A ontologia das obras de arte é um ramo da estética que examina o(s) género(s) de existência que têm as obras de arte (incluindo as obras literárias e musicais). Só no século XX a ontologia das obras de arte se tornou um tópico de discussão regular e contínuo entre os filósofos. Evidentemente, encontramos observações sobre este tópico nos escritos dos filósofos anteriores; mas essas observações ou eram incipientes ou, como no caso de Hegel, não eram retomadas por outros filósofos. Neste século, Roman Ingarden tem sido de longe a figura mais notória no continente europeu e, depois dele, Benedetto Croce. Por contraste, na tradição anglo-americana chegaram-nos contributos de diversos quadrantes, e nenhum pensador se destacou dos outros do modo como Ingarden se destacou entre os filósofos continentais.
Os fenómenos que uma ontologia da arte satisfatória tem de organizar e explicar são extraordinariamente ricos e diversos. Comecemos com uma breve inspecção, expressa em linguagem comum, destes fenómenos; veremos depois algumas das teorias.
Em diversas artes (e.g., música, dança, teatro) trabalhamos normalmente com a distinção entre uma execução de algo e isso que é (ou pode ser) executado. Chamemos ao último um executável. Em música, pelo menos, pode-se ter em mente uma de duas entidades muito diferentes ao falar de uma execução: pode-se ter em mente um acto de executar a obra; ou pode-se ter em mente uma ocorrência da obra executada. Disciplinemos um pouco o nosso uso da linguagem, e chamemos execução apenas à última.
Que operamos efectivamente com a distinção entre executáveis e execuções é evidente a partir das três considerações seguintes (das quais a segunda e terceira são, estritamente falando, aplicações da primeira). Primeiro, uma execução divergirá sempre em algumas das suas propriedades da obra que executa; e sucede muitas vezes divergir efectivamente nos aspectos em que não tem de divergir. Assim sucede que os críticos fazem observações como “Toda a energia do primeiro andamento do concerto estava ausente na execução de ontem à noite”. Falar deste modo é trabalhar com a distinção executável/execução, e afirmar que, embora o primeiro andamento do executável tenha a propriedade de ser enérgico, o primeiro andamento da execução de ontem à noite não tinha essa propriedade. Segundo, o nosso modo de usar a linguagem da identidade e diversidade indica que trabalhamos com a distinção executável/execução. Pois falamos de a mesma obra ter execuções (ocorrências) distintas. Mas, em geral, duas coisas distintas não podem ser idênticas a uma única coisa. Isto deixa em aberto a possibilidade abstracta de uma das execuções ser idêntica ao executável e a outra não; mas isso parece simplesmente incoerente. A conclusão tem de ser que o nosso modo de usar os conceitos de identidade e diversidade ao falar das artes performativas indica que operamos efectivamente com uma distinção entre executáveis e execuções.
Terceiro, o nosso modo de usar o conceito de existência indica o mesmo. Falamos frequentemente das obras como algo que existe antes de qualquer execução sua ter tido lugar. Então, uma vez que a obra tenha existido durante algum tempo, tem lugar uma execução da mesma; após algum tempo, a execução termina, enquanto a obra permanece. Também aqui pressupomos a distinção. Vale a pena acrescentar que na dança e no teatro encontramos normalmente razão para introduzir uma entidade que se situa entre a obra e as suas execuções. Falamos de uma produção. E uma determinada produção de uma obra nem é a própria obra nem é uma execução particular. (Trata-se na verdade de outro género de executável.)
Em algumas das artes não performativas trabalhamos com distinções que se assemelham bastante à distinção executável/execução. Ao lidar com impressões de arte gráfica, por exemplo, distinguimos normalmente entre uma impressão particular e a obra de que é uma das impressões. Ao lidar com a escultura por fundição em moldes distinguimos entre uma fundição particular e a obra da qual é uma das fundições. Aqui e ali na arquitectura sentimos necessidade de uma contraparte da distinção — entre, digamos, um exemplo de uma das casas usonianas de Frank Lloyd Wright, e a própria Casa Usoniana de que a casa é um dos exemplos.
As considerações que impõem estas distinções são, na sua estrutura, exactamente as mesmas que as que impuseram a distinção entre executáveis e as suas execuções. Uma dada impressão de uma composição tipográfica pode muito bem ter começado a existir depois de a própria composição tipográfica ter sido criada, e pode muito bem deixar de existir antes de o mesmo suceder à composição tipográfica. Falamos de duas fundições diferentes da mesma escultura. E uma casa usoniana particular pode, para lidar com a precipitação elevada do seu clima, ter um algeroz onde a própria Casa Usoniana, da qual é um exemplo, não o tem. Na literatura e no cinema trabalhamos também com tais distinções. Para a maioria das obras de literatura, há muitas cópias da mesma obra literária — e nos casos em que realmente não há muitas cópias, é sempre possível havê-las. E no cinema há muitas cópias da mesma obra de arte cinematográfica — ou, mais uma vez, se não as há, isso é puramente acidental; poderia havê-las.
