de uma investigação sobre a realidade em si, mas sim de uma tentativa de esclarecimento de pressupostos e consequências acerca de hipóteses morais. Tais experimentos não substituem a prática filosófica de oferecer razões para sustentar hipóteses, mas trata-se de uma possibilidade a mais para a compreensão (um exemplo que nos vêm à mente é o caso do “assassino curioso” utilizado por Immanuel Kant para abordar a questão da dignidade humana). Assim, o experimento de pensamento pode evidenciar problemas conceituais (como a noção de “bondade”, problematizada no experimento de Baron e o cheiro de bolos quentes — no Brasil, poderíamos usar o pão de queijo) e discutir as bases e os limites das teorias morais tradicionais, como a ética das virtudes, o deontologismo e o utilitarismo. Por fim, tais experimentos levam ao limite as nossas intuições morais, mostrando que nem sempre tais juízos espontâneos podem ser embasados ou têm suas consequências consideradas. Com o desenvolvimento tecnológico, experimentos comportamentais e experimentos de pensamento tiveram as suas possibilidades ampliadas, como no caso da utilização de escaneamento cerebral em momentos de decisão moral, a partir do uso de situações ficcionais, e também na aplicação de pesquisas em diversos países para avaliação da proximidade de posicionamentos morais em diferentes culturas.

A primeira parte do livro é composta por dezanove “quebra-cabeças morais”. O primeiro experimento considerado por Ogien envolve a distinção entre matar e deixar morrer. Para isso, considera a possibilidade de matar um indivíduo para salvar cinco pessoas gravemente feridas que estão a caminho de um hospital. Mostra que parte considerável dessa distinção está ligada à perspectiva que temos da situação, e que as nossas intuições morais são confusas em certos casos. No segundo caso, Ogien retoma um experimento desenvolvido pelo filósofo Peter Singer, que discute o afogamento de uma criança num lago, situação que encontramos quando vamos ao trabalho com nossos sapatos novos. Seria moralmente adequado deixar a criança se afogar? Não devemos fazer nada? Se acreditarmos que não, consequentemente, devemos considerar a possibilidade de evitar que crianças morram de fome em outros países, pois também podemos ajudar nesses casos (considerando a regra de tratar os casos similares de maneira similar). Num questionamento da proposta utilitarista, Ogien retoma a possibilidade de matar um indivíduo, agora num hospital, onde o conjunto de órgãos de um corpo humano pode salvar cinco vidas, situação parecida com o caso de entregarmos um bode expiatório para acalmar a ira de uma multidão enfurecida. No entanto, as nossas intuições apontam para caminhos diferentes nos dois casos.

Na sequência, Ogien apresenta o experimento de pensamento proposto por Philipa Foot e ampliado por Judith Thompson na década de 1960 acerca de um bonde desgovernado, que também explora o ponto de vista utilitarista de trocar cinco vidas por uma. Trata-se de um clássico da filosofia moral contemporânea, que já produziu uma vasta coleção de análises e hipóteses. Além de explorar as possibilidades e questões levantadas pelo experimento, abordam-se pesquisas desenvolvidas recentemente pelo pesquisador Marc Hauser, que levou o “dilema do bonde” para diversos países e culturas — configurando um experimento comportamental a partir de um experimento de pensamento. As suas conclusões apontam para um cenário de uniformidade entre as respostas de diferentes pessoas e culturas, discutindo a possibilidade de uma “mente moral”. Além disso, Ogien discute o alcance limitado das teorias deontologistas e consequencialistas nesse caso, juntamente com uma análise das confusas intuições morais que manifestamos. Outro experimento comportamental conhecido abordado por Ogien foi desenvolvido pelo psicólogo Jonathan Haidt, que questiona pessoas em diversos cenários e situações sobre se uma relação sexual entre irmãos, consentida e segura, acarretaria problemas morais. Além disso, Haidt também pede que sejam oferecidas justificativas, que são prontamente respondidas. O quadro revelado pela pesquisa de Haidt é que a maioria das respostas a situações morais como a do incesto consentido são intuitivas e pouco refletidas. Tal situação apontaria para o caráter emocional e direto de nossas reações morais. Temos aqui um experimento que questiona o papel da razão em nossas reações morais, que, em tese, evidencia a proeminência das emoções. Outro experimento questiona o que fazer com um indivíduo sem escrúpulos morais. A pergunta de fundo aqui é: por que agir moralmente? Nesse experimento, que aborda a existência de um indivíduo amoral, Ogien oferece um rico debate sobre limitações de alguns de nossos pressupostos filosóficos.

