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Crítica
17 de Janeiro de 2010   Estética

Será que a metafísica da música é redundante?

Vítor Guerreiro

Há quem ponha em causa a relevância da metafísica da música, tanto para a experiência que temos dela como para a compreensão da sua natureza. Quem argumenta que a metafísica da música é musicalmente irrelevante, se bem compreendo, defende que os problemas metafísicos sobre música são musicalmente irrelevantes por não serem problemas da música e sim da metafísica. Por outras palavras, a expressão “metafísica da música” seria redundante porque nada do que possamos afirmar metafisicamente acerca da música tem estritamente a ver com entidades musicais, não são problemas que resultem da natureza da música, apenas se aplicam à música do mesmo modo que se aplicam a outras realidades. A música estaria metafisicamente em paridade com as maçãs, pelo que seria redundante falar em metafísica “da música”. A metafísica, segundo este argumento, é acerca da música na mesma medida em que é acerca de todas as outras coisas. Podemos ilustrar um problema metafísico com maçãs: por exemplo, como podem duas maçãs distintas partilhar as mesmas propriedades (por exemplo, o ser uma maçã e a vermelhidão)? A música e as maçãs colocariam exactamente os mesmos problemas metafísicos.

A refutação desta ideia é praticamente intuitiva: basta pensar naquilo que podemos afirmar sobre dois tipos de entidades: Deus e entidades ficcionais (não estou a afirmar que Deus é uma entidade ficcional, nem estou a afirmar que não é, estou a chamar a atenção para dois tipos de entidade que colocam problemas metafísicos e não estão obviamente em paridade com as maçãs). Primeiro, acerca de Deus. Há uma série de questões metafísicas sui generis que se coloca a propósito da existência de Deus. Hoje em dia tratamos essas questões na filosofia da religião, e não na metafísica geral, embora em tempos elas tenham pertencido à metafísica geral. Contudo, o desenvolvimento da filosofia da religião tornou muito mais razoável que se tratasse essas questões numa área diferente. As questões metafísicas sobre Deus tornaram-se assim em metafísica aplicada, no contexto da filosofia da religião. O que justifica este tratamento separado, além do desenvolvimento da filosofia da religião em geral (que não trata apenas de questões metafísicas)? O facto de Deus levantar questões sui generis, que não se colocam a propósito de outras entidades. As questões metafísicas sobre Deus não são o mesmo que as questões metafísicas sobre maçãs. Parece que Deus é um particular concreto, uma entidade singular, mas por outro lado, há teorias segundo as quais Deus não tem existência espaciotemporal, ao contrário de todos os particulares concretos que conhecemos. O Deus dos teólogos tradicionais é um ser omnipotente, omnisciente, moralmente perfeito e autoexistente (não depende de outra coisa para existir). Há problemas metafísicos levantados pela compatibilidade entre as diversas propriedades de Deus, tal como há o problema da compatibilidade entre a existência de Deus e a existência de mal. É bastante fácil ver que os problemas metafísicos acerca de Deus não podem pertencer à metafísica geral. São antes problemas de metafísica aplicada, um ramo especial de metafísica aplicada. Em parte isto deve-se ao desenvolvimento sofrido pela filosofia da religião, mas fundamentalmente deve-se ao facto de as questões metafísicas acerca de Deus serem sui generis. Que significa isto? Significa que essas questões surgem por causa do tipo especial de entidade que estamos a investigar, ou seja, não são questões que se coloquem em geral para toda uma categoria de entidades à qual aquele objecto por acaso pertence. Passemos agora às entidades ficcionais: não temos como ilustrar os problemas acerca de entidades ficcionais recorrendo a maçãs (pelo menos aquelas que podemos morder; as maçãs mordidas por Sherlock Holmes são outra história). Por que razão isto é assim? Porque a natureza das entidades ficcionais não é algo que seja claro para nós, ao passo que a natureza das maçãs é razoavelmente clara. As maçãs são particulares concretos. Mesmo que adoptássemos uma teoria metafísica que reduza os particulares concretos a outra categoria mais primitiva (por exemplo, modificações de uma só substância) ou que eliminasse pura e simplesmente a noção de objectos individuais, nenhum problema especial resultaria da categorização das maçãs. Tudo o que podemos afirmar metafisicamente acerca de maçãs podemos afirmar sobre garrafas, violinos, rabanetes ou estantes, ou seja, sobre quaisquer itens que categorizamos como particulares concretos, mesmo que reduzamos a categoria “particulares concretos” a outra mais primitiva ou a eliminemos.

