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11 de Maio de 2008   Metafísica

Por que há algo em vez de nada?

Rui Daniel Cunha
Why Is There Something Rather Than Nothing? Questions From Great Philosophers
de Leszek Kolakowski
Londres: Penguin Books, 2008, 240 pp.

“Por que há algo em vez de nada?” é a formulação básica — desde Leibniz — de um problema da metafísica: a questão, se é que tem sentido, consiste em descobrir uma razão de ser para a própria existência de um mundo repleto de coisas que o compõem, em vez de um puro vazio, a ausência de universo, o nada. “Por que há algo e não nada?” é também o título do mais recente livro de Leszek Kolakowski.

Kolakowski é um filósofo polaco, exilado nos Estados Unidos e em Inglaterra desde o final dos anos 60 do século passado, onde foi professor universitário, e é o autor de um estudo monumental acerca do marxismo (Main Currents of Marxism, cuja primeira edição data de 1976), corrente filosófica — na versão do “humanismo marxista” — de que viria progressivamente a afastar-se. Esta tradução inglesa do original polaco consta de trinta curtos ensaios acerca de outros tantos problemas da filosofia, abordados no contexto histórico desse mesmo número de grandes filósofos do passado, de Parménides e Heraclito até Heidegger e Jaspers.

Não é, claro, uma história da filosofia para profissionais (professores, investigadores e estudantes da disciplina); é antes um livro destinado ao público que se interessa por questões filosóficas em geral, desde que apresentadas no estilo claro e conciso — como é o caso desta obra — que as tornam acessíveis ao leitor não profissional de filosofia. Neste aspecto, penso que este livro de Kolakowski é francamente edificante, em linguagem rortyana: nada demonstrando, nem pretendendo obter quaisquer resultados filosóficos ou interpretativos definitivos, o autor estimula-nos invariavelmente a pensar por nós próprios acerca dos problemas que aborda. Isso é conseguido graças ao final de cada capítulo, onde se apresentam invariavelmente algumas objecções às teses e argumentos propostos pelo pensador estudado para o problema em causa. Essas objecções são tipicamente inteligentes e importantes, obrigando o leitor à continuação da reflexão acerca dos problemas apresentados. Note-se, parenteticamente, que isto é que é verdadeiramente exemplificar em que consiste a notória “problematização”, de que os programas de Filosofia do secundário tanto falam sem nunca esclarecer verdadeiramente.

Logo na Introdução, Kolakowski apresenta-nos o seu objectivo:

“Existem muitos bons manuais, enciclopédias e dicionários de filosofia, e não é minha intenção “resumir” Platão, Descartes ou Husserl; essa seria uma ambição absurda. Gostaria antes de abordar estes grandes filósofos concentrando-me numa ideia do pensamento de cada um deles — uma ideia importante, uma ideia fundamental na sua construção filosófica mas que nós ainda hoje podemos compreender; uma ideia que nos afecta, e não uma ideia que seja apenas um pedaço de informação histórica”. (pg. ix)

O maior mérito deste livro, a meu ver, reside aqui: colocar questões que qualquer pessoa coloca naturalmente — por exemplo, “será que a vida tem sentido?”, ou “o que é a felicidade?” — e abordá-las sofisticadamente, iniciando o leitor no trabalho de reflexão conceptual próprio da filosofia.

Vejamos então a questão “o que é a felicidade?”. No livro de Kolakowski esta questão é abordada no âmbito do ensaio acerca de Aristóteles. Kolakowski diz-nos que o problema de saber o que é a felicidade e como alcançá-la é um dos problemas cruciais da ética aristotélica:

“Para ele [Aristóteles] a palavra grega eudaimonia, que em inglês se traduz normalmente pela palavra “felicidade”, descreve uma condição permanente, ou relativamente permanente, de uma pessoa. A felicidade é um fim em si — o mais elevado fim e aquele pelo qual mais vale a pena lutar. Outros tipos de bens, como os prazeres e as distinções, e mesmo vários tipos de perfeição moral, podem ser fins em si próprios, mas também podem ser meios — os meios pelos quais se pode atingir a felicidade; mas a própria felicidade não é um meio para seja o que for” (pg. 39).

