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Crítica
5 de Março de 2024   Metafísica

História da metafísica

Roger Hancock
Tradução de Desidério Murcho

A palavra metafísica deriva do grego meta ta physika (literalmente, “depois das coisas da natureza”), uma expressão usada por comentadores tanto do período helenístico como de períodos posteriores para referir um grupo de textos originalmente sem título da autoria de Aristóteles a que ainda chamamos Metafísica. O próprio Aristóteles chamou ao tema destes textos “filosofia primeira”, “teologia” ou, por vezes, “sabedoria”; a expressão ta meta ta physika biblia (“os livros depois dos que versam sobre a natureza”) não é usada pelo próprio Aristóteles, e foi aparentemente introduzida pelos organizadores que classificaram e catalogaram as suas obras (segundo a tradição, por Andrónico de Rodes, no século I a. C.). Mais tarde, os filósofos clássicos e medievais consideraram que este título queria dizer que os temas discutidos na Metafísica vinham “depois das coisas da natureza”, porque estavam mais afastados da percepção sensorial e, portanto, eram mais difíceis de compreender; e usaram o contraste frequente de Aristóteles entre as coisas “primeiras e mais bem conhecidas por nós” e as coisas “primeiras e mais bem conhecidas em si” para explicar por que razão os tratados sobre a filosofia primeira deveriam vir “depois dos livros sobre física”.1 Na filosofia medieval e moderna, o termo “metafísica” foi também entendido como o estudo de coisas que transcendem a natureza — ou seja, que existem à parte da natureza e que têm mais realidade intrínseca, e valor, do que as coisas da natureza — dando a meta um significado filosófico que não tinha no grego clássico.

Especialmente desde Immanuel Kant, o termo metafísica tem amiúde significado especulação a priori sobre questões que não podem ser respondidas por meio de observação científica, nem por experimentação. Popularmente, a palavra “metafísica” tem-se aplicado a tudo o que é abstruso e muitíssimo teórico — um uso comum no século XVIII, patente em David Hume, que ocasionalmente recorre ao termo metafísico para falar do que é “excessivamente subtil”. O termo tem estado também associado, popularmente, ao espiritual, ao religioso e até ao oculto. No uso filosófico moderno, o termo metafísica refere-se em geral ao campo da filosofia que aborda questões sobre os tipos de coisas que há e sobre os seus modos de ser. O seu objecto de estudo inclui os conceitos de existência, coisa, propriedade, acontecimento; as distinções entre particulares e universais, indivíduos e classes; a natureza das relações, da mudança, e da causalidade; a natureza da mente, da matéria, do espaço e do tempo. Nos séculos XVIII e XIX, o termo metafísica foi usado genericamente para incluir questões sobre a realidade do mundo exterior, a existência de mentes alheias, a possibilidade de conhecimento a priori, e a natureza da sensação, da memória, da abstracção, e assim por diante. No seu uso actual, estas questões estão incluídas no estudo da epistemologia.

O período clássico

A história da metafísica na filosofia ocidental (usando “metafísica” no sentido contemporâneo) começou no século VI a. C. com especulações dos cosmólogos jónios acerca da origem do Universo físico, da matéria ou substância que o constitui, e das leis ou uniformidades ubíquas na natureza. O nosso conhecimento destes primeiros cosmólogos vem na sua maior parte de Aristóteles e de outros autores clássicos; as principais figuras foram os milésios — Tales de Mileto (c. 626/623–548/545 a. C.), Anaximandro (c. 610–546 a. C.) e Anaxímenes (c. 586/585–526/525) —, Pitágoras (c. 570–495 a. C.) e Heraclito (c. 535–475 a. C.).

Parménides

É Parménides (fl. c. 475 a. C.), contudo, que marca mais convenientemente o início da metafísica, dado que algumas das características típicas da metafísica como inquérito filosófico distinto estão presentes nos escritos que dele nos chegaram, ou pelo menos são aí sugeridas. Estas características são, em primeiro lugar, a concepção de filosofia como uma tentativa de compreender o Universo por meio de investigação lógica que é a priori, invocando o significado dos termos, e não as provas dos sentidos. Este método contrasta com o método das ciências da natureza, que se apoiam na percepção sensorial. Em segundo lugar, temos o uso mais ou menos explícito de princípios muito gerais que se considera serem suficientes para chegar a uma explicação verdadeira da realidade. Esses princípios eram, por exemplo, a não-contradição e algo como um princípio da razão suficiente, que Parménides exprime no seu poema: “Além disso, que necessidade o coagia, se veio do Nada, a surgir mais tarde ou mais cedo? Por isso, tem de Ser em absoluto, ou de não ser de todo em todo”. A filosofia era consequentemente concebida como uma ciência dedutiva, à semelhança da matemática. Em terceiro lugar, temos o contraste paradoxal entre a realidade aparente e a realidade genuína, e a associação do genuinamente real com a unicidade e a imutabilidade.

Destas características dos escritos de Parménides, a primeira é fundamental; pode-se considerá-la uma característica definidora da metafísica. Como o cientista que estuda a natureza, o metafísico oferece uma explicação do Universo; ao contrário do cientista, não a baseia em observações, nem na experimentação, pelo menos em observações especiais e em experiências levadas a cabo para esse efeito. A sua abordagem baseia-se, sobretudo, na análise de conceitos; caso invoque provas dos sentidos, invoca algo em geral bem conhecido, e não novas provas que acrescentem conhecimento. O próprio Parménides pensava, aparentemente, que fizera tudo o que era possível fazer no que toca a uma explicação filosófica do Universo. A sua explicação consiste em fazer notar o que Parménides considerava que eram as consequências lógicas de dizer “É”. Parménides rejeitava tudo o mais por ser mera imagem poética que não se pretendia verdadeira, ou por ser ciência empírica; ambas as coisas eram por Parménides indiscriminadamente referidas como “opinião”. A sua posição não era ingénua; não é fácil ver como um metafísico pode explicar a realidade exclusivamente com base na lógica, a menos que a realidade em algum sentido tenha as características da necessidade e da generalidade vácua das verdades lógicas. E as doutrinas semelhantes ao monismo lógico de Parménides reapareceram com frequência na história da metafísica — por exemplo, no neoplatonismo, em Bento de Espinosa e no hegelianismo do século XIX. Não há apenas uma semelhança superficial entre o Ser de Parménides, o Uno dos neoplatónicos, Deus ou a Natureza de Espinosa, e o Absoluto de G. W. F. Hegel, tal como este era entendido por um metafísico como F. H. Bradley. Talvez o raciocínio subjacente tenha sido que, ao reconhecer que a metafísica oferece uma explicação do mundo baseada na análise de conceitos, e não em provas empíricas, estes filósofos sentiram que a lógica seria só por si uma base suficiente para fazer asserções acerca do mundo; uma vez que se considera que o logicamente verdadeiro é necessariamente e sempre verdadeiro, estes filósofos concluíram que o próprio mundo tem de ser imutável e que de algum modo é necessariamente aquilo que é.

Pré-socráticos posteriores

Parménides pensava aparentemente que dissera tudo o que um metafísico poderia dizer sobre o mundo. Por isso, os seus seguidores, Melisso de Samos (fl. séc. V a. C.) e, sobretudo, Zenão de Eleia (c. 490–430 a. C.), são mais críticos do que construtivos — uma característica de muitos metafísicos posteriores, mais preocupados em demonstrar o que consideram fracassos lógicos da compreensão comum ou científica da realidade do que em oferecer uma explicação positiva da realidade. No Parménides de Platão ficamos a saber que os paradoxos do movimento de Zenão pretendiam apoiar o sistema de Parménides, mostrando as contradições do conceito comum de mudança. (Quando se desloca a flecha? Agora não, porque a cada instante está num lugar e, portanto, não se desloca; nem noutro momento qualquer, porque caso se desloque, tem de ser agora.)