Pensar que os problemas metafísicos se aplicam do mesmo modo a todas as coisas ou que todas as coisas levantam os mesmos problemas metafísicos leva-nos naturalmente à crença de que só faria sentido falar numa “metafísica de…” se daí resultassem consequências interessantes fora da metafísica, por exemplo, a resposta que damos ao problema do livre-arbítrio tem consequências para a moralidade: somos responsáveis pelos nossos actos? Será que não há justificação para punir crimes? Nada mais distinguiria os problemas metafísicos a não ser a sua maior ou menor proximidade com a nossa experiência quotidiana. Como a metafísica da música não parece ter consequências para o modo como apreciamos a música, deve ser irrelevante.

Mas isto é uma ilusão.

Em primeiro lugar, as consequências da discussão do livre-arbítrio não saem do âmbito da metafísica: trata-se de saber se há ou não agentes morais ou se punir crimes é injusto. Mas se eu pensar que não há livre-arbítrio, isso não afecta a fenomenologia das minhas decisões, nem me impõe a decisão de abdicar de fazer escolhas. Seria inclusive contraditório pensar tal coisa, pois seria como pensar que há uma decisão livre apropriada a tomar uma vez descobrindo que nenhuma decisão é livre. Temos de viver com as nossas decisões, independentemente de qual a teoria que temos sobre a sua natureza.

Em segundo lugar, embora num certo sentido compreender a natureza da música não afecte as nossas experiências musicais, tal como ter uma teoria nominalista não afecta a experiência que temos do vermelho numa maçã ou ter uma teoria eliminativista sobre qualia não faz os feijões perderem sabor ou ser realista acerca de objectos matemáticos não afecta o modo como resolvemos equações, há um sentido em que a metafísica da música afecta a nossa experiência da música. Ouvir música não é apenas uma experiência agradável. Pode também ser uma experiência cognitivamente sofisticada. Claro que há experiências musicais que não são assim. Há experiências gastronómicas cognitivamente mais sofisticadas do que algumas experiências musicais. Estas serão meramente agradáveis, na medida em que assentam apenas na intensidade da qualidade hedónica. Mas a qualidade hedónica de uma experiência cognitivamente sofisticada assenta na amplitude (exploração, descoberta) e não na intensidade apenas. Quanto mais sofisticação cognitiva introduzimos na nossa compreensão da música, mais gratificante será a experiência que temos dela (isto não significa que a metafísica acrescenta propriedades audíveis à música, ou que é análoga ao treino do ouvido para distinguir nuances instrumentais). De igual modo, reflectir na natureza da arte influi na profundidade das experiências que temos dela, mesmo que não nos sirva de bússola estética, ou como um daqueles programas que se lê antes dos concertos, com orientações sobre o que devemos ou não imaginar enquanto ouvimos a música.

Em terceiro lugar, a música é muito mais semelhante às entidades ficcionais do que às maçãs, não no sentido de as sinfonias de Haydn serem como as canções de Orfeu ou de serem produto da imaginação literária, como os solos de violino de Sherlock Holmes, mas no sentido de não ser claro qual a natureza da música, tal como não é clara a natureza dos objectos ficcionais. Considere-se a seguinte afirmação: “Ladrões roubaram 10 kg de maçãs na mercearia do Chico”. Nenhum problema aí, pode até ser mentira mas a afirmação é inteligível. Vejamos estoutra: “Ladrões roubaram os Jogadores de Cartas de Cézanne”. Nenhum problema aí. A afirmação é inteligível — alguém levou um objecto físico, um particular concreto (neste caso uma pintura), de uma região do espaço para outra. Mas vejamos agora esta afirmação: “Ladrões roubaram a Sinfonia n.º 22 de Haydn”. O que significa isto? Por que razão esta afirmação parece estranha? O que teriam os ladrões de levar para se poder afirmar inteligivelmente que roubaram a sinfonia? No entanto, não parece haver problema em roubar 10 kg de maçãs numa mercearia ou uma pintura de um museu. Ou pelo menos não parece haver um problema metafísico em fazê-lo. Isto devia ser assim no caso de a música, se ela estivesse em paridade com as maçãs e as pinturas nesta matéria. O facto de a música não estar em paridade metafísica com as maçãs faz que as questões metafísicas sobre música pertençam a uma área da metafísica aplicada — metafísica da arte — e não à metafísica geral (como afirma o argumento da irrelevância); e o facto de não estar em paridade com as pinturas (e outro tipo de obras de arte) faz que a metafísica da música seja uma área de metafísica aplicada por direito próprio, autónoma dentro da metafísica da arte. Mas vamos examinar esta ideia um pouco mais cuidadosamente.