Será conveniente ter um conjunto de termos para assinalar todas estas distinções diferentes, mas paralelas. Sigamos uma prática cada vez mais comum, tomando de empréstimo a C. S. Peirce os termos “tipo” e “espécime”. Peirce introduziu estes termos para assinalar a distinção entre uma palavra compreendida como uma coisa que pode ser repetidamente inscrita ou pronunciada, e uma palavra compreendida como uma inscrição ou ocorrência sonora. À primeira chamou tipo e à última chamou espécime. Designaremos como espécime a impressão de uma composição tipográfica, e como tipo a obra de que aquela é uma impressão; chamaremos espécime a uma execução de uma obra musical, tipo à obra de que é uma execução; etc.
Observa-se uma tendência, nos que começam a reflectir na ontologia das obras de arte, para pensar que a obra executada em música é o mesmo que a partitura, quando há uma partitura, como há a tendência de pensar que a obra executada no teatro é idêntica ao seu guião. Mas, muito evidentemente, isto é um equívoco; e a nossa distinção comum entre uma obra musical e a sua partitura, uma obra teatral e o seu guião, etc., é para ser tida em consideração. Porquanto não só pode uma obra musical existir sem que alguma vez se tenha feito uma partitura da mesma; todas as impressões de uma partitura podem ser destruídas e a obra persistir — em virtude, por exemplo, de estar guardada na memória das pessoas. Pode-se acrescentar que a distinção tipo/espécime tem também aplicações a partituras, guiões e desenhos.
Falamos de um modo diferente acerca de pinturas e de esculturas que não são para fundição em moldes. Aqui não operamos com seja o que for de semelhante à distinção tipo/espécime. Evidentemente, há reproduções de pinturas e cópias de esculturas que não são para fundição. Mas estas não são originais do modo como as impressões de composição tipográficas e fundições de esculturas são originais. Na área da tipografia artística, distinguimos entre uma impressão e uma reprodução da impressão; esta é exactamente como a distinção entre uma pintura e uma reprodução da pintura. O que está ausente na nossa conversa sobre pinturas é aqueloutra distinção com que trabalhamos no campo das artes gráficas — a distinção entre uma impressão original de uma composição tipográfica e a composição tipográfica de que é uma impressão.
A distinção tipo/espécime tem uma aplicação ainda mais ubíqua nas artes do que até agora se indicou. E onde tem aplicação, não raro vale a pena reflectir nas diferenças subtis no modo como a distinção encontra aplicação. Pelo que aquilo que se disse atrás tem de ser tomado como uma indicação dos fenómenos que uma ontologia de obras de arte tem de ter em conta, e não como uma descrição ampla e apropriadamente qualificada dos fenómenos.
Ao enunciar os fenómenos sublinhei a distinção entre as artes em que usamos uma ou outra versão da distinção tipo/espécime, e as artes, como a pintura, em que não usamos essa distinção. Alguns dos que escreveram sobre a ontologia da arte consideraram que esta distinção não é ontologicamente importante, e passaram a desenvolver ontologias de obras de arte que são uniformes para as diferentes artes. Podemos chamar-lhes teorias uniformes — para as distinguir das teorias não uniformes. Evidentemente, pode haver uniformidade nas artes a respeito da distinção tipo/espécime e não uniformidade a respeito de outras distinções ontologicamente importantes; por exemplo, algumas artes são obviamente temporais de um modo que outras não são. Infelizmente, será necessário aqui excluir essoutras distinções da nossa consideração. Por outro lado, boa parte das teorias uniformes que foram desenvolvidas no século XX foram também unitaristas, no sentido de negarem qualquer distinção ontológica fundamental como a distinção entre tipos e espécimes. Comecemos por considerar algumas destas teorias uniformes e unitaristas.