O efeito geral de Parménides, contudo, foi fazer os filósofos interessar-se em seguir o que eram aparentemente as implicações lógicas dos seus pressupostos. Um exemplo disso foi Anaxágoras (c. 500–428) que, com base no pressuposto de que a realidade é múltipla e mutável, defendeu aparentemente a conclusão de que as coisas a que comummente chamamos “reais” são compostas de partes menores sem fim, semelhantes aos todos, que “todas as coisas estão juntas” e que “tudo contém uma parte de tudo o resto”, e que apesar de haver rearranjos das coisas, nada é realmente criado nem destruído. Como os seus contemporâneos Empédocles (c. 494–434) e os atomistas Leucipo (fl. séc. V a. C.) e Demócrito (c. 460–370 a. C.), Anaxágoras apoiava-se na observação e em experiências para oferecer uma explicação da natureza, mas os fragmentos que nos chegaram sugerem que chegou à sua cosmologia em grande medida por meio de raciocínio a priori, como Parménides, ainda que a explicação resultante seja a oposta. E do mesmo modo que algo como o monismo lógico de Parménides se repete no neoplatonismo, em Espinosa e no hegelianismo do século XIX, algo como o pluralismo lógico de Anaxágoras repete-se na teoria das mónadas de Gottfried Wilhelm Leibniz e no atomismo lógico de Bertrand Russell. A característica comum a este tipo de sistema é que se considera, numa base lógica, que a realidade é constituída por elementos entendidos como o limite de um processo sem fim de divisão; as partes menores das coisas são, por assim dizer, infinitesimais reais — coisas menores ou mais simples do que qualquer coisa que se possa mencionar. O atomismo de Leucipo, Demócrito e, mais tarde, de Lucrécio ( c. 99–55 d. C.), é sobretudo, em contraste, uma teoria física. Estes pensadores pensavam que a existência de átomos se pode mostrar empiricamente; os seus átomos têm dimensões finitas e propriedades físicas reconhecíveis, como forma e movimento, e talvez peso, antecipando Galileu (1564–1642) e Newton (1642–1726/27), e não Leibniz e Russell.

Platão

No Fédon, Platão (c. 428–348 a. C.) faz Sócrates afirmar que estudou Anaxágoras, mas desistiu disso e de todas as investigações empíricas da natureza, decidindo, ao invés, “recorrer a concepções, examinando nelas a verdade das realidades”. Anaxágoras e Parménides, entre outros, recorreram também a concepções, em contraste com as provas dos sentidos; o que é novo no Fédon é a teoria das Ideias ou Formas, que os historiadores da filosofia atribuem por vezes a Platão e por vezes ao próprio Sócrates. Para Platão, pelo menos, as ideias existem independentemente das coisas que vemos e tocamos; além disso, são consideradas a fonte da existência das coisas que vemos e tocamos, mais ou menos como um homem é a causa da sua sombra ou imagem reflectida num espelho ou numa poça de água. Popularmente, a metafísica de Platão identifica-se com a teoria das Ideias neste sentido e, deste modo, a teoria teve muita influência na história do pensamento. O juízo do próprio Platão, porém, era consideravelmente mais crítico do que muitos dos seus seguidores. A teoria das ideias, nesta forma, é apresentada no Fédon como uma hipótese que não se pode saber que é verdadeira; no Parménides, aponta-se as suas fragilidades lógicas; no Timeu, a teoria é usada como parte própria de uma cosmologia “provável” ou “verosímil”. Contudo, Platão defende consistentemente a existência de mente ou alma como uma espécie de entidade distinta dos objectos físicos, e em algum sentido anterior em relação a eles. Esta tese é desenvolvida mais notavelmente no Fédon, onde a teoria das Ideias é usada como um dos passos para provar a imortalidade da alma, e também no Fedro e no Livro X de As Leis. Nestes contextos, e dado que, em contraste com as almas, os corpos não podem deslocar-se a si próprios (o movimento próprio não é senão uma parte que faz a outra deslocar-se), Platão defende que a fonte última dos movimentos observados tem de ser a alma ou a mente. Nas Leis, este argumento é usado para provar a existência dos deuses, entendidos como fontes dos movimentos observados e das mudanças no Universo visível.

Os contributos técnicos de Platão para a metafísica estão incluídos nos difíceis diálogos tardios, especialmente o Parménides e O Sofista. Os dois diálogos apresentam-se como uma crítica da filosofia eleática, levada a cabo pelo próprio Parménides, no diálogo homónimo, e por um “estrangeiro eleático”, em O Sofista. No Parménides, o protagonista homónimo é apresentado como alguém que ilustra o método da dialéctica, escrutinando a sua própria hipótese de que “o Uno existe”, e deduzindo as consequências lógicas tanto de afirmar como de negar esta hipótese. O ponto é que o que se infere depende de como a hipótese for entendida — em particular, como compreendemos a unidade e a existência. Por exemplo, caso se pense que a unidade não é de modo algum compatível com a pluralidade, uma coisa que tenha unidade dificilmente pode ter mais alguma coisa. Assim, não pode ter extensão espacial pois, nesse caso, teria um lado direito e outro esquerdo, e uma parte superior e outra inferior. O Sofista, mais directo, classifica os filósofos em materialistas e idealistas, em função do critério que têm da realidade. Sugere-se um critério geral de realidade como poder, e introduz-se e discute-se vários conceitos com a mesma generalidade do ser — mesmidade, diferença, repouso e movimento. O paradoxo aparente na negação é explicado distinguindo o não-ser absoluto (a não existe) do não-ser relativo (a é não-b) ou alteridade, e distinguindo o “é” existencial (a existe) do é da predicação (a caracteriza-se por ser F). No Timeu, os conceitos genéricos são usados no relato mítico da construção do Universo físico por parte de um artesão divino que usa como projecto um padrão ideal.

Aristóteles

Aristóteles (384–322 a. C.) é indirectamente a fonte do termo metafísica; é também a fonte de uma lista sistemática de questões metafísicas, de uma linguagem técnica na qual estas questões são formuladas, e de um sistema metafísico que tem tido seguidores até hoje, e que se revelou muitíssimo frutuosa. Em parte, a importância deste sistema tem residido no facto de ter sido objecto de crítica, ainda que esta função tenha sido igualmente desempenhada por Platão, e o próprio Aristóteles ilustra a importância de Platão como objecto de crítica na história da metafísica.

Os problemas da “filosofia primeira”, ou metafísica, elencados por Aristóteles nos livros beta e capa da Metafísica, são, em parte, acerca da própria metafísica: será que o seu objecto inclui todos os conceitos básicos e pressupostos de todas as ciências especiais? Incluirá os princípios da lógica? Haverá conhecimento metafísico, em contraste com a opinião? Estas perguntas tratam de saber, com efeito, se a metafísica é uma superciência que demonstra os pressupostos das ciências especiais e também os pressupostos que ela mesma usa — em suma, se é um corpo de conhecimento logicamente auto-suficiente que contrasta com as ciências especiais, que são logicamente incompletas. Este era o conceito de metafísica de René Descartes, por exemplo, mas era de maneira geral rejeitado por Aristóteles. A metafísica não é tanto o arremate de uma hierarquia de ciências, mas antes uma discussão de problemas que as ciências especiais deixam em aberto. A física, por exemplo, pressupõe que há movimento, mas provar este pressuposto não fazia parte da tarefa do metafísico, segundo Aristóteles; na melhor das hipóteses, o metafísico deveria explicá-lo ou defendê-lo da crítica. Aristóteles considerava que a metafísica explicava coisas que já sabemos que são verdadeiras, em vez de dar razões a favor dos pressupostos que fazemos nas ciências e na vida comum, fornecendo assim os fundamentos da ciência e do senso comum.

Alguns dos problemas de metafísica elencados por Aristóteles são questões sobre os tipos de coisas que há. Além dos objectos físicos percepcionados pelos sentidos, será que também existem abstracções, como as Ideias de Platão ou os números dos matemáticos, assim como os pontos, linhas, e assim por diante? Será que todas as coisas que existem são particulares, ou será que universais como homem ou brancura também existem? Será que os particulares do mesmo tipo têm algo em comum, e, em caso afirmativo, o quê e como? Será que os objectos físicos são algo além das partes materiais que os constituem e, em caso afirmativo, o quê?

Para Aristóteles, contudo, as questões mais fundamentais da metafísica diziam respeito aos conceitos de ser e unidade. Será que o ser e a unidade são propriedades de coisas (dado que tudo é e, ao mesmo tempo, tudo é uma coisa), ou será que são entidades ou substâncias de algum tipo (como Parménides parecia pensar)? Se o ser e a unidade são coisas por si mesmas, que tipo de coisas são? Estas questões são sugeridas em O Sofista, de Platão, e no Parménides. As respostas de Aristóteles constituem o seu mais importante contributo em metafísica. Em O Sofista, Platão sugeriu uma definição geral de ser como poder, mas pouco fez em termos de uma análise explícita deste sentido do ser, que não corresponde ao uso que a palavra tem na linguagem comum. Essa análise explícita está no centro da metafísica de Aristóteles; o seu contributo resume-se apropriadamente dizendo que é a perspectiva de que, apesar de haver muitas maneiras de as coisas serem, e muitas maneiras também de serem unas (havendo, portanto, muitos sentidos do ser e da unidade), e apesar de estas maneiras serem irredutivelmente distintas, dependem apesar disso de um tipo básico de ser. O ser não é um atributo, nem uma coisa, e não pode portanto ser definido como se define triangular ou cavalo. Mas encontramos um sentido básico do ser ilustrado em afirmações como “Isto é um cavalo” ou “Isto é um homem”, e mostramos como os outros sentidos do ser dependem deste. “Ser um cavalo”, “ser um homem”, e, em geral, “ser um F”, no sentido básico do ser, quer dizer ter atributos e, portanto, ser objecto de pensamento e de discurso, sem, por seu turno, ser um atributo de outra coisa qualquer; “ser um cavalo” não é, para Aristóteles, um atributo de um objecto mais básico de pensamento e discurso. Primariamente, o que é é este cavalo, este homem, e assim por diante, quando falamos de um indivíduo; secundariamente, o que é é cavalo, homem, e assim por diante, entendidos como espécies ou tipos de coisas. As qualidades, datas, localizações, movimentos, relações e semelhantes são atribuídos às coisas que existem no sentido básico; elas próprias não têm existência independente e só “são” num sentido derivado de ser, um sentido pedido de empréstimo.