Na sequência, temos uma série de experimentos mentais ligados ao valor da vida, como no experimento mental da máquina de experiências, que retoma o argumento do filósofo Robert Nozick: trocaríamos nossa vida real, com frustrações e decepções, por uma vida artificial, marcada por remédios químicos e mecânicos? Tendemos a preferir a realidade em detrimento de ilusões, mas esse caso também põe à prova algumas de nossas intuições e regras de raciocínio. Diretamente ligado a este experimento, estão as questões sobre os motivos para a existência (Uma vida breve e medíocre vale mais que nenhuma vida?) e sobre a dignidade da vida humana (Vale a pena viver essa vida?) E as vidas dos animais? O seu valor está diretamente relacionado ao valor da vida humana, ou se trata de um valor inerente, para lá de sua utilidade? Todas essas questões envolvem os limites da posição utilitarista em filosofia moral, abordados por Ogien num interessante experimento sobre a possibilidade de ser um utilitarista coerente.

Outro experimento mental famoso criado por Judith Thompson para defender sua posição pró-aborto envolve uma situação onde um grande violonista está preso e ligado ao corpo de um indivíduo durante nove meses. Mesmo sendo alguém importante, o indivíduo tem obrigação de manter essa ligação no seu corpo? Para Thompson não, mas Ogien levanta reflexões sobre o problema, mostrando, mais uma vez, os limites de algumas regras do raciocínio moral, como a relação entre fatos e valores e o tratamento de casos similares. Ainda no terreno da bioética, o autor desenvolve uma análise das objeções aos procedimentos genéticos que se fundamentam no argumento de que “não podemos brincar de Deus”, que questionam as mudanças que podemos causar nos processos naturais. Mas o que chamamos de natureza? O que consideramos para defender a proibição das práticas de engenharia genética? Noutro experimento de pensamento, o autor passa então a questionar o que somos, já que tudo o que nos compõe muda de tempos em tempos. Esse experimento tem por base o “navio de Teseu”, que tem todas as suas partes trocadas, e levanta questionamentos sobre identidades e definições.

Entre os últimos experimentos abordados, encontramos questões mais gerais sobre a agência e a liberdade humanas. Ogien nos pede que imaginemos um universo onde a sexualidade fosse completamente livre. Como seriam nossas organizações sociais e sentimentos? Gostaríamos de viver num mundo assim? Tais questões nos levam a ver como nossos posicionamentos são culturalmente definidos, mesmo quando pensamos que somos suficientemente reflexivos em alguns tópicos. Na sequência, Ogien aborda o modo como automaticamente atribuímos intenções a certas circunstâncias específicas (mais uma vez, de forma intuitiva e pouco reflexiva) e se nossos pressupostos sobre a liberdade humana possuem fundamentos sólidos. Sabemos cada vez mais sobre o nosso comportamento e essa vasta quantidade de informação impacta nossas tradicionais concepções sobre autonomia e racionalidade, mostrando que não somos tão livres e soberanos quanto as principais teorias em filosofia moral parecem pressupor.

Na última experiência abordada no livro, Ogien discute alguns experimentos comportamentais que colocam em xeque a possibilidade de uma personalidade estável, racional e segura, como no caso da experiência de Baron e o impacto do aroma de assados sobre a bondade humana. Cita também um famoso experimento realizado com seminaristas pelos psicólogos John Darley e Daniel Batson em 1973. Os religiosos estavam presentes em uma palestra sobre a Parábola do Bom Samaritano. Porém, uma vez postos numa situação em que estavam com pressa, a maioria deles não ajudou indivíduos que pediam ajuda. Mesmo com vivências e orientações objetivas sobre somo agir moralmente, os seminaristas foram impactados pela situação onde estavam inseridos. Experimentos psicológicos famosos no século XX também revelariam o caráter situacionista de nossas reações morais, como os experimentos desenvolvidos pelo psicólogo Stanley Milgram, sobre a obediência à autoridade (1963), e por Philip Zimbardo, que ficou conhecido por seu Experimento da Prisão de Stanford (1971), que também abordou o modo como os indivíduos podem agir com violência e agressividade em grupo. As interpretações possíveis sobre tais experimentos seguem em aberto, mas a filosofia moral experimental tem buscado ampliar as discussões sobre esses e outros experimentos e suas consequências para a reflexão filosófica, num diálogo interdisciplinar produtivo sobre o que somos e o que podemos ser.