Na primeira metade do século XX, as teorias mentalistas da natureza ontológica das obras de arte gozaram de bastante popularidade. Podemos tomar a teoria de R. G. Collingwood como representativa. Em The Principles of Art, Collingwood (1938) observou que se pode compor melodias e poemas na própria cabeça; passou daí, e de outras considerações, para a conclusão de que a obra de arte é um objecto mental. Concedeu, evidentemente, que os músicos fazem sons com instrumentos, que os pintores passam um pigmento viscoso em telas, que os escultores cinzelam o mármore e a madeira, etc. Mas nenhuma dessas entidades físicas é uma obra de arte, insiste Collingwood; são dispositivos que servem, quando percepcionados com a imaginação apropriada, para comunicar uma obra de arte de uma mente para outra — da mente do criador para as mentes dos membros do público. Nesta perspectiva, as execuções, impressões, fundições, cópias, e coisas semelhantes não são obras de arte — como as pinturas não o são. São, todas, “meros” dispositivos para transmitir a obra de arte da mente do artista para as mentes do seu público.
A teoria de Collingwood tem um número relativamente vasto de consequências que, em conjunto ou isoladamente, foram consideradas pela maioria dos pensadores uma reductio ad absurdum. Entre elas estão as seguintes: nesta perspectiva pode-se, em princípio, criar uma “pintura” inteiramente na própria cabeça, sem, de modo algum, fazer aderir qualquer pigmento a uma superfície; e o objecto que se pendura numa parede e coloca num recipiente para enviar a uma exposição não é uma obra de arte. Aquilo a que se chama “Céu Estrelado de Van Gogh” não se pendura em qualquer parede. Além disso, nesta perspectiva, uma obra não existe quando ninguém a tem em mente. Tipicamente, as obras existem e deixam de existir; existem intermitentemente.
As teorias nominalistas da ontologia das obras de arte negam que existam as entidades que distinguimos como tipos; há apenas espécimes. Assim, também estas são teorias unitaristas uniformes. Evidentemente, como indicado atrás, seguramente parece que no nosso discurso acerca das artes nos comprometemos com a existência de tipos. Assim, para tornar plausível a sua teoria, o nominalista tem de dar plausibilidade à ideia de que não nos comprometemos — por exemplo, dando plausibilidade à ideia de que se pode fazer análises redutivas de todas as frases verdadeiras que parecem comprometer os seus utilizadores com a existência de tipos, sendo que uma “análise redutiva” de uma dessas frases consiste noutra frase que afirma a mesma proposição mas claramente não compromete os seus utilizadores com a existência de tipos. É provavelmente justo afirmar que nenhum defensor de uma teoria nominalista conseguiu efectivamente dar plausibilidade à ideia de que se pode fazer análises redutivas de todas essas frases. Nelson Goodman é o mais agressivamente nominalista de todos os que escreveram sobre as artes. Mas o nominalismo funciona para Goodman mais como ideal do que como projecto; e sem dúvida que não é um projecto completo nas suas mãos. No seu Linguagens da Arte, Goodman (1968) torna claro o seu compromisso com uma ontologia nominalista. Mas afirma que no livro se dirige às pessoas “comuns” e não às “esclarecidas”; e oferece pouquíssimas sugestões sobre como se pode substituir ao discurso comum o discurso esclarecido.
Uma variante complexa do nominalismo mais ou menos comum que atrai Goodman foi desenvolvida por Joseph Margolis (1980). Na perspectiva de Margolis, as obras de arte são todas espécimes de um género especial; nomeadamente, são “entidades culturalmente emergentes” que, embora corporizadas em objectos físicos, não são para identificar com esses objectos. Margolis concede que no nosso discurso acerca das artes também nos referimos a tipos; mas na sua ontologia insiste que tais entidades não existem. Margolis está ciente de que isto o compromete com a posição de que é possível referir entidades que não existem — na verdade, entidades não “são” em qualquer sentido.
A observação de que o nominalista procura alcançar uma teoria unitarista uniforme negando a existência de tipos leva-nos a indagar se alguém procurou alcançar uma teoria unitarista uniforme indo na direcção oposta — negando os espécimes em vez de os tipos. Precisamente uma teoria assim foi proposta por Gregory Currie em An Ontology of Art (1989). Currie pensa que um artista, ao compor ou criar, descobre uma determinada estrutura — de palavras, de sons, de cores, ou seja do que for. Acrescenta que o artista faz sempre isto de um modo determinado; e insiste que não só o que o artista descobre é relevante para a apreciação estética, como algumas características de como o descobre são relevantes. Currie chama a essas características relevantes a via heurística do artista. E a sua proposta ontológica é a de que as obras de arte são tipos de acção do seguinte género: o descobrir por alguém de uma determinada estrutura através de uma determinada via heurística. As descobertas da mesma estrutura através de vias heurísticas diferentes são instâncias de obras diferentes, como o são as descobertas de estruturas diferentes através da mesma via heurística. As estruturas como tal não são de todo obras.