A análise do ser levada a cabo por Aristóteles é o coração da sua metafísica; não é toda a sua metafísica, nem a parte que os seus seguidores posteriores mais destacaram. O que amiúde se diz que é a metafísica de Aristóteles é a sua abordagem do Universo. Em linhas gerais, Aristóteles afirma que há um número elevado mas finito de coisas que, na sua maior parte (com excepções como o Sol, a única coisa da sua categoria, e “erros” biológicos que resultam de mutações e cruzamentos), pertencem a categorias definidas — por exemplo, espécies botânicas e zoológicas. Na maior parte dos casos, os membros individuais destas categorias ou classes nascem e morrem, mas as próprias classes não mudam. Algumas coisas — por exemplo, as estrelas — existem sempre e não sofrem qualquer mudança, à excepção dos seus movimentos uniformes. Há um motor primeiro último que é a fonte de todo o movimento e mudança que observamos, mas é em si completamente imaterial e portanto está completamente imóvel e é imutável. Este conjunto de ideias estão na Metafísica, e o pluralismo infere-se da análise do ser levada a cabo por Aristóteles, assim como uma certa teoria das categorias naturais. Mas a teoria dos motores primeiros e do Motor Imóvel está também na Física, como abordagem científica — ou seja, demonstrável — do Universo físico; por isso, não faz genuinamente parte da sua metafísica, que é dialéctica (argumenta com base na opinião comum e na lógica) e não científica.

Os capítulos centrais da Metafísica elucidam e defendem a tese de que coisas comuns como este cavalo, este homem, e assim por diante, são os sujeitos fundamentais de discurso. Aristóteles defendeu esta tese contra 1) a perspectiva de que as partes materiais últimas das coisas são os sujeitos últimos de discurso (de modo que “Isto é um cavalo” seria entendido como “Estes elementos materiais têm atributos equinos”); 2) a perspectiva de que as ideias platónicas são o sujeito último de discurso (onde “Isto é um cavalo” é entendido como “O cavalo é exemplificado por estas qualidades sensíveis”); e 3) a perspectiva de que o sentido básico do ser é ilustrado por “Há um cavalo no estábulo”, por exemplo — a perspectiva segundo a qual “há” quer dizer “é verdadeiro que” ou “é um facto que”. Para Aristóteles, ser é ser um indivíduo, e o ser de uma coisa é primariamente a sua natureza ou características identificadoras, e não o facto de ser. Aristóteles dificilmente reconhece sequer o sentido do ser envolvido em frases como “Há homens bons, e há homens malvados”, que pode ser lida como “Entre todas as coisas que há, algumas são homens bons — ou seja, têm as características identificadoras de homens bons —, outras são homens malvados”. Essas frases sugerem que o que existe primariamente são particulares sem características, que podem ser referidos colectivamente como “as coisas que existem”, e não as coisas comuns.

Em geral, a pergunta “O que é o ser?” tornou-se para Aristóteles a pergunta “O que é um indivíduo?”, um cavalo, um homem, uma casa, e assim por diante, entendidos como paradigmas de um indivíduo. E, pela positiva, o argumento central da Metafísica é que um indivíduo é primariamente as características distintivas com recurso às quais o identificamos e classificamos. O próprio Aristóteles pensava que estas classificações são aprendidas pela experiência; Aristóteles era um realista, no sentido de pensar que os grupos e classes de coisas existem e podem ser aprendidos por observação — não são simplesmente construções mentais. Logo, há um sentido em que aprendemos empiricamente o que é o ser. Mas a metafísica não é em si um estudo empírico do ser; Aristóteles não via a metafísica, por exemplo, como uma ciência de grande generalidade que descreve as propriedades que todos os seres (indivíduos) têm.

A Metafísica de Aristóteles, na forma que hoje tem — e não há razão para pensar que alguma vez tenha tido outra — é praticamente ilegível em muitas passagens. Noutras, lê-se como astronomia ultrapassada; noutras ainda, como lexicografia entediante. A crítica devastadora de Platão é em grande medida pedida de empréstimo ao próprio Platão. Contudo, a Metafísica oferece um conjunto surpreendentemente coerente de respostas às perguntas que formula, e as próprias perguntas são as que fazem ainda hoje os metafísicos.

Neoplatonismo

Os neoplatónicos de finais do período clássico eram metafísicos de grande poder e originalidade. Por fazerem a ligação entre a filosofia antiga e a medieval, foram também muito importantes para o desenvolvimento da metafísica. A figura principal deste movimento, Plotino (c. 204/5–270 d. C.), associou a metafísica ao misticismo e ao ascetismo pessoal. A faceta mística e religiosa da sua filosofia foi sublinhada pelo seu discípulo e editor, Porfírio (c. 232–304 d. C.), e neoplatónicos como Jâmblico (c. 245–325 d. C.) e Proclo (412–485 d. C.) deram uma ênfase ainda mais religiosa e até ocultista ao movimento. Mas a força intelectual do movimento revela-se num filósofo tão tardio como Anício Mânlio Severino Boécio (c. 480–524 d. C.), e por seu intermédio o neoplatonismo exerceu uma forte influência na filosofia medieval e, portanto, indirectamente, na filosofia moderna.

Plotino

A filosofia de Plotino é um caso paradigmático de um sistema metafísico segundo uma concepção comum de metafísica. Afirma a irrealidade ou meia-realidade das coisas da experiência quotidiana; o carácter ilusório da mudança, do movimento, e até do espaço e do tempo; a realidade superior da alma ou mente, em detrimento da matéria. Concebe o bem e a inteligência como coisas substanciais e destaca o misticismo pessoal e um modo de vida ascético. A linha de reflexão por meio da qual Plotino chegou a esta posição não é fácil de acompanhar, mas, sucintamente, parece ter sido aproximadamente como se segue. Seja o que for que é, é uma coisa (até de uma colecção de coisas só se diz que “é” quando a contamos como uma coisa — uma colecção); a resposta à questão “O que é o ser?”, entendida como um pedido de uma descrição do ser é, portanto, a unidade ou unicidade. Mas não se pode descrever mais profundamente a unidade ou unicidade, ainda que uma experiência directa dela, intuitiva, seja em algum sentido possível. Dado que o ser é equivalente à unidade, e dado que as coisas podem ter unidade num grau maior ou menor, podemos falar de graus de ser. Apesar de a unidade ser em si inefável, duplica-se degradadamente numa espécie de séries descendentes de coisas — descendentes em bem e inteligência — em espíritos incorpóreos, e de maneira ainda mais degradada em almas humanas, ficando na base os objectos físicos e as suas propriedades e relações. A emanação de coisas sucessivamente menos reais a partir da unidade é de entender num sentido lógico, e não físico. Falando com precisão, a unidade ou unicidade (o Uno) não é de todo uma causa, ainda que possa ser descrita metaforicamente, por exemplo, como uma fonte inexaurível de ser que, pelo seu contínuo jorrar, leva a existência a todas as coisas que são. Os escritos de Plotino estão cheios destas metáforas, mas Plotino reconhecia-as como metáforas, e a posição subjacente é rigorosamente defendida, garantindo a plausível identificação do ser com a unidade ou unicidade.

A linha de reflexão de Plotino começa com o pressuposto de que o ser e a unidade são propriedades que as coisas têm — propriedades de maior generalidade, certamente, mas ainda propriedades, do mesmo modo que ser preto ou quadrúpede são propriedades de um cavalo. A isto combina-se, ao que parece, o pressuposto platónico de que as propriedades não são simplesmente modificações de particulares ou modos de existência dos particulares; as propriedades são entidades em si que as coisas particulares instanciam ou exemplificam. O primeiro destes dois pressupostos é claramente formulado no Isagoge, o conciso tratado introdutório de Porfírio sobre as Categorias de Aristóteles. Na abordagem de Porfírio — que exprime presumivelmente um ponto de vista tipicamente neoplatónico — a teoria das categorias ou tipos de predicação é uma teoria de tipos de predicados: género, espécie, diferença, propriedade (ou seja, propriedade essencial), e acidente. Estes tipos de predicados (os predicáveis) distinguem-se dos indivíduos. Mas mesmo as expressões que designam indivíduos são uma espécie de predicados, segundo Porfírio; expressões como “Sócrates”, “este homem aqui” e “esta coisa aqui” são atributos, diferindo dos predicáveis por “se dizerem apenas de uma coisa”, ao passo que os predicáveis “se dizem de várias coisas”. A distinção é entre atributos que pertencem a várias coisas e atributos que só pertencem a uma coisa. Mas dos indivíduos em si, ao contrário dos atributos, nada se diz; aparentemente só por via indirecta podem ser caracterizados, como sujeitos últimos de predicação.