A pergunta pela relevância da metafísica da música como investigação autónoma, quer no contexto mais geral da metafísica quer no contexto da metafísica da arte, faz todo o sentido. Por exemplo, não há uma disciplina chamada “metafísica das maçãs” precisamente porque não há problemas metafísicos colocados por maçãs (por exemplo, partilha de propriedades, existência ao longo do tempo) que não sejam colocados por quaisquer outros particulares concretos. É claro para nós a que categoria ontológica pertencem as maçãs: são entidades com existência espaciotemporal, que não têm múltiplas instanciações, que têm propriedades mas não são propriedade de outras coisas. Em suma, particulares concretos. Mas os particulares concretos não são a única categoria ontológica: há metafísica de propriedades; metafísica de entidades abstractas; metafísica do tempo; metafísica da mente; metafísica de proposições; metafísica dos objectos matemáticos; outra divisão da metafísica é a ontologia (que é o estudo das categorias que formam os diversos “mapas metafísicos” da realidade, consoante o tipo de teoria que defendemos: por exemplo, um nominalista terá um mapa da realidade onde só constam particulares concretos e/ou acontecimentos.) Cada categoria ontológica levanta problemas metafísicos próprios: O que são acontecimentos? O que são estados de coisas? O que são factos? O que são propriedades? Ora, a razão por que não há uma metafísica das maçãs é porque a pertença das maçãs à categoria dos particulares concretos não é controversa. É claro para nós a que categoria pertencem as maçãs. E mesmo que adoptássemos uma ontologia onde só há acontecimentos mas não particulares concretos, as maçãs não colocariam qualquer problema sui generis.

Os objectos abstractos colocam problemas sui generis: se existem, serão eternos (existem em todos os momentos do tempo) ou intemporais (não existem em momento algum do tempo)? Se são causalmente inertes, como podemos ter conhecimento deles? Se não têm existência temporal, como podem ter relações temporais com particulares concretos? (Por exemplo, quando alguém pensa no objecto abstracto x em 1567 e outra pessoa pensa no mesmo objecto em 2010.) Tomando como exemplo os objectos matemáticos — o teorema de Pitágoras, digamos — não parece controverso afirmar que são descobertos e não criados. Parece pacífico afirmar que as fórmulas matemáticas são descobertas e não inventadas pelos seus descobridores ou que as proposições necessárias (se as há) não podem começar a existir num certo momento do tempo. Estas ideias são discutíveis, evidentemente, mas isso não significa que sejam obviamente controversas. É argumentável que as maçãs possam pertencer a outra categoria ontológica (por redução ou eliminação), mas não é controverso considerá-las particulares concretos.

O mesmo não acontece com as propriedades, pois não é claro se são abstractas ou concretas ou particulares ou universais. Não é claro o que sejam factos, estados de coisas, proposições, possibilidades, necessidades, entidades abstractas, partes temporais, objectos matemáticos… O que é problemático no caso das maçãs não tem a ver propriamente com as maçãs mas com o problema de saber como dois particulares concretos (coisas que ocupam uma só região do espaço em cada momento) podem partilhar as mesmas propriedades. Se as propriedades são as mesmas nos dois objectos então têm de estar presentes em mais do que uma região do espaço ao mesmo tempo, o que é problemático. Se não estão presentes em mais do que uma região do espaço ao mesmo tempo então não é claro como podem ser as mesmas propriedades nem que relação têm com os particulares que as instanciam. Mas isto não sucede no caso da música. Aquilo que é metafisicamente problemático nas obras musicais resulta directamente de se tratar de obras musicais e não de quaisquer outras entidades. O problema começa desde logo por não ser claro a que categoria ontológica pertencem as obras musicais — e não desaparece quando as classificamos como particulares nem quando as classificamos como universais ou como qualquer outra coisa. Todas as alternativas têm problemas. Portanto, os problemas metafísicos sobre música são sui generis. Não são meros casos especiais de problemas sobre qualquer entidade pertencente a uma ou outra categoria ontológica. São problemas que surgem por causa da natureza das obras musicais. No caso das maçãs, o problema não surge por causa da natureza das maçãs mas por causa da natureza dos particulares concretos e das propriedades em geral.