Currie é levado a esta perspectiva invulgar a partir da sua convicção de que “obras distintas podem ter a mesma estrutura”. Por exemplo, embora seja teoricamente possível Beethoven e Brahms descobrirem independentemente e comporem a mesma estrutura musical, as suas obras, não obstante, teriam propriedades diferentes — por exemplo, a de Brahms podia ter a influência de Liszt, a de Beethoven não a teria. Mas uma e a mesma entidade não pode simultaneamente ter e não ter uma determinada propriedade. “Em casos como esse” afirma Currie (1989: 65), “o que diferencia as obras são as circunstâncias em que o compositor ou autor chegaram à estrutura”.
Mas será indubitavelmente claro que a propriedade que desejamos atribuir ao que Brahms compôs é ter a influência de Liszt? Não poderá antes ser a propriedade relacional de ser tal que esta sua composição tem a influência de Liszt? Obviamente, uma e a mesma entidade pode ter simultaneamente essa propriedade e estoutra: ser tal que a aquela sua composição não teve a influência de Liszt. Assim, é questionável que o argumento funcione sequer. A isto podemos acrescentar que a teoria tem bastantes consequências contra-intuitivas; por exemplo, uma vez que nesta perspectiva uma obra musical é um compor, e que os compores não são o género de coisa que se possa ouvir, segue-se que as obras musicais não podem ser ouvidas.
As perspectivas que considerámos são todas unitaristas uniformes. Uma teoria dualista uniforme, por contraste, sustentaria que embora o nosso modo comum de falar não o revele, a distinção tipo/espécime aplica-se efectivamente nas artes da pintura e da escultura que não é para fundição em moldes. Afirma-se muito frequentemente, por exemplo, que podíamos muito bem ter uma tecnologia para fazer cópias de pinturas — não reproduções mas cópias — tão semelhantes ao “original” quanto se desejar. Todas essas cópias seriam então “originais”, do mesmo modo que todas as impressões de uma composição tipográfica são “originais”; e é puramente acidental, sem qualquer importância ontológica, que não tenhamos essa tecnologia — ou que a tenhamos mas não a usemos.
Mas o argumento é falacioso, de um modo interessante. Aquilo que faz um conjunto de impressões serem impressões da mesma composição tipográfica não é o serem indiscernivelmente semelhantes; podem muito bem estar longe disso. Assim, de igual modo, aquilo que faz uma série de execuções musicais serem todas execuções da mesma obra não é serem acusticamente indiscerníveis; na verdade podem muito bem ser acusticamente bastante desiguais. Duas execuções são execuções da mesma obra se são produzidas sob orientação do mesmo conjunto de regras para a correcção da execução. E podem satisfazer essa condição mesmo que soem muito diferentemente. A nossa prática da pintura poderia ter sido tal que os pintores prescrevessem regras para a correcção das instâncias; mas na verdade não é assim.
Uma teoria não uniforme da ontologia das obras de arte considerará que a distinção tipo/espécime está presente em algumas artes e não noutras. Sucede que o principal trabalho de explicar esta diferença terá de ser feito por uma teoria apropriada da natureza dos tipos artísticos. Ingarden, no continente, e eu próprio, na tradição anglo-americana, desenvolvemos as teorias mais elaboradas dos tipos artísticos. Tomando por ponto de partida o fenómeno que acabei de mencionar, das regras para a correcção, argumento que os tipos artísticos são um género especial de categorias; chamo-lhes categorias normativas. É típico das categorias naturais o poderem ter exemplos bem formados e mal formados; há, e.g., exemplos mal formados do cavalo. De igual modo, há execuções incorrectas de obras musicais e teatrais, fundições imperfeitas de esculturas, etc. Assim, os tipos artísticos não são conjuntos; pois um conjunto não pode ter membros diferentes dos que tem, ao passo que os tipos artísticos podem ter mais ou menos espécimes do que os que efectivamente têm. Os tipos artísticos são, ao invés, categorias; pois as categorias podem ter mais ou menos exemplos do que os que efectivamente têm. Mas, mais especificamente, são categorias normativas. Compõe-se uma obra musical seleccionando um conjunto de regras para a correcção da execução (musical); desse modo, selecciona-se uma determinada categoria normativa. Essa é então a obra que se compôs, a qual está então disponível para ser executada.
Muitas posições importantes propostas durante o século XX na discussão extraordinariamente rica a respeito da ontologia das obras de arte não foram aqui apresentadas; muitas pessoas que deram contributos significativos para a discussão não foram mencionadas. Em particular, nada se disse acerca de quaisquer das chamadas “teorias ontológicas contextualistas” que emergiram nos últimos anos.