Esta abordagem da predicação torna a distinção entre coisa e propriedade periférica à metafísica. A distinção importante é entre atributos relativamente menos gerais e relativamente mais gerais, culminando nos atributos mais gerais: ser e unidade. Porfírio falava da substância como “o género mais geral” e num certo sentido o único género real, dado que ao contrário de animal, por exemplo, que é um género relativamente ao homem mas apenas um caso especial relativamente a “coisa viva”, a substância não é em si um caso especial de um género mais elevado. A metafísica neoplatónica é em grande medida uma análise, semelhante ao Parménides de Platão, destes géneros últimos; a força principal dos escritos de Plotino é o argumento de que os géneros últimos não podem ser descritos de qualquer maneira comum, mas que se manifestam em algum sentido nas ordens inferiores do ser. O neoplatonismo empresta-se assim facilmente a uma interpretação religiosa; no mundo clássico tardio, foi efectivamente um sistema teológico, associado a uma forma de vida religiosa que rivalizava com o cristianismo.

Idade média

O Isagoge de Porfírio, traduzido para latim por Boécio no século VI, deu aos filósofos alguns instrumentos básicos, e estimulou a especulação sobre duas questões em particular: 1) O que é uma coisa, considerada apenas em si mesma, como existente nu, à parte de todos os seus atributos? 2) Será que os atributos existem (ou subsistem) separadamente do pensamento humano, e do discurso, e separadamente das coisas das quais se diz que são atributos? A primeira, implícita na abordagem de Porfírio da predicação, é aproximadamente o problema de distinguir a essência da existência, distinguir o que uma coisa é do facto de essa coisa ser. A segunda (na verdade, um grupo de questões) foi explicitamente formulada por Porfírio, mas não lhe deu resposta; é o problema dos universais, muito discutido em toda a filosofia medieval.

Para Aristóteles, o contraste entre o que uma coisa é e o facto de ser é periférica na metafísica, na melhor das hipóteses. Aristóteles reconhecia que a pergunta “Será que x existe?” é diferente de “O que é x?”, mas não dava importância metafísica à distinção. As perguntas particulares da forma “Será que x existe?” são decididas pela percepção sensorial ou por demonstração; não há uma questão metafísica geral quanto à natureza da existência (“ecceidade”) em contraste com a essência (“quididade”). O metafísico está preocupado com o que as coisas são, e não com a sua existência ou inexistência. A posição de Aristóteles era que o que as coisas são — ou seja, o seu ser — é sobretudo o que está contido nas suas definições; a definição de uma coisa descreve a sua essência, que é equivalente à sua espécie (os traços que a identificam como o tipo de coisa que é) que, por seu turno, é identificada pelo seu género, diferença e propriedades essenciais. Mas quando, como em Porfírio, o género (mamífero), a diferença (casco único), a espécie (cavalo), a propriedade (relincha) e o acidente (cinzento) são indiscriminadamente denominados atributos da própria coisa, é natural perguntar que coisa é essa que tem estes atributos ou o que dá a esta colecção de atributos uma existência efectiva, em vez de meramente possível.

O problema dos universais dominou a metafísica nos primórdios da Idade Média; foi discutido por metafísicos desde Boécio, no século VI, a Roscelino (c. 1050–1125) e Pedro Abelardo (c. 1079–1142), no século XII. A principal tradição filosófica neste período foi a agostiniana, representada pelo próprio Boécio, João Escoto Erígena (c. 815–877), Santo Anselmo, Guilherme de Champeaux (c. 1070–1121), São Boaventura (c. 1217–1274), e muitos outros. Esta tradição favorecia o realismo; considerava-se que as espécies e os géneros, como cavalo e animal, existiam não só separadamente do pensamento humano, e do discurso (realismo epistemológico), mas também de cavalos e animais particulares. As espécies e os géneros eram encarados como paradigmas, arquétipos ou modelos de coisas particulares; como tal, existem no espírito de Deus, que os usa como modelos ao criar a natureza. Como em Santo Agostinho e Platão, a tese principal é que os particulares não podem ser reconhecidos e identificados como casos particulares de uma categoria geral, a menos que tenhamos primeiro conhecimento independente da categoria; a inferência é que estas categorias gerais têm de existir separadamente dos particulares que os exemplificam, sendo-lhes de algum modo anteriores.

A demonstração da existência de Deus de Santo Anselmo (1033–1109) (antecipada por Santo Agostinho), teve uma história importante em si mesma; é também um exemplo iluminante do platonismo cristão dos primórdios da Idade Média. O argumento não se compreende plenamente fora do seu contexto de meditação religiosa, mas pode ser seleccionado e estudado (como os filósofos têm feito até aos dias de hoje) como uma espécie de teste supremo dos pressupostos metafísicos platónicos (ou neoplatónicos). Sucintamente, o argumento é que 1) temos um conceito de um ser supremo (um ser “maior que o qual nada pode ser concebido”), de modo que 2) o Ser Supremo “existe no entendimento”. Dado que 3) existir na realidade é maior do que apenas no entendimento, é contraditório dizer que o Ser Supremo só existe no entendimento; logo, podemos inferir que 4) o Ser Supremo existe na realidade. A objecção de Kant parece decisiva. A existência do Ser Supremo (ao contrário do conceito de existir) não pode fazer parte do nosso conceito do Ser Supremo. Se fizesse, o nosso conceito seria o Ser Supremo, e não o seu conceito. Mas o argumento parece inevitável caso se pressuponha, como os neoplatónicos, que a existência é um atributo que as coisas têm, sendo em consequência de o terem que são, como as coisas são vermelhas em consequência de terem o atributo da vermelhidão. Combinado com o pressuposto de que os atributos têm existência independente, esta linha de reflexão leva à conclusão de que a existência ou ser é em si uma coisa que existe; a existência das coisas da natureza é vista como algo que se deve a terem recebido uma parte da coisa inesgotável, o ser, aproximadamente como um objecto iluminado recebi a luz de uma fonte de iluminação. Além disso, parece inferir-se que a existência tem em si de existir necessariamente, como consequência analítica do que é (tal como “A vermelhidão é vermelha” parece afirmar uma necessidade analítica). Dados estes pressupostos, o argumento ontológico a favor da existência de Deus, como Kant mais tarde lhe chamou, é pelo menos uma forte tentação; o argumento tem tido uma história que se confunde com a história do monismo lógico em metafísica, de Parménides a Hegel, e não só, tendo também estado intimamente associado à teologia cristã.

Renascimento da filosofia clássica

Apesar de a controvérsia realismo-nominalismo ter ocupado os filósofos dos séculos XI e XII, novas maneiras de pensar em metafísica estavam em gestação com as traduções de textos gregos e árabes para latim, especialmente traduções de Aristóteles e dos seus comentadores árabes. Nos primórdios da Idade Média havia pouco conhecimento em primeira mão dos filósofos gregos. O Timeu, o Fédon e o Ménon de Platão eram conhecidos, mas importantes diálogos posteriores, incluindo Parménides e O Sofista, não o eram. Os textos gregos tinham sido preservados, contudo e, em especial depois da captura de Constantinopla pelos cruzados em 1204, foram lentamente recuperados no Ocidente. No século XIII, Guilherme de Moerbeke (c. 1215–1286) produziu uma tradução latina literal do Comentário ao Parménides, de Proclo; o comentário continha o texto do Parménides até à primeira hipótese, dando assim aos filósofos algum conhecimento em primeira mão desse importante diálogo.

Aristóteles era ainda menos conhecido e compreendido nos primórdios da Idade Média. Só se conhecia a sua lógica, o texto de De Interpretatione, e os outros tratados lógicos, em versões neoplatonizadas às mãos de Boécio. Mesmo já no século XIII, dois textos neoplatónicos — a “Teologia de Aristóteles” (na verdade uma compilação das Enéadas IV–VI, de Plotino) e o Liber de Causis (uma obra baseada nos Elementos de Teologia de Proclo) — eram erradamente atribuídos a Aristóteles. Contudo, os escritos de Aristóteles tinham sido traduzidos para siríaco por cristãos nestorianos, no século V, e do siríaco para árabe no século IX; as traduções latinas de textos árabes foram feitas no século XII, e no século XIII esses escritos foram traduzidos directamente do grego por Roberto Grosseteste (c. 1168–1253) e Guilherme de Moerbeke. No fim do século XIII, a maior parte de Aristóteles estava traduzido em latim, e estava em geral ao dispor dos filósofos. Com efeito, Aristóteles era um novo filósofo que surgira na cena e a dominara como se fosse um contemporâneo; nos séculos XIII e XIV, a Metafísica foi o estímulo para metafísicos como Alberto Magno (c. 1200–1280), São Tomás de Aquino, João Duns Escoto e Guilherme de Ockham, entre outros.