Um pressuposto errado do argumento da redundância é tomar por garantido que a música é uma “coisa” — o que normalmente quer dizer “particular concreto”. Ou seja, toma-se por garantido que a pertença da música a uma categoria ontológica é incontroversa. Mas isto não é verdade. Creio que a falta de clareza quanto à distinção entre o que seja uma “obra” musical, uma “interpretação”, uma “execução”, etc. prejudica imenso a compreensão do que está em causa. Se alguém se senta ao piano e toca duas vezes a mesma sonata, temos dois acontecimentos sonoros distintos mas apenas uma obra. Não se tocou duas sonatas mas apenas uma. Os dois acontecimentos sonoros distintos são ambos ocorrências da mesma entidade, que é meramente descrita pela partitura. A partitura (o papel impresso) obviamente não é a obra, pois trata-se de um particular concreto, e os particulares concretos não têm exemplificações múltiplas — são irrepetíveis.

Porém, nem todos os acontecimentos musicais são necessariamente ocorrências de obras musicais. Pode haver acontecimentos musicais que sejam puramente “performativos” no sentido de não instanciarem qualquer universal ou tipo abstracto, o que nada tem a ver com o seu valor estético. Isto não é claro em si mesmo: será que uma improvisação espontânea não exemplifica um universal que o improvisador cria ao mesmo tempo que improvisa? Talvez. Parece que as improvisações espontâneas divergem das composições na elaboração: o improvisador não se interrompe para verificar diversas possibilidades de desenvolvimento temático. Tão-pouco a música que conhecemos e que envolve bastante improvisação é puramente performativa. A questão de saber o que faz dois acontecimentos sonoros serem instanciações da mesma peça jazzística não é menos pertinente do que quando aplicada à música clássica europeia. De resto, a própria música “clássica” europeia até ao século XIX envolvia normalmente a improvisação (as chamadas cadenzas nos concertos para instrumentos solistas) e no renascimento a instrumentação era variável, ou seja, as peças podiam ser executadas com quaisquer combinações de instrumentos ou voz, o que veio a mudar drasticamente. Faz todo o sentido perguntar se uma execução da Partita em Dó menor num sintetizador electrónico, ou em qualquer instrumento que não aquele para que foi escrita, continua a ser uma ocorrência genuína da obra (independentemente de quão bem ou mal soa).

Seja como for, não há uma maneira pacífica de afirmar que a música é uma “coisa” no sentido de um particular concreto. As execuções e interpretações são acontecimentos complexos e não objectos particulares, como uma partitura, mas são igualmente irrepetíveis. A execução da Sinfonia nº 22 de Haydn que ocorreu entre as 21:00 e as 21:20 de ontem não pode ser a Sinfonia nº 22. De contrário a obra não tinha existido até ontem e deixou de existir às 21:20 de ontem. Podemos afirmar algo poeticamente que a sinfonia só existe enquanto é executada. Mas a noção de existência intermitente não é clara. Ficamos com o problema de mostrar como algo pode existir intermitentemente, o que é incompatível com a ideia de que a metafísica é irrelevante para a música. No máximo, podemos dizer que a natureza da música não nos interessa, só nos interessa ouvir os acontecimentos sonoros, mas isto não é argumento contra a metafísica da música. A confusão categorial leva também a que se misture os problemas. O problema metafísico de saber o que faz um acontecimento sonoro contar como música e não como mero ruído é um problema distinto quer do problema de saber que tipo de entidade é uma obra musical, quer do problema de saber o que confere valor estético ao acontecimento musical (seja ou não instanciação de uma obra). Os dois primeiros são problemas metafísicos, o último é um problema de estética musical.

As execuções e interpretações de obras são acontecimentos sonoros, entidades irrepetíveis, como também o é qualquer “performance” que não seja de uma determinada obra — isto é tão claro como saber a que categoria pertencem as maçãs — mas que tipo de entidades são as obras musicais? O que se repete em cada ocorrência sonora que a faz ser uma ocorrência de determinada obra? É problemático qualificar uma obra musical (e não tem de ser um exemplo da música clássica europeia, pode ser uma canção ou um exemplo retirado de culturas musicais de outras latitudes) como um particular concreto ou como um acontecimento singular.