Já na segunda parte do livro, Ogien aborda as intuições e as regras de raciocínio moral, por meio da apresentação de hipóteses e debates sobre esses dois “ingredientes da cozinha moral”. No caso da criança que se afoga no lago, o nosso juízo intuitivo aponta para o salvamento imediato da criança. No entanto, quando o salvamento da criança envolve o envio de recursos para outros países, a nossa intuição imediata não é tão forte assim. Porém, segundo a regra de igual consideração em casos similares, algo parece estar fora de lugar. Com esse tipo de questionamento, o autor oferece uma série de situações em que nossas intuições morais são conflituosas não apenas em relação às regras do raciocínio moral, mas também em relação à outras intuições.

Mas qual seria o lugar das intuições na construção de uma filosofia moral? Muitos filósofos fundam as suas teorias e posicionamentos em intuições básicas. Mas por que as suas intuições? Seriam reações gerais, ou apenas dessa pequena população que classificamos, sem muitos critérios, como “filósofos”? Para compreender melhor a natureza das intuições, Ogien discute uma série de experimentos comportamentais que investigam como as pessoas reagem a situações morais em diversas culturas (como as pesquisas de Hauser e Haidt), juntamente com investigações das neurociências, como a pesquisa desenvolvida pelo filósofo, psicólogo e neurocientista Joshua Greene. Este desenvolveu um método no qual avaliava o padrão cerebral de indivíduos em momentos de decisão moral. A sua pesquisa destacou mais uma vez o papel das emoções em tais circunstâncias, dado que a grande maioria dos juízos intuitivos e espontâneos oferecidos pelos indivíduos quando questionados envolvia pouca reflexão, acionando áreas do cérebro diretamente ligadas às emoções. Ogien aborda alguns problemas metodológicos e epistemológicos em experimentos comportamentais desse tipo. Porém, destaca também o fato de que a reflexão moral nunca ser isolada de fatos, sejam intuitivos, sejam emocionais, e por isso é necessário compreender o seu papel em nossos juízos, avaliações e teorias morais.

Uma hipótese contemporânea bastante difundida aponta para a existência de um “senso moral inato”: “se julgamos aos demais em termos morais e se nós mesmos buscamos atuar moralmente é porque somos naturalmente providos de certas capacidades morais que se expressam desde o nascimento” (p. 191). Estamos “programados” para avaliar as ações de outros humanos em termos morais, devido ao modo como a nossa espécie se desenvolveu ao longo de sua história natural. Do mesmo modo que nossas capacidades linguísticas se desenvolveram naturalmente, fazendo com que possamos aprender uma língua específica, temos um senso moral, explicável em termos de evolução por seleção natural, que nos torna “animais morais”, isto é, formas de vida que buscam regular o seu comportamento e o dos outros por meio de normas e regras. O próprio Charles Darwin propôs uma hipótese acerca da evolução do senso moral humano, porém Ogien aborda o tema sem explorar muito as diversas explicações oferecidas. Trata, de maneira geral, da explicação da psicologia evolucionista, que defende a existência de um “módulo para detecção de trapaceiros”, que se desenvolveu em nossa espécie a partir das relações de cooperação e convívio ao longo da história da espécie e que marcou profundamente a nossa mente. No entanto, encontrar o “lugar da moral” no cérebro humano seria complexo, dado que as hipóteses sobre uma possível modularidade da mente, um tipo de compartimentalização do cérebro humano com áreas dedicadas a tarefas específicas, são cada vez mais questionadas.