Tomás de Aquino

A metafísica de Tomás de Aquino (1225–1274) é uma tentativa de explicar as distinções entre essência e existência, existência necessária e contingente, e particulares e universais, usando a linguagem da metafísica de Aristóteles e grande parte da sua perspectiva. Para Tomás, as coisas comuns, como cavalos e casas, existem realmente num sentido literal e directo, independentemente de observadores humanos e também de Deus e dos paradigmas das coisas no espírito de Deus. A existência destas coisas comuns não é um atributo que recebem do exterior; não é como a luz que a Terra recebe do Sol. A existência de coisas finitas por natureza é um acto intrínseco de existência que estas coisas exercem. Mas Tomás sustentava também que as coisas comuns de que temos experiência existem contingentemente, no sentido em que a sua existência não é uma consequência analítica do que são; não é algo que façam por natureza. Consequentemente, tem de haver uma causa da sua existência (num sentido metafísico e não físico de “causa”); isto não é senão um ser necessário, identificado com Deus, que existe pela sua própria natureza. Os seres contingentes, como os cavalos e as casas, são obviamente contingentes porque, por serem compostos de matéria, a sua existência é finita — começam a existir e deixam de existir. A matéria dá conta também da individualidade das coisas; as coisas que são idênticas quanto ao que são ou, por outras palavras, as coisas que têm a mesma natureza, são mesmo assim coisas diferentes, porque a matéria de que são compostas é diferente. Deus, pelo contrário, é imaterial e, por isso, uno e imutável. Tomás, como os neoplatónicos, associava a finitude, a contingência, a pluralidade e a mudança à matéria. Diferia dos neoplatónicos principalmente na sua perspectiva de que as coisas finitas — em particular, os seres humanos — existem por si (em virtude de um poder delegado, digamos) e não se limitam a participar da existência de um ser de ordem mais elevada. Neste aspecto, Tomás concordava com a teologia cristã e não se afastava de Aristóteles.

Duns Escoto

João Duns Escoto (c. 1265–1308) parece ter concordado com Tomás que ser não é um atributo nem uma coisa de algum modo partilhado por todas as coisas que se diz que são. Por outro lado, criticou o contraste de Tomás entre essência e existência, defendendo que seja o que for de que estejamos cientes, tem de ser uma essência em algum sentido, incluindo até a individualidade ou “istidade” que, na sua abordagem, é um atributo de indivíduos (“este cavalo aqui”), distinguindo-os de seres indeterminados (“um cavalo” ou “a casa” em geral).

Guilherme de Ockham

Guilherme de Ockham (c. 1287–1347) sustentava que expressões gerais ou indeterminadas como “um cavalo” ou “o cavalo” não correspondem a seres gerais, seja mentais, seja na realidade, referindo antes indiferentemente cavalos individuais. Foi por isso convencionalmente denominado nominalista, em contraste com Duns Escoto, que era realista. Mas, ao que parece, o ponto principal de Guilherme de Ockham era que as distinções lógicas entre universal, particular e singular não são distinções entre tipos de coisas — não constituem uma enumeração do que é —, sendo, ao invés, maneiras de referir o único tipo de coisa que realmente existe — nomeadamente, as coisas comuns, que encontramos na experiência quotidiana. Por esta razão, Guilherme estava provavelmente mais próximo da perspectiva do próprio Aristóteles do que Tomás ou Duns Escoto; ao contrário destes, o seu objectivo explícito era formular a posição original de Aristóteles com o máximo de precisão. Mas os sucessores de Guilherme — sendo os mais notáveis João de Mirecourt (n. c. 1310) e Nicolau de Autrecourt (1299–1369) — empurraram a perspectiva de Guilherme numa direcção que antecipou Hume e até o positivismo lógico do século XX. Só podemos falar com sentido do que temos contacto por meio dos sentidos, e só temos contacto com particulares, de modo que todo o discurso sobre as coisas só refere particulares, em última análise. A existência de um particular nunca é uma necessidade analítica, nem uma consequência analítica da existência de outro; logo, todas as afirmações dotadas de significado acerca das coisas são apenas prováveis.

De Descartes a Kant

Descartes

O renascimento da metafísica no século XVII começa com René Descartes (1596–1650), que tem sido tradicionalmente considerado o fundador da filosofia moderna. As ideias mais comummente associadas a Descartes não são originalmente suas. Nos escritos de Santo Agostinho encontra-se o argumento do cogito ergo sum e a perspectiva de que a nossa própria existência é a certeza última, dado que podemos estar certos dela quando a existência de todas as outras coisas estão em dúvida. O argumento de que nada inferior a Deus poderia ter produzido a ideia de Deus no espírito humano encontra-se também em Santo Agostinho. O argumento ontológico teve uma história famosa na Idade Média, e a perspectiva de que os objectos físicos só têm os atributos geométricos da forma e movimento era sustentada pelos primeiros atomistas gregos. O conceito de mente como uma coisa substancial anexada de maneira mais ou menos externa ao corpo dificilmente é original de Descartes. Mas isto é apenas dizer que, no seu trabalho metafísico de “construir a partir das fundações” para “estabelecer uma superstrutura firme e duradoura nas ciências”, Descartes usou bastante material das velhas ruínas.

O mais original de Descartes foi a sua concepção do método filosófico e da verdade filosófica. Nenhuma asserção metafísica é de crer a menos que 1) seja compreendida com o tipo de clareza e distinção que têm as proposições matemáticas, e 2) a sua verdade seja tão intrinsecamente óbvia que, como os postulados da geometria, não possa ser posta em dúvida, ou então que seja demonstrada com o mesmo rigor com que se demonstra teoremas da geometria. A filosofia de Descartes pode ser vista em grande parte como um esforço para reduzir o segundo critério ao primeiro — ou seja, para mostrar que pelo menos no caso das proposições metafísicas, se as compreendermos clara e distintamente, ficamos certos da sua verdade. Estas teses quanto às suas asserções metafísicas, ou a quaisquer outras, foram revolucionárias e muitíssimo influentes. Tal como Descartes e os seus seguidores as entendiam, equivaliam a exigir que a metafísica fosse científica, entendendo por esta palavra estar sujeito a um tipo de disciplina intelectual rigorosa que é sobretudo ilustrada na matemática e nas ciências físicas exactas.

Espinosa

Bento de Espinosa (1632–1677), seguindo uma interpretação da exigência de Descartes de clareza e distinção na metafísica, concebia esta área como uma explicação dedutiva do Universo, que devia ser desenvolvida partindo de um punhado de definições — nomeadamente, a definição de substância como um ser que nada exige fora de si para ser ou para ser concebida — e pressupostos auto-evidentes. As suas inferências são que tem logicamente de haver uma e só uma substância, incriada e sempiterna; que há um número infinito de atributos dessa substância única, só dois dos quais, o pensamento e a extensão, são do nosso conhecimento; os atributos são rostos da substância única — modos autónomos de descrevê-la — e não propriedades inerentes nela, à semelhança do que pensamos comummente das cores, que são inerentes aos objectos físicos; o Universo, descrito em termos do atributo da extensão, é um sistema mecânico no qual todas as coisas que acontecem são elos numa cadeia de causalidade física; um determinismo causal igualmente completo está ainda presente quando o Universo é concebido em termos do atributo do pensamento.

Leibniz

Gottfried Wilhelm Leibniz (1646–1716) foi também um seguidor de Descartes, no sentido de concordar com a exigência de uma metafísica rigorosamente científica e com ideias claras e distintas, contrastando com a verborreia escolástica. Mas apesar de Leibniz concordar que as asserções metafísicas são verdadeiras se forem clara e distintamente compreendidas, a sua interpretação desta ideia era que as verdades metafísicas (e as verdades de razão em geral, em contraste com as verdades contingentes de facto) são logicamente necessárias; a sua negação envolve autocontradição. Leibniz entendia a clareza e distinção num sentido lógico e não psicológico; para Leibniz, “a verdadeira marca de uma noção clara e distinta de um objecto é haver maneira de saber quanto a ele muitas verdades por meio de demonstrações a priori”. E sabemos uma verdade por meio de uma demonstração a priori quando, “com a ajuda de definições, ou pela resolução de conceitos”, a “reduzimos” a uma tautologia explícita da forma “a é a” ou “a não é não-a”.