As partituras são objectos concretos. Isto é, cada partitura individual, que consiste numa ou mais folhas de papel com inscrições de pentagramas e notas. Aqui há uma distinção subtil a fazer: as partituras podem ser tipos ou espécimes. Vejamos, cada exemplar impresso da partitura das Suites Francesas de Bach é um espécime do mesmo tipo, a que chamamos na mesma “partitura” das Suites Francesas, no mesmo sentido em que dizemos de um muro onde alguém escreveu 20 vezes a palavra “gato” que tem 20 inscrições da mesma palavra e não 20 palavras. Assim, a partitura-tipo será um objecto abstracto, enquanto as partituras-espécime são objectos concretos. Contudo, nenhum nominalista (aquele que defende que só há particulares concretos) estaria interessado em reduzir obras musicais a partituras-tipo, pois assim deixaria de ter um objecto abstracto para ficar com outro igualmente abstracto, e ao nominalista interessa reduzir as obras musicais a objectos concretos (como as partituras-espécime) ou eliminar simplesmente as obras musicais, recorrendo a paráfrases em que todas as afirmações sobre obras são convertidas em afirmações sobre execuções ou interpretações. Em todo o caso, as partituras (tipo ou espécime) não são candidatos viáveis a serem identificados com as obras musicais. A partitura é uma representação da obra e não a própria obra, tal como a palavra “gato” representa um animal mas não é ela própria o animal que representa. Quando dizemos que a Partita em Dó menor tem um ré bemol no terceiro compasso do primeiro andamento não nos referimos à inscrição em cada partitura da colcheia prolongada e ao sinal de “bemol” que a antecede, nem sequer ao tipo notacional que cada inscrição exemplifica. A notação representa uma propriedade que a obra (o tipo) tem e que cada execução ou interpretação (cada espécime sonoro) instancia naquele compasso, quando o músico executa a obra. A partitura não pode instanciar esta propriedade porque se trata de uma propriedade audível e fontes tipográficas não são objectos audíveis. Além disso, há obras que não têm partituras. Já se compunha e reproduzia peças musicais antes de haver a notação musical moderna (com outros tipos de notação mais primitiva ou dispositivos mnemónicos ou simplesmente por tradição oral) — embora seja legítimo questionar até que ponto se pode falar em obras musicais na idade média, por exemplo, no mesmo sentido em que falamos em obras musicais hoje em dia. Outra objecção a identificar as obras com as partituras é que as obras podem sobreviver à destruição das partituras. Muitos músicos são treinados para serem capazes de passar a escrito uma partitura depois de ouvirem uma execução da peça musical que essa partitura descreve. Os próprios compositores começam por imaginar os sons e fazer experiências ao piano ou com outros meios e vão registando na partitura os “acontecimentos sonoros” que ocorrem nas suas cabeças. Portanto, as partituras não podem ser identificadas com as obras.

A existência ou não de uma partitura não resolve o problema pois pode haver obras sem haver partituras. Basta pensar numa melodia transmitida oralmente a várias gerações: tem de haver algo que explique que várias ocorrências de uma só melodia ou conjunto de melodias sejam ocorrências da mesma entidade. Será que a melodia é um certo padrão rítmico e harmónico? Mas isso não pode ser um particular concreto. Não é directamente relevante que a melodia esteja ou não fixada num sistema de notação. Os etnomusicólogos fazem recolhas de espécimes de música popular, gravando-as num suporte analógico ou digital, passando-as a notação. Mas o problema ontológico de saber que tipo de coisa são essas entidades não surge só quando alguém inventa a notação ou a usa para fixar a obra. Tão-pouco é algo que seja peculiar à música “clássica” europeia (que nem sequer é a única a usar notação). A notação é apenas um tipo de memória. Isto não altera o problema. O compositor antes de escrever a partitura tem a obra ou partes dela na memória. A partitura é apenas uma extensão dos nossos poderes mentais. É a possibilidade de se fixar uma obra em notação que pressupõe a anterioridade do problema ontológico.

