A oração é, ao que parece, uma característica proeminente de todas as religiões. As pessoas quando rezam visam contato ou comunicação com entidades ou pessoas especiais, tais como Deus, deuses, antepassados, ou ainda seres humanos exemplares, os quais possuiriam, segundo se crê, algum estatuto especial.
As pessoas rezam por diversas razões. Algumas vezes para agradecer, outras para oferecer louvores e adoração, outras vezes para pedir perdão, outras ainda para fazer pedidos. O foco deste artigo é a oração peticionária, na qual o orante pede alguma coisa. Historicamente, os enigmas filosóficos relacionados à oração peticionária, que receberam maior atenção, têm surgido em conexão com o monoteísmo tradicional, compartilhado pelo Judaísmo, Cristianismo e Islamismo. De acordo com o monoteísmo tradicional, Deus conhece tudo o que pode ser conhecido, é perfeitamente bom, impassível (não pode ser afetado por causas externas), imutável e livre. Deus também é capaz de fazer qualquer coisa compatível com a posse dessas qualidades que acabamos de enumerar. Neste artigo trataremos dos principais enigmas filosóficos que surgem ligados à ideia de oferecer orações peticionárias a Deus — compreendido conforme as linhas acima descritas — juntamente com as tentativas mais influentes de resolvê-los.
O que significa dizer que uma petição a Deus foi atendida? Orações peticionárias, com frequência, fazem muita diferença, de forma positiva ou negativa, para aqueles que as oferecem (cf. Phillips, 1981; Brummer, 2008), contudo, a questão filosoficamente mais interessante é se essas orações fazem ou não alguma diferença para Deus. E a questão não é simplesmente se Deus ouve ou percebe tais orações — afinal, assumimos que Deus sabe tudo o que ocorre no mundo e que é perfeitamente bom. Normalmente, quando filósofos discutem a eficácia da oração peticionária, eles questionam se essas orações podem alguma vez mover Deus a agir. O que significaria afirmar isso?
Em geral, os filósofos assumem que uma oração foi atendida, se e somente se, Deus realiza o que foi solicitado, ao menos em parte, por causa da oração, de modo que, se a oração não tivesse sido feita, o solicitado poderia não ter ocorrido. Assim, se você ora a Deus pedindo para que chova amanhã e, de fato, amanhã chover, isso por si só não é suficiente para dizermos que a oração por chuva foi atendida. Também deve ser o caso que Deus realmente ocasione a chuva, ao menos em parte, devido a oração. Se chovesse de qualquer modo, mesmo sem o oferecimento da oração, a prece pela chuva, ao que parece, não foi eficaz. Portanto, uma oração eficaz seria aquela que faz alguma diferença, influenciando Deus a agir. (Para aprofundar essa questão, consultar Flint 1998, capítulo 10, Davison 2017, capítulo 2, Pruss 2013, Johnson 2020 e Davison 2022, capítulo 3.)
Como mencionado anteriormente, teístas tradicionais creem que Deus é imutável (não pode mudar) e impassível (não pode ser afetado por algo externo). Essas ideias se relacionam, mas não são idênticas: se Deus é imutável, então Deus é impassível. Porém, do fato de ser impassível não segue que Deus é imutável: Deus poderia ser capaz de mudar, sem ser afetado por quaisquer fontes externas. Se Deus é ao mesmo tempo imutável e impassível, então, ao que parece, nenhuma oração peticionária seria eficaz.
Uma série de respostas estão abertas aos teístas tradicionais neste ponto. Alguns teístas argumentam que existem razões independentes para dizer que Deus não é imutável nem impassível. Por exemplo, muitos têm afirmado que Deus é compassivo e misericordioso. Contudo, ser compassivo e misericordioso, ao que parece, requer sensibilidade às ações dos outros. Assim, no fim das contas, talvez não devêssemos dizer que Deus é imutável ou impassível (veja-se a entrada “God And Other Ultimates”).
Uma resposta diferente ao presente enigma envolve a caracterização dos conceitos de imutabilidade e impassibilidade divina, de um modo que se apliquem a Deus sem excluir a eficácia das orações peticionárias. Este é, por si só, um interessante projeto filosófico, mas suas perspectivas de sucesso ultrapassam o âmbito deste artigo (para aprofundar o tema, veja-se as discussões em Creel 1985 e os artigos “God And Other Ultimates” e “Immutability”).
Finalmente, uma terceira resposta envolveria afirmar que, nos casos em que a oração pareceu eficaz, Deus não estaria realmente respondendo à oração, mas, ao invés disso, realizando os eventos como parte de um plano providencial, um plano que inclui simultaneamente a oração e a aparente resposta à ela. Tal posição é sugerida pela seguinte anotação de Santo Tomás de Aquino: “Não oramos para mudar a disposição divina, mas para adquirir, através da oração peticionária, aquilo que Deus dispôs para ser adquirido pela oração” (Citado e discutido de forma pormenorizada em Stump 1979). No entanto, dada a maneira como caracterizamos acima a oração eficaz, esta abordagem parece negar que as orações peticionárias sejam eficazes, portanto, não resolve o problema em questão.