O sistema metafísico de Leibniz é, com efeito, um esforço de ganhar uma ideia clara e distinta do Universo, no seu próprio sentido bem especial de clareza e distinção. E os seus escritos técnicos em metafísica são constituídos, em grande medida, por uma série de demonstrações a priori algo diferentes de várias asserções metafísicas, incluindo as seguintes: há um número infinito de substâncias, cada uma das quais é logicamente completa, no sentido de conter num certo sentido todas as propriedades que alguma vez já teve ou terá; duas substâncias nunca têm exactamente as mesmas propriedades (“identidade dos indiscerníveis”); uma descrição completa de qualquer substância seria uma descrição de todo o Universo “de um ponto de vista”; o espaço e o tempo são relações entre coisas, e não coisas por si mesmas; a aparência de relações causais entre coisas é ilusória, reflectindo a organização prévia e deliberada de Deus, e não qualquer influência real exercida por uma coisa sobre outra. Ao demonstrar estas asserções, Leibniz apoiou-se num princípio da razão suficiente, afirmando, com efeito, que há sempre uma explicação racional para um facto. Mas o princípio da razão suficiente não é realmente uma descrição do Universo, para Leibniz. O que realmente exprime é a ideia de que em princípio qualquer verdade é susceptível de ser demonstrada a priori; a ideia subjacente é que quando qualquer afirmação é compreendida com perfeita claridade e distinção, ver-se-á que é uma tautologia explícita.

Locke

Espinosa e Leibniz são habitualmente agrupados com Descartes como racionalistas, contrastando com os empiristas britânicos, representados no século XVII por John Locke (1632–1704). Mas, num sentido importante, também Locke era um seguidor de Descartes; também estava sobretudo interessado em substituir o jargão escolástico por ideias claras e distintas, e em abrir o caminho às ciências. O principal contributo de Locke na metafísica foi a sua discussão crítica da substância e da essência. Descartes estabelecera como noção comum indubitável que “nada existe sem atributos, propriedades ou qualidades”, de modo que “quando percepcionamos qualquer atributo, concluímos consequentemente que está necessariamente presente alguma coisa ou substância existente à qual se possa atribuí-lo”. Locke não negou que esta é uma inferência válida; não questiona a distinção entre coisa e propriedade. Mas perguntou o que sabemos (ou, na sua expressão, “Qual é a nossa ideia”) de uma coisa para lá dos seus atributos, poderes e assim por diante. A sua resposta foi que não temos qualquer ideia clara e distinta; só sabemos o que a própria noção comum diz — nomeadamente, que se há atributos, tem de haver alguma coisa subjacente que os tem. Não temos ideia clara do que está subjacente, nem do que “subjacente” quer dizer neste contexto. Só sabemos dos atributos, poderes, e assim por diante, das coisas (indiscriminadamente denominados qualidades por Locke), e não das coisas em si.

Contudo, Locke estava aqui apenas a criticar a noção de substância como substrato subjacente às propriedades. E este é um conceito de substância minimizado por Aristóteles e nunca destacado por quaisquer metafísicos. Thomas Hobbes (1588–1679), por exemplo, defendeu que os acidentes do corpo, como a forma ou a rigidez, constituem a própria “maneira como concebemos o corpo”. Pedir uma descrição do corpo independente dos seus acidentes seria, para Hobbes, um pedido sem sentido. A crítica mais importante e original de Locke diz respeito à noção de essência — a noção do que uma coisa é, em contraste com aquilo de que é feita, com a sua dimensão, localização, idade, etc. Locke defendeu profusamente que a distinção é inútil; a pergunta “O que é x?” só pode ser respondida enumerando as propriedades observadas de x e (o que é mais importante) não vemos qualquer necessidade lógica na coexistência de exactamente esta e não qualquer outra combinação de propriedades. Não temos por consequência qualquer conhecimento de essências reais, excepto nos casos em que nós próprios construímos a coisa em questão, como na matemática. Locke pensava, aproximadamente, que só conhecemos os atributos e os poderes das coisas por meio das impressões sensoriais simples que temos delas. Dado que, na sua maior parte, pelo menos, não há conexões necessárias visíveis entre impressões sensoriais simples, não podemos explicar por que razão as coisas têm a aparência que têm — tudo o que podemos fazer é descrever essa aparência. Locke nunca negou a existência de uma razão para as coisas terem os atributos e poderes que têm em vez de outros, mas negou a nossa capacidade para alguma vez termos ideias claras e distintas dessas razões. O efeito da perspectiva de Locke é negar a possibilidade de conhecimento metafísico, quando a metafísica é concebida como Francis Bacon (1561–1626) a concebia, por exemplo: como um estudo muito geral mas ainda empírico e até experimental das causas formais das coisas, distinguindo-se das ciências da natureza, que estudam as causas materiais e eficientes.

Berkeley e Hume

Locke nunca questionou a distinção entre ideias de coisas e as qualidades das coisas que têm as ideias como efeito, e pensava que temos pelo menos uma ideia “relativa e obscura” de uma coisa, contrastando com as suas qualidades. Mas George Berkeley (1685–1753) questionou estas duas distinções, em parte numa base factual, mas mais especialmente com base numa teoria geral do significado. Para Berkeley, a distinção gramatical entre sujeito e predicado não tem homólogo numa distinção entre coisas e propriedades; só podemos falar com sentido daquilo com o qual estamos em contacto, e só estamos em contacto com cores, sons e sabores individuais, e coisas semelhantes. Dado que estas cores, sons e sabores individuais têm características que são admitidamente mentais, como serem agradáveis ou dolorosas, e dado que são em vários aspectos relativos ao observador humano, Berkeley concluiu que só podemos falar com sentido de entidades mentais ou, como lhes chamava, seguindo o uso de Descartes e Locke, de ideias na mente. Deste modo, Berkeley chegou ao fenomenismo (as coisas existem exactamente como surgem aos sentidos) e ao idealismo (as coisas só existem como objectos da percepção consciente; o seu ser consiste em serem percepcionadas). Berkeley não era radical nestas posições; pensava que fazia sentido falar sobre espíritos alheios e sobre Deus, ainda que não possamos percepcionar directamente esses fenómenos.

Estas ressalvas, porém, foram postas de lado no fenomenismo radical de Hume (1711–1776). Este filósofo criticou a noção de mente como algo que se distingue das ideias que se diz estarem na mente, pelas mesmas razões que Berkeley criticou a noção de matéria. Segundo Hume, a própria noção de existência nada quer dizer senão um grau maior ou menor de força e vivacidade, associado às impressões sensoriais e às imagens mentais. As nossas crenças na existência persistente de objectos físicos e na presença de conexões causais entre eles são explicadas como efeitos da associação habitual de ideias a favor da qual não há quaisquer provas, estritamente falando. Apesar de Hume ser usual e correctamente considerado empirista, em contraste com os metafísicos especulativos, como Leibniz ou Espinosa, há um sentido em que era tão racionalista como o seu contemporâneo Christian Wolff (1679–1754). Hume pressupunha que o objecto último do pensamento e do discurso tinha de ser algo do qual temos consciência directa, pensando também que só temos consciência directa de sensações individuais (ou das suas cópias mais ou menos esmaecidas), e que sempre que conseguimos discriminar uma sensação de outra, ou um sentir de outro, estes existem separadamente e, portanto, contam como coisas diferentes. Estes pressupostos equivalem a uma teoria do empirismo, mas não são em si asserções empíricas. Por outro lado, não são também verdades necessárias no sentido de Leibniz — proposições cuja negação envolva uma autocontradição. Com efeito, demonstram como Hume compreendia a exigência de Descartes de clareza e distinção em metafísica, e são análogos ao princípio da razão suficiente de Leibniz, que exprimia o seu entendimento da mesma exigência. Para Leibniz, a clareza e distinção significava, no fim de contas, uma redução a uma tautologia explícita; para Hume, a clareza e distinção significava, no fim de contas, uma redução a asserções directamente verificáveis acerca de sensações e sentires.

Kant

Aquando da morte de Hume, em 1776, as dificuldades e ambiguidades do programa de Descartes para a metafísica eram visíveis. O cartesianismo inspirou as construções especulativas de Espinosa, Nicolas Malebranche (1638–1715) e Leibniz, entre outros, e as filosofias críticas e cada vez mais cépticas — pelo menos à superfície — de Locke, Berkeley e Hume. Em qualquer caso, esta era a perspectiva assumida por Immanuel Kant (1724–1804). Levou-o a perguntar se a metafísica poderia ser científica — se o conhecimento metafísico é sequer possível e, caso contrário, como as questões que lhe deram origem no passado poderiam ser respondidas. Ao discutir estes problemas, Kant fez uma análise muito penetrante da metafísica como disciplina e conjunto de asserções, e como “propensão humana”; o contributo de Kant, além do seu próprio sistema, foi levantar questões sobre o que são as asserções metafísicas, em contraste com as científicas, sobre o sentido em que se dizem verdadeiras, e sobre as bases para nelas acreditar ou não.