O defensor do argumento da irrelevância dirá talvez: “Ah! Mas o problema de saber como dois acontecimentos sonoros distintos podem ser instanciações da mesma melodia é igual ao problema de saber como quaisquer duas maçãs podem exemplificar o mesmo universal”. Sim e não. No caso da música há problemas adicionais que não se verificam a propósito de maçãs e do universal da vermelhidão. As obras musicais têm uma estrutura complexa. Têm propriedades rítmicas, harmónicas, tímbricas, entre outras. Há o problema da autenticidade, ou seja, de saber quais as propriedades que são relevantes para que algo conte como uma ocorrência do mesmo tipo. Será apenas o padrão rítmico e harmónico? E quanto ao timbre? E o contexto funcional, no caso de peças anteriores à invenção da sala de concertos? Talvez uma execução da Sinfonia n.º 22 de Haydn usando um sintetizador electrónico e um programa de sequenciação seja uma ocorrência genuína ou não (questão independente do valor artístico de tal experiência: quem disse que para ser bom tem de ser genuíno?), mas seja ou não, isso não é claro, como no caso de saber se algo exemplifica a vermelhidão, a coragem ou outro universal qualquer. Nem é preciso recorrer ao exemplo mais óbvio do sintetizador electrónico. Um dos aspectos interessantes da Sinfonia nº22 de Haydn é o uso em algumas passagens de dois cornes ingleses em vez do habitual oboé. Será que uma execução da mesma sinfonia usando outro instrumento de sopro da época nas mesmas passagens, ou instrumentos mais modernos, como o saxofone, seria ainda uma execução autêntica dessa obra (por outras palavras: as propriedades tímbricas das obras são propriedades normativas)? Além da identidade e da autenticidade das obras e das suas ocorrências, há mais problemas metafísicos sobre música. Por exemplo, a analogia entre a música e a linguagem é plausível? Se a música não tem conteúdo representacional isso significa que não é conceptual? Será a música apenas o “jogo agradável das sensações”, como a caracterizou Kant?

Voltando à ontologia das obras. Imagine-se que consideramos que a obra musical é um particular concreto: o que pode ser? A partitura? Não faz sentido, pois a partitura e a obra têm propriedades diferentes. A obra é audível e a partitura não. A obra pode existir sem a partitura (por transmissão oral) mas a partitura só existe se existir uma obra cujas propriedades normativas são descritas pela notação. (Claro que haverá propriedades não normativas que podem ou não estar na partitura — isso faz parte do problema da autenticidade.) Nelson Goodman pensou ter descoberto a solução: as obras são classes ou conjuntos de execuções/interpretações conformes à partitura, pelo menos nos seus aspectos normativos (nem todas as propriedades são normativas: no jazz, nos ragas indianos ou nos maqam da música árabe, as execuções das mesmas peças têm duração muito diversa, variações tímbricas, instrumentais, improvisação, mas continuam a ser instâncias das mesmas peças. No caso da música indiana e árabe é ainda mais complicado: um raga não é necessariamente uma obra no sentido em que a Partita em Dó menor de Bach é, mas ambos são entidades multiplamente instanciáveis.) Porém, a solução de Goodman não funciona. A Partita em Dó menor de Bach tem a propriedade de ter sido concluída em 1726. A classe de todas as execuções da Partita em Dó menor é temporalmente aberta: há um número potencialmente infinito de execuções “autênticas” da obra, ou seja, que conservam as propriedades normativas, mesmo que tenham outras que não são normativas e que não constam nas especificações do compositor. Além disso, podemos afirmar que uma dada execução da Partita em Dó menor foi pouco expressiva, sem que isto queira dizer que a própria obra é pouco expressiva. Dizemos que a obra é expressiva e que as execuções conseguem ou não conseguem realizar essa expressividade. As execuções e interpretações têm propriedades que a própria obra não tem de ter. Por exemplo, um dado intérprete pode fazer uma interpretação mais “rígida” ou “clássica” enquanto outro faz uma interpretação mais “romântica”, com mais ornamentação ou fraseado diferente. Mas isto é incompatível com identificar as obras com classes ou conjuntos de execuções. Enquanto a identidade do conjunto é determinada pelos seus membros, a identidade do tipo (abstracto) não é determinada pelos seus espécimes. Dois conjuntos de execuções diferentes da Partita em Dó menor são entidades diferentes, mas enquanto tipo abstracto, a Partita em Dó menor podia ter execuções diferentes das que efectivamente já teve ou terá, ou podia mesmo nunca ter quaisquer execuções (a partitura podia ter-se perdido, como sucedeu a outras obras de Bach, e não é claro que deixasse de existir por causa disso. Por vezes descobre-se partituras perdidas e não parece razoável afirmar por isso que as obras têm existência intermitente). Outra dificuldade de identificar as obras com conjuntos de execuções é que, intuitivamente, basta ouvir uma execução da Partita em Dó menor para termos ouvido essa obra. Mas se identificamos a obra com o conjunto das suas execuções, só podemos afirmar que a ouvimos ao ouvir a totalidade da extensão do conjunto.