É este carácter único da felicidade que lhe confere uma importância inigualável na teoria moral aristotélica. Como atingi-la então? Bem, a resposta de Aristóteles passa pela virtude — a prática das boas acções, para cuja determinação a razão é fundamental:

“E apesar de todos sermos vulneráveis às adversidades do destino, o homem que é verdadeiramente feliz nunca será infeliz, pois agirá sempre de acordo com a virtude; nunca fará algo que seja moralmente errado” (pg. 40).

Claro que o termo grego aretê tem um âmbito semântico que não se reduz ao termo “virtude” — aretê é a excelência numa qualquer realização teórica ou prática. A regra do justo meio é instrumental para este objectivo. Por exemplo, como escreve Kolakowski, “quer a avarice quer o esbanjamento são erros; a generosidade racional evita ambos os extremos” (pgs. 40–41).

As dificuldades levantadas por esta teoria moral aristotélica, baseada nas duas teses cruciais da felicidade como resultante da virtude, e da aquisição da virtude pela regra do justo meio, são então apresentadas ao leitor — e este, diante delas, é obrigado a pensar por si próprio acerca do problema. Deixe-me citar uma dessas objecções, para exemplificar:

“Deveremos sempre condenar aqueles que levam as coisas até ao limite? E serão sempre tais pessoas verdadeiramente infelizes? [...] Alguém que aprecia o risco, por exemplo, na forma de desportos radicais — será necessário condenar tal pessoa, se é isso que lhe dá o sentimento de viver a vida na sua plenitude? Todos actuamos por vezes contra a regra aristotélica da moderação, talvez simplesmente porque isso nos dá prazer; poderão censurar-nos se existe algo de errado em tais prazeres, mas será que isto tem de ser descrito em termos de felicidade ou de infelicidade?” (pg. 43).

Tomemos um outro ensaio relevante, agora a propósito da outra questão — “será que a vida tem sentido?”. Trata-se do ensaio acerca de Heidegger — “Verdade, Ser e Nada: o que é a existência humana?”. Até mesmo aí Kolakowski consegue ser bastante claro — é mesmo absolutamente transparente por comparação com os padrões de explicação heideggeriana a que estamos habituados. Claro que o Sein (em inglês, Being) está presente em todo o lado, mas somos poupados a afirmações de sentido duvidoso (no mínimo), como, por exemplo, a famosa afirmação “o Nada nadifica”, alvo da crítica de Carnap — embora a questão da compreensão do Nada esteja presente (leiam-se as páginas 266-267). Kolakowski, contudo, é imparcial: escreve que

“Heidegger é realmente difícil e frequentemente irritante de ler. Mas o esforço é frutífero: a sua prosa alemã retorcida, quase intraduzível, não é o resultado de um capricho mas sim de uma tentativa de exprimir algo de importante, de desenterrar algo que, na sua perspectiva, tinha sido escondido ou esquecido” (pgs. 260–261).

Para, logo de seguida, escrever o seguinte:

“A obra mais conhecida de Heidegger, Ser e Tempo, é uma busca do sentido do Ser. Infelizmente, não nos diz qual é esse sentido, e não vai além do primeiro volume [Heidegger nunca escreveu a prometida continuação de Ser e Tempo]” (pg. 261).

E as dificuldades para a caracterização do Ser continuam:

“O Ser poderia dizer-nos o que significa existir, mas nós não sabemos verdadeiramente a resposta. O Ser não é Deus; se Deus existe, ele é uma entidade particular, e não o Ser” (pg. 262).

Porém, várias teses relevantes heideggerianas acerca da existência humana são apresentadas claramente: o carácter não acidental da existência humana; o carácter único da existência individual de cada ser humano; a angústia como característica essencial da existência; o declínio como perda da autenticidade existência; e, finalmente, o ser humano como ser-para-a-morte. Além de abordar a questão da linguagem (e a importância da linguagem poética para a filosofia de Heidegger), Kolakowski detém-se na questão que dá o título ao seu livro:

“E é apenas a experiência do nada que nos permite colocar a questão fundamental — a questão que Heidegger herdou de Leibniz, modificando-a apenas ligeiramente: “por que existe o Ser e não o Nada?” Heidegger não tem a pretensão de conhecer a resposta, nem mesmo de que uma resposta é de todo possível. Mas enfatiza a importância de colocar a questão e pensar acerca dela” (pgs. 266-267).