Do ponto de vista de Kant, a história da metafísica (na medida em que a metafísica se apresentava como ciência) tinha sido uma disputa entre o dogmatismo e o cepticismo. Os dogmáticos, como Leibniz, sustentavam que a metafísica pode, com base apenas em considerações puramente lógicas ou conceptuais, responder com absoluta certeza a questões sobre a origem do Universo, a existência de Deus e a imortalidade da alma. Os “dogmáticos”, tal como Kant usa a palavra, podem ser materialistas, pampsiquistas ou dualistas, monistas ou pluralistas. O que têm em comum é a confiança de que o metafísico pode explicar a natureza da realidade usando raciocínio a priori. Os cépticos, por outro lado, são empiristas; para eles não há verdades factuais universais e necessárias, e o raciocínio só por si, em contraste com a observação e a experimentação, é totalmente incapaz de responder a questões sobre a existência ou as naturezas das coisas. Para Kant, esta alternância entre dogmatismo e cepticismo era o efeito da alternância entre uma confiança excessiva nas capacidades do espírito humano e uma falta de confiança. Por isso, a sua filosofia crítica é um esforço para mostrar como é o conhecimento humano e quais são necessariamente os seus limites.

A metafísica dogmática, no sentido de Kant, não é uma mera especulação ad hoc; é um mau uso, compreensível e corrigível, de conceitos básicos. O metafísico dogmático vê com razão que usamos efectivamente conceitos como substância (em contraste com acidentes) ou causalidade (em contraste com a mera sucessão). Vê também correctamente que estamos a priori certos de coisas como a irreversibilidade do tempo ou a impossibilidade de dois objectos físicos ocuparem o mesmo espaço. Mas conclui acriticamente que temos um poder que não a percepção sensorial para saber como são as coisas, ao passo que a verdadeira conclusão é que nós próprios determinamos previamente como qualquer objecto de conhecimento tem de ser. As questões que formulamos sobre as coisas e as respostas que procuramos são determinadas pelas nossas próprias formas a priori de percepcionar (espaço e tempo) e de ajuizar (todo o atributo tem de pertencer a alguma substância, todo o acontecimento tem de ter uma causa, e assim por diante). Confundindo estas formas a priori de percepcionar e de ajuizar com descrições das coisas em si, o metafísico dogmático é levado a falar de sujeitos últimos e de causas primeiras. Do ponto de vista de Kant, estas especulações são desnorteadas e até destituídas de sentido. Mas as ideias metafísicas, como a de sujeito último ou causa primeira, têm um uso regulativo, ao encorajar-nos a nunca ficarmos satisfeitos com o que efectivamente sabemos a qualquer momento. E Kant não inferiu que as crenças que os metafísicos tinham tentado demonstrar são ilusórias — crenças na imortalidade pessoal ou na existência de Deus. Estas crenças não são como a crença em máquinas de movimento perpétuo; podem ser justificadas e até apoiadas por argumentos — mas argumentos morais, e não especulativos. A metafísica dogmática pode assim ser explicada e até vindicada, num certo sentido. Contudo, não pode ser seriamente considerada uma fonte de conhecimento.

Metafísica depois de Kant

A posição metafísica do próprio Kant era idealista. As categorias de Aristóteles reaparecem algo modificadas na filosofia de Kant como formas de juízo. O efeito mais imediato e óbvio do pensamento de Kant vê-se nos sistemas idealistas dos seus contemporâneos alemães mais jovens, assim como dos seus sucessores: Johann Gottlieb Fichte (1762–1814), Friedrich Schelling (1775–1854), Arthur Schopenhauer (1788–1860) e, acima de tudo, Georg Wilhelm Friedrich Hegel.

Hegel

Entre os idealistas, contudo, foi provavelmente a perspectiva metafísica de Hegel (1770–1831) que teve uma influência intelectual mais geral, em comparação com qualquer outro filósofo recente. O idealismo crítico de Kant pressupõe um contraste nítido entre o que é dado na experiência (impressões sensoriais) e as formas que usamos para organizar e interpretar o que nos é dado. Em geral, Kant pressupunha uma distinção clara entre o que é directamente percepcionado e o que é inferido ou construído pelo espírito. O idealismo absoluto de Hegel consiste em grande medida em negar este contraste; para Hegel, a noção subjacente de uma pluralidade de particulares com existência independente, localizados univocamente no espaço e no tempo (concebidos estes como receptáculos onde estão as coisas, sem ambiguidades), era uma noção falsa, e até logicamente incoerente. Hegel parece ter chegado a esta conclusão partindo dos pressupostos de que não se pode distinguir apropriadamente as coisas em si das coisas tal como as conhecemos, e que estas ganham gradualmente forma na nossa consciência, só se tornando definidas em contraste com outras coisas. Nesta base, concluiu que todas as coisas se transmutam nos seus opostos e que as conexões entre coisas que estabelecemos no pensamento fazem tanto parte das coisas como as suas chamadas “propriedades inerentes”. Hegel foi assim conduzido à posição monista de que só há um tipo de substância, e que só há uma entidade verdadeiramente substancial. O seu idealismo é um panteísmo evolutivo, no qual a única realidade auto-subsistente é espírito; contrasta não só com o materialismo, no sentido tradicional, mas também com qualquer posição metafísica que associe a realidade a um tipo qualquer de definitude rígida.

Para lá da filosofia propriamente dita, a influência de Hegel foi visível sobretudo ao inspirar uma perspectiva das coisas como fases de uma história viva e em crescimento; instituições, linguagens, ideias, e até as próprias filosofias, eram vistas como fenómenos quase vivos e até quase pessoais, cujas histórias se devia apreender e apreciar compreensivamente, em vez de serem avaliadas por si com base em padrões a priori. Esta perspectiva muito comum tem sido encorajada pelo idealismo absoluto de Hegel, no qual a realidade está associada à expressão de si e à total abrangência, e não com coisas dadas, ou factos. Na filosofia, a influência de Hegel vê-se nos muitos idealismos evolutivos do século XIX e de inícios do século XX. Vê-se também no pensamento mais rigoroso e crítico de hegelianos como F. H. Bradley (1846–1924) e J. M. E. McTaggart (1866–1925). O primeiro, em particular, sublinhou o lado negativo do hegelianismo, encontrando antinomias lógicas nos conceitos comuns das coisas, propriedades, relações, causalidade, e espaço e tempo. McTaggart, por outro lado, tentou reformular o hegelianismo como um sistema especulativo claro e directo. Esta tradição teve continuidade em metafísicos contemporâneos como Brand Blanshard (1892–1987).

Metafísica e pragmatismo

Em grande medida por meio da influência do idealismo alemão, e especialmente de Hegel, a metafísica do século XIX era em geral entendida como cosmologia a priori e, em particular, uma cosmologia idealista que contrastava e até se opunha aos alegados pressupostos mecanicistas da ciência. A filosofia positiva — isto é, não-metafísica — de Auguste Comte (1798–1857) não atacava a metafísica em si; atacava a filosofia especulativa como maneira de fornecer substitutos das crenças religiosas. Popularmente, a metafísica estava associada à religião, ao idealismo e ao espiritualismo, opondo-se à ciência, que estava associada ao empirismo e ao materialismo. Mas esta concepção de metafísica, apesar de ainda ser popular, não foi senão um alinhamento temporário na história da metafísica, e foi fortemente posta em questão, mesmo no século XIX.

Um exemplo notável é o filósofo americano C. S. Peirce (1839–1914). Peirce era hegeliano, na medida em que acreditava que não há particulares auto-idênticos que se possa localizar ou identificar sem ambiguidades. A realidade é indeterminada, tanto no sentido de se caracterizar pela novidade e imprevisibilidade, como no sentido de as coisas não serem apenas o que são, antes se transmutando continuamente noutras; a realidade é um processo evolutivo que é num certo sentido racional. Mas para Peirce esta perspectiva é exigida pela reflexão sobre a experiência e as ciências, sendo a própria metafísica uma ciência observacional cuja tarefa é “estudar as características mais gerais da realidade e dos objectos reais”, e cujo atraso se deve principalmente ao facto de “os seus professores mais destacados terem sido teólogos”. A ciência e a experiência obrigam-nos a abandonar o conceito de factos definidos e sem ambiguidade, e os pressupostos a priori fixos; a ciência é uma comunidade de investigadores que partilham métodos e uma espécie de moral e de disciplina intelectual, e não um corpo de conhecimento ou conjunto de pressupostos (como Kant, por exemplo, pensara). A metafísica, para Peirce, era uma tentativa de descrever como a realidade tem de parecer a homens impregnados de ciência; a realidade é aquilo que acabará por ser objecto de concordância na comunidade de investigadores; as leis gerais e as relações entre coisas são reais dado que estas, em contraste com os factos particulares, são objecto de investigação científica. O conceito de metafísica de Peirce influenciou John Dewey (1859–1952) e, em grande medida por meio deste, tem tido uma importância considerável na filosofia americana recente. Como Peirce, Dewey tinha a esperança de que a metafísica poderia ser uma explicação descritiva de traços gerais visíveis em toda a experiência.