Porém, considerar as obras musicais como tipos abstractos tão-pouco é incontroverso. Desde logo, os mesmos problemas que se levantam para entidades abstractas noutras áreas da filosofia colocam-se no caso da música com particular gravidade: parece incontroverso afirmar que uma fórmula matemática é descoberta e não criada. Mas não é assim que entendemos as obras musicais. Vemo-las como criações dos compositores, como algo que começa a existir num dado momento do tempo. Será que as obras musicais são também descobertas em vez de criadas?

Os tipos abstractos têm outra particularidade: são causalmente inertes (ou assim pensamos que são). Mas as obras musicais não só têm relações temporais como espaciais e causais: são entidades audíveis. Se ouço agora uma execução ou ocorrência da Partita em Dó menor, estou numa relação temporal e espacial com a obra, a execução consiste em vibrações do ar, que ocupam uma determinada região do espaço, e a audição da obra tem efeitos causais em mim — a música pode induzir a estados devocionais ou até provocar motins, como sucedeu na estreia da Sagração da Primavera de Stravinsky.

Há outras perguntas intrigantes: pode uma obra musical ser destruída? Uma vez criada, se destruirmos todas as partituras e os padrões rítmicos e harmónicos forem completamente eliminados da memória das pessoas, pode-se ainda afirmar que a obra existe? A resposta não é clara, mas uma resposta verdadeira.

Uma série de outras questões metafísicas sobre música dizem respeito às propriedades expressivas. Há algo na natureza da música que dê sentido às atribuições de qualidades emotivas que por vezes fazemos (“esta música é triste, alegre, melancólica, etc”.)? Se há, de que propriedades se trata? É possível haver referência na música (além dos casos relativamente incontroversos da citação intramusical — quando um compositor cita obras de outros compositores ou outras obras suas, por exemplo, na Abertura 1812, de Tchaikowsky, que cita a Marselhesa, ou na canção “The Hyacinth House”, da banda rock, The Doors, que cita a Polonesa n.º 2 em Lá maior, de Chopin)? Serão essas propriedades meramente disposicionais, do mesmo modo que o pôr-do-sol tem a tendência a evocar estados de contemplação extasiada? Serão propriedades formais, no sentido da teoria “do contorno” defendida por Peter Kivy, segundo a qual há “isomorfismos” entre certas características formais da música (cadências, dinamismo, tensão-resolução, etc.) e certas características dos nossos estados emocionais (um exemplo claro é a semelhança entre a turbulência de um rio (que não tem de ser referencial, não é acerca da turbulência) e a turbulência de um estado emocional tal como se manifesta na dinâmica do discurso e no comportamento gestual)? Será que não há pura e simplesmente tais propriedades na música, como afirmava Hanslick? Será que o contexto histórico de uma obra é relevante para o modo como temos experiência dessa obra hoje? Será que a categoria das emoções simplesmente não é relevante para a experiência que temos da música? Afinal, parece haver imensos casos de fruição intensa de espécimes musicais belíssimos sem que isso comporte qualquer tipo de agitação emocional. A polifonia vocal do renascimento deixou-nos verdadeiros monumentos musicais de beleza e inteligência e a audição deste tipo de peças não tem qualquer das qualidades emocionais habitualmente associadas aos concertos e sinfonias do século XIX ou mesmo a uma canção de rock.

Os problemas metafísicos da música não se resumem a este esboço. E as observações que fiz chegam para mostrar que a música não está em paridade com as maçãs quanto ao carácter incontroverso da sua classificação como particulares concretos. Nada é metafisicamente claro acerca da música, e os problemas que coloca são sui generis ou seja, não se subsumem nos problemas colocados por outras entidades abstractas ou concretas, particulares ou universais.