Mas será que vale mesmo a pena pensar acerca deste problema? O próprio Kolakowski o admite:

“Será que a questão de Leibniz “porque é que há algo e não nada?” tem sentido? Será que é verdadeiramente uma questão?” (pg. 270).

É fortemente argumentável a tese segundo a qual este problema não é mais do que um pseudoproblema (por exemplo, e a propósito da versão do Wittgenstein do Tractatus Logico-Philosophicus desse problema como algo de “Místico”, leia-se o que escreve Desidério Murcho.

Mais uma vez, Kolakowski não termina o seu ensaio sem colocar objecções à teoria que acabou de expor e que, de novo, nos forçam a pensar por nós próprios. Deixe-me citar também uma dessas objecções para ilustrar isto:

“Heidegger exorta-nos a ser autênticos — verdadeiros para com nós próprios. Isto não parece ser uma ordem moral; podemos imaginar um violador, por exemplo, ou um assassino, ou um torturador numa ditadura, a ser tão autêntico quanto um santo, ou alguém que nos ajuda bondosamente. Então por que razão deve a autenticidade ser o princípio supremo e não antes, por exemplo, a ajuda às outras pessoas?” (pg. 270).

Mas outros ensaios, na minha opinião, são também recomendáveis, por regra graças à sugestiva exposição do problema seleccionado para cada pensador: por exemplo, Sexto Empírico e “Conhecimento e Crença: será que podemos conhecer algo?”, Locke e “Razão, Liberdade e Igualdade: de que é que Deus nos dotou?”, e Nietzsche e “A vontade de poder: será que existe o bem e o mal?”. Nestes e noutros ensaios a apresentação das teses e dos argumentos de cada pensador é sempre a adequada aos leitores, mas sem perder a necessária precisão filosófica.

O mais relevante defeito deste livro de Kolakowski é óbvio — faltam alguns pensadores e alguns problemas muito importantes, a começar por Wittgenstein, como o próprio autor admite:

“Quando deliberava qual dos grandes pensadores do século XX deveria ocupar o último lugar nesta galeria de filósofos, a escolha parecia óbvia: tinha de incluir Ludwig Wittgenstein, uma influência gigantesca na filosofia desse século e ainda hoje um pensador relevante. Mas apercebi-me que apesar de ter lido quer o próprio Wittgenstein quer alguns bons livros acerca dele, ainda não tinha ideia alguma do que ele queria transmitir”(pg. 281).

Bem, permito-me sugerir uma questão tão relevante em Wittgenstein — boa parte da sua obra é acerca dela — como na filosofia actual: “o que é o sentido linguístico?”.

E também faltam, por exemplo, Frege, Russell ou Quine — lamentavelmente, Kolakowski não inclui qualquer pensador da filosofia analítica. E o pragmatismo ficou igualmente de fora: não há nem Peirce, nem William James, nem John Dewey. Não estão ainda, enfim, Marx (o que é incompreensível, face ao trabalho anterior de Kolakowski), nem Sartre, por exemplo. E porquê Bergson (questão “o que é o espírito humano?”) ou Jaspers (questão “será que o sofrimento nos enriquece?”), filósofos seguramente muito menos influentes do que os anteriores? Resultado: o século XX em filosofia fica reduzido arbitrariamente a Bergson, Husserl, Jaspers e Heidegger, o que é totalmente inaceitável visto implicar a ausência de áreas inteiras da filosofia que tiveram um enorme desenvolvimento neste século — a lógica, a filosofia da linguagem e a filosofia da mente, só para referir três delas.

Mas esta crítica grave não pode fazer esquecer o que se disse anteriormente: no seu melhor, alguns dos ensaios deste livro contêm insights relevantes para a compreensão dos problemas, das teorias e dos argumentos de alguns grandes pensadores da história da filosofia.

Rui Daniel Cunha

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ISSN 1749-8457