Positivismo lógico

A tendência principal da metafísica nos séculos XIX e XX foi idealista; os metafísicos responderam a Kant construindo sistemas que pretendiam alargar ou aprofundar o seu idealismo. Mas outra resposta foi questionar a metafísica dogmática mais profundamente do que o próprio Kant. Este questionamento mais radical começou com filósofos da ciência do século XIX, como Ernst Mach (1839–1916), que criticou a noção de que os conceitos gerais da ciência (força, por exemplo) descreviam entidades inobservadas ou que as leis da ciência vão além de fórmulas convenientes para resumir observações.

Este tipo de crítica foi levada a cabo de maneira mais contundente e sistemática pelo positivismo lógico do século XX. Para os positivistas lógicos, a metafísica tem um significado especial; uma asserção é metafísica se pretende fazer uma afirmação factual, mas fracassa nesse intento — e por isso não tem significado — dado que nenhumas observações contam como provas a seu favor, ou contra si. Este uso especial da metafísica deve ser entendido no contexto da crença dos positivistas lógicos de que as questões tradicionais da metafísica têm algo que se lhe diga, mas que as formulações tradicionais obscurecem. Não são questões acerca das coisas, de todo em todo, mas acerca da linguagem — em particular, acerca dos tipos de palavras e frases, e do vocabulário lógico necessário para exprimir as descobertas das ciências.

A esperança de alguns positivistas lógicos era que se as questões metafísicas tradicionais fossem traduzidas em questões sobre a linguagem da ciência, as respostas seriam imediata e claramente visíveis. Se, por exemplo, a pergunta “Será que o não-ser existe?” for formulada como “Será que as frases da forma ‘x não é um F’ são por vezes verdadeiras?”, a resposta óbvia é “Sim”. Mas tornou-se cada vez mais claro que, ao construir linguagens que exprimissem as descobertas das ciências, surgiam problemas análogos aos da metafísica tradicional. Por exemplo, alguns positivistas sugeriram que frases como “Dois mais dois é quatro” devem a sua verdade ao uso linguístico, e não a uma conexão necessária entre coisas, conexão essa apreendida pela razão, como a metafísica do passado amiúde pressupunha. Os críticos fizeram notar, contudo, que dado ser um facto empírico que usamos a linguagem como usamos, substituir “verdade necessária” por “verdadeiro devido à convenção linguística” ameaça fazer de “Dois mais dois é quatro” uma afirmação meramente empírica. De modo que é preciso distinguir entre o que simplesmente não dizemos e o que a nossa linguagem não nos permite dizer. Isto não significa, é claro, que nada se ganha em comparação com a metafísica tradicional, mas significa que o feito do positivismo lógico foi elucidar ou reconstruir as questões metafísicas tradicionais, e não fornecer um método para resolvê-las facilmente. Por isso, os positivistas lógicos tendem agora a aceitar a metafísica no seu sentido convencional, como designação de uma parte legítima da filosofia, juntamente com o uso especial de “metafísico” para falar de asserções pseudoinformativas que, na realidade, são destituídas de significado.

Filosofia da linguagem comum

Os positivistas lógicos foram fortemente influenciados pela perspectiva de Bertrand Russell (1872–1970) de que grande parte da metafísica tradicional resultava de uma análise superficial e apressada da linguagem comum, e também pela perspectiva de Russell e Peirce de que os fracassos anteriores dos metafísicos se deviam a uma lógica muitíssimo restrita que os impedia de analisar correctamente a linguagem comum. A noção de que a metafísica tradicional resultava de uma compreensão superficial da linguagem comum foi desenvolvida independentemente do positivismo lógico (ainda que por vezes popularmente com ele se confunda) por Ludwig Wittgenstein (1889–1951), Gilbert Ryle (1900–1976) e um grande número de filósofos britânicos e americanos contemporâneos. Como os positivistas lógicos, os filósofos da linguagem comum concordavam que as questões metafísicas tradicionais são num certo sentido inteligíveis, mas que precisam de ser radicalmente reformuladas; ao contrário dos positivistas, não pretendiam reformulá-las como questões sobre a linguagem da ciência. Queriam mostrar, ao invés, como as questões metafísicas podem ser resolvidas (ou dissolvidas) exibindo os pressupostos menos óbvios mas essenciais que dão às expressões linguísticas o significado que efectivamente têm no discurso comum. Positivamente, os filósofos da linguagem comum usaram a análise linguística (por exemplo, nomear, referir, descrever, e assim por diante) para lidar com questões metafísicas tradicionais e, como os positivistas lógicos, aceitavam a metafísica como uma área legítima da filosofia, neste sentido positivo.

Fenomenologia e existencialismo

Tanto o positivismo lógico como a filosofia da linguagem comum poderiam ser vistas como extensões da crítica de Kant à metafísica dogmática; contrastam ambas nitidamente com o hegelianismo e, em geral, com os sistemas mais ou menos especulativos que se inspiram no idealismo de Kant. Um terceiro desenvolvimento importante na metafísica dos séculos XIX e XX tem como representantes os fenomenólogos e existencialistas, que concordavam com os hegelianos que a metafísica não é uma ciência observacional em qualquer sentido comum, concordando também com os filósofos de inclinação analítica que o raciocínio a priori não pode estabelecer seja o que for acerca da natureza da realidade. Assim, estes filósofos procuraram maneiras novas e nada convencionais de ter experiência da realidade ou de com ela nos depararmos. Vê-se esta resposta em metafísicos mais convencionais, como Henri Bergson (1859–1941), que sublinhou a incapacidade do pensamento conceptual espacializante e estático para representar correctamente a realidade da experiência imediata, especialmente o seu fluir temporal, ou por Alfred North Whitehead (1861–1947), que sublinhou o sentimento e emoção imaginativos como uma maneira de conseguir aceder às naturezas íntimas das coisas. Os fenomenólogos sustentavam que o senso comum e a ciência pressupõem uma experiência mais primitiva que pode ser apreendida por uma descrição deliberadamente ingénua de como as coisas efectivamente nos parecem; os existencialistas defendem que o objecto da metafísica é uma realidade que não pode ser descrita de uma maneira emocionalmente neutra, sendo antes num certo sentido da nossa posse ou algo com que nos deparamos ao comprometermo-nos com uma causa ou ao enfrentar a certeza da nossa própria morte. A fenomenologia e o existencialismo foram combinados por filósofos sistemáticos como Martin Heidegger (1889–1976) e Jean-Paul Sartre (1905–1980), cujos sistemas tentam exprimir uma compreensão intuitiva do tempo, da contingência e da particularidade, tal como delas temos experiência na vida humana.

Análise filosófica

Pelo menos no mundo de língua inglesa, o contributo mais original e importante para a metafísica, actualmente, vem dos filósofos analíticos que foram largamente influenciados pelo positivismo lógico ou pela filosofia da linguagem comum. Estes filósofos vêm a situação actual da metafísica aproximadamente como Aristóteles a via quando passou em revista a história da metafísica até ao seu próprio tempo. Num certo sentido, pensava Aristóteles, tudo tinha já sido dito, mas noutro nada fora dito, porque os primeiros filósofos eram vagos e inarticulados. Os metafísicos contemporâneos, contudo, estão mais bem colocados para passar em revista e analisar a história da sua área do que Aristóteles, em parte porque a própria história é muito mais rica, e em parte porque os insights contemporâneos tornam mais inteligível o trabalho dos metafísicos do passado.

Roger Hancock
Encyclopedia of Philosophy, ed. Donald M. Borchert (Macmillan Reference, 2006), Vol. VI, pp. 183–197.

Bibliografia

Obras gerais

Pré-socráticos

Platão

Aristóteles

Neoplatonismo

Primórdios da Idade Média

Idade Média tardia

Século XVII

Século XVIII

Metafísica depois de Kant

Nota

  1. As coisas primeiras e mais bem conhecidas por nós são as coisas particulares que conhecemos empiricamente, por meio da experiência sensorial: sabemos que está nevoeiro, por exemplo. As coisas primeiras e mais bem conhecidas em si são ideias gerais ou universais que não conhecemos desse mesmo modo, mas que são supostamente acessíveis à reflexão, como a ideia de substância — o substrato que tem vários atributos, mas que não é em si um atributo. Por exemplo, o que realmente vemos são pessoas particulares, com vários atributos, e isso pertence ao primeiro tipo; mas pela reflexão consideramos que há algo nas pessoas que é o substrato de todos esses atributos; e esse substrato é a substância. Eis outro exemplo: vemos casos particulares de fenómenos causais, como os ramos de uma árvore que se agitam ao vento; mas a própria ideia de causalidade não é algo que se veja, mas sim algo que apreendemos por reflexão. N. do T.↩︎
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