A afirmação de que a metafísica da música é irrelevante para a música porque não afecta a experiência que temos dela tem ainda outra consequência problemática. A metafísica dos objectos matemáticos também não tem influência no modo como fazemos cálculos ou resolvemos equações. A filosofia da arte (que não da música) não interfere na fenomenologia da arte. O objectivo é compreender a natureza da experiência que temos da arte e não afectar essa experiência (teorias com esse objectivo têm mais a ver com as divagações de Adorno sobre o carácter revolucionário do dodecafonismo, que são propaganda política e não filosofia da música) pelo menos do mesmo modo que os comentários da crítica musical a afectam.

Num certo sentido é verdade que a metafísica da música não afecta a música. Mas há um sentido em que isto é falso. A metafísica da música afecta a nossa compreensão da natureza da música e isto é relevante para o tipo de relação que estabelecemos com os objectos musicais. Por que gostamos de música? Porque nos comove, porque alarga o âmbito da nossa experiência (como a literatura, mas de outro modo), porque nos emociona, porque nos deleita, porque empenha a nossa inteligência e a nossa imaginação… Será assim tão razoável afirmar que compreender a natureza última de algo que tem este efeito em nós não é relevante ou interessante? Que a nossa curiosidade intelectual pela música não sofre qualquer efeito com este tipo de investigação? Claro que pode não interessar a mim, mas isso é como afirmar que não me interessa aprender a ler música ou a analisar uma partitura… E depois? A diferença é que os problemas metafísicos sobre música não são estritamente técnicos e apelam naturalmente à nossa curiosidade, como o fazem todos os problemas metafísicos. A tal ponto que mesmo quem nega a relevância da ontologia da música tem de facto uma perspectiva ontológica sobre a música (tem uma ideia sobre que tipo de entidades se trata). A diferença é que não tem uma perspectiva pensada e sistemática. E nenhum mal há nisso. Afinal, não preciso de saber ler música para ouvir música, mas isso nada tem a ver com o valor ou interesse de saber ler música.

Podemos modificar a formulação original do argumento da irrelevância de modo a este fazer uma afirmação mais modesta: que os problemas metafísicos sobre música são apenas aplicações particulares da metafísica em geral e não problemas da música. Mas isto é óbvio. Todos os problemas metafísicos de todas as áreas da filosofia são aplicações particulares da metafísica em geral. Todos os problemas da filosofia são ou metafísicos ou epistemológicos (alguns deles, mas não todos, de carácter lógico, outros de carácter valorativo); enquanto a metafísica e a epistemologia tratam os problemas mais gerais, as outras áreas da filosofia colocam problemas específicos sobre um aspecto em particular da realidade: propriedades, relações, abstracta, mentes, números, proposições, arte, valores… e música. O argumento da irrelevância musical da metafísica da música, portanto, leva à consequência absurda de eliminar todas as áreas da filosofia excepto a metafísica e a epistemologia. A metafísica de qualquer coisa é uma aplicação especial da metafísica, ou seja, é metafísica aplicada. Relembremos as questões sobre Deus. Antigamente, tais questões faziam parte da metafísica geral, mas hoje faz mais sentido tratá-las em filosofia da religião, porque aí se trata outras questões acerca de Deus que não pertencem à metafísica geral. O mesmo acontece com a metafísica da música. As questões metafísicas sobre música são sui generis (como este artigo pretendeu mostrar) pelo que faz muito mais sentido tratá-las na área de estética e filosofia da música, onde se trata outras questões sobre música que não pertencem à metafísica geral.

Além disso, é falso que a metafísica da música seja musicalmente irrelevante. A única razão por que fazemos metafísica de alguma coisa é para compreender a natureza dessa coisa. Compreender a natureza da música é musicalmente relevante. O que acontece é que a metafísica da música não é o mesmo que a estética da música (que também faz parte da filosofia da música), embora não se possa sempre separá-los. Por exemplo, o problema de saber se o contexto histórico das obras musicais é esteticamente relevante para a apreciação é simultaneamente um problema metafísico e estético — é o problema de a música ter ou não propriedades estéticas que são dependentes do contexto histórico. O problema de saber o que é a beleza musical é simultaneamente metafísico e estético. Tanto a metafísica como a estética da música são importantes. A última observação mostra outra ilusão no argumento da irrelevância: a ilusão de que podemos discutir problemas estéticos sem fazer qualquer discussão metafísica.

Vítor Guerreiro

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