Assim, Ogien questiona a possibilidade de um senso moral humano, principalmente em relação à metodologia das investigações empíricas e às evidências disponíveis. Porém, a discussão proposta por Ogien sobre o senso moral humano e sua evolução parece ser limitada pelo espaço disponível no livro, já que o autor opta por apenas uma abordagem (a explicação da psicologia evolucionista). Existem diversas investigações relevantes para esse tema, oriundas da primatologia (os experimentos de Frans de Waal, por exemplo), da antropologia evolucionista (os experimentos Michael Tomasello), da psicologia do desenvolvimento (os experimentos de Paul Bloom) e da neurociência (os experimentos do brasileiro Jorge Moll Neto), para citar apenas três áreas que abordam a temática da existência e evolução de um senso moral humano. Num livro que se propõe discutir a natureza das intuições morais, a discussão sobre evolução da moralidade poderia ocupar mais espaço. Além disso, a abordagem rápida não discute outras possibilidades. Mesmo que não tenhamos um senso moral inato, alguns traços de nossas reações morais envolvem reações, vieses e tendências que são passíveis de uma compreensão naturalista e evolucionista. Evidenciar tais traços é relevante, pois nos traz mais informações acerca de nossa natureza.

Nas últimas seções da segunda parte do livro, Ogien trata das implicações filosóficas dos resultados experimentais. O título de um dos capítulos evidencia sua posição: “Um filósofo prevenido quanto aos limites das suas intuições morais vale por dois, ou mais”. Retoma a discussão sobre a relação entre emoções e razão nos juízos morais, agora no âmbito da discussão metaética mais aprofundada sobre a existência ou inexistência de verdades morais. Seria possível defender a existência de verdades morais, configurando um realismo moral naturalista? Ou o antirrealismo é a única posição possível? O autor termina a segunda parte do livro levantando questões sobre o uso das regras de raciocínio moral, principalmente a distinção entre fatos e valores. Diversas críticas foram oferecidas a essa questão e Ogien as descreve de forma razoável. No caso específico da utilização de experimentos comportamentais para abordar questões de filosofia moral, não há confusões entre fatos e valores, uma vez que os dados empíricos são usados para suscitar um diálogo sobre os conceitos morais (“Por que considerar x um bem?’”) e não para substituí-los (“Se todos fazem x, isso é bom”).

Conforme já havia adiantado em seu prefácio, Ogien critica as tentativas de fundamentação da moral, isto é, de estabelecer princípios e normas fixas para todas as circunstâncias. Sua posição é que, a partir do quadro efetivado pelo atual estado da arte em filosofia moral experimental, não temos condições de sustentar uma moralidade fixa e estável, que nos garanta princípios morais únicos, supremos, inquestionáveis e inalteráveis. Dessa forma, Ogien defende um pluralismo moral, “a ideia de que existem várias teorias morais de conjunto, igualmente razoáveis” (p. 232). Essa abordagem plural se adequaria melhor ao conjunto formado pelas nossas intuições morais (frágeis e situacionais) e as regras básicas (e sempre discutíveis) do raciocínio moral. Não se trata de um relativismo pueril, mas sim de considerar seriamente 1) as nossas limitações em relação a descobertas de verdades (caso existam) em filosofia moral e 2) as dificuldades de uma forma de vida tão complexa quanto a nossa.

De maneira geral, Human Kindness and the Smell of Warm Croissants é uma estimulante introdução à ética. Pressupõe alguns conhecimentos sobre o tema, mas sua ausência não inviabiliza a leitura. As discussões desenvolvidas sobre os experimentos de pensamento e os experimentos comportamentais citados são informativas e contidas. Às vezes se espera que o autor desenvolva um pouco mais suas posições, oferecendo mais razões para o que defende. No entanto, o quadro geral oferecido é bem interessante em termos de introdução. A tradução do livro seria bem-vinda nos cursos introdutórios de filosofia moral nas universidades brasileiras, tanto por expor novas possibilidades para a reflexão filosófica, quanto pelo caráter interdisciplinar da proposta. Da próxima vez que estivermos num shopping center, é interessante que os filósofos fiquem mais atentos aos efeitos do cheiro de pão queijo sobre a bondade humana.

José Costa Júnior

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