Um outro enigma relacionado a eficácia da oração peticionária surge em conexão com a onisciência divina, a ideia de que Deus conhece tudo o que pode ser conhecido. Se Deus já conhece o futuro, por exemplo, como pode uma oração peticionária fazer alguma diferença? No fim das contas, o futuro é somente o conjunto das coisas que acontecerão. Se Deus conhece o futuro em todos os seus detalhes, então, ao que parece, não há espaço para que as orações peticionárias sejam efetivas: o pedido requerido na oração ou é algo que Deus sabe que será realizado ou é algo que ele sabe que não será realizado; aparentemente, nos dois casos, a oração não faz nenhuma diferença. Como muitas outras questões em teologia, este enigma levanta um problema interessante sobre os limites do conhecimento de Deus. É possível que alguém, incluindo Deus, conheça o futuro em todos os seus detalhes? Filósofos discordam fortemente sobre este assunto. Abaixo iremos explorar brevemente três respostas possíveis para esta questão. (Mais sobre este assunto pode ser visto em Borland 2006, Recursos na Internet) e também nos verbetes “Omniscience” e “Prophecy”).
Primeiro, de acordo com a visão conhecida como “teísmo aberto”, Deus não pode conhecer aquelas partes do futuro que ainda estão por determinar, tais como as futuras ações livres dos seres humanos, ou porque ainda não existem verdades para serem conhecidas ou porque não existem maneiras para que alguém, incluindo Deus, as conheça (cf. Hasker 1989, Rissler 2006, o artigo “Process Theism”, Recursos na Internet). Isto não significa que Deus não seja onisciente, pois Deus ainda sabe tudo aquilo que pode ser conhecido (e é isso que significa ser onisciente, de acordo com os teístas abertos). Portanto, os teístas abertos têm uma maneira de solucionar o enigma da oração peticionária envolvendo onisciência em relação ao futuro: se nossas orações são livres, ou se a decisão de Deus ao atendê-las ou não atendê-las é livre (ou ambas), então tais coisas não podem ser parte de um futuro determinado e Deus não pode saber sobre elas com antecedência. Porém, o teísmo aberto é controverso na medida em que, dentre outras coisas (cf. Rissler 2006), parece negar algo que tradicionalmente os teístas têm afirmado, a saber, que Deus conhece o futuro em todos os seus pormenores.
Segundo, existe algo conhecido como visão do “conhecimento médio”. Essa posição sustenta que Deus conhece o futuro em todos os seus detalhes como resultado de conhecer duas coisas: 1) o que tudo e todos podem fazer em qualquer situação possível; 2) quais situações serão efetivamente instanciadas por tudo e todos (cf. Flint 1998). De acordo com essa visão, Deus conhece o futuro de forma pormenorizada, mas aquilo que ele sabe sobre as futuras ações livres dos seres humanos, depende das escolhas destes — e isto é algo que compete aos seres humanos em questão e não a Deus. Deste modo, mesmo que Deus saiba o que você fará no futuro, isto ainda dependerá de você. Na verdade, quando se faz uma escolha livre, tem-se a capacidade de fazer algo tal que, se o fizesse, Deus sempre saberia algo diferente daquilo que de fato sabe. (Isto é frequentemente chamado de ter “poder contrafactual” em relação ao conhecimento de Deus (cf. Flint 1998)).
De acordo com os defensores do conhecimento médio, então, é possível que a oração peticionária faça alguma diferença, pois Deus pode considerar as orações que serão oferecidas no futuro, quando planeja como criar o mundo ao longo do tempo. O simples fato de que Deus sabe o futuro em todos os seus detalhes, não implica que o futuro esteja determinado. Assim, os proponentes do conhecimento médio têm uma maneira de solucionar o problema relativo à onisciência. Contudo, a teoria do conhecimento médio é muito controversa; críticos questionam se existem verdades sobre aquilo que tudo e todos poderiam fazer em cada situação e, mesmo se houvesse, como Deus poderia conhecer tais coisas (Consultar Zagzebski 2011 e o verbete “Prophecy”).
Defensores da visão chamada “eternidade atemporal”, sustentam que Deus conhece toda a história de uma só vez, de um ponto de vista completamente exterior ao tempo (cf. o verbete “Eternity”). Assim como os proponentes do conhecimento médio, os defensores da eternidade atemporal dirão que do fato de Deus conhecer o futuro não se segue que Deus o determine. Dirão também que o único ato de criação de Deus, provindo de fora do tempo, produz muitos efeitos no tempo, incluindo, talvez, respostas às orações que Deus prevê do ponto de vista da eternidade. Desta forma, os defensores da eternidade atemporal podem responder ao enigma relativo à onisciência. No entanto, assim como o teísmo aberto e a teoria do conhecimento médio, a ideia de que Deus é atemporalmente eterno também é controversa; citando um problema, se Deus pode prever, do ponto de vista da eternidade, o que as pessoas irão rezar no futuro, Deus também deve ser capaz de prever o que ele mesmo fará (se alguma coisa) nesse mesmo futuro, por isso é difícil perceber como tal conhecimento poderia informar as escolhas divinas (veja-se Hasker 1989, Flint 1998, Pruss 2007, Hunt 2009, e Zagzebski 2011).
Vale a pena notar, nesta seção, a visão conhecida como “determinismo teológico”, segundo a qual Deus determina cada detalhe de todas as coisas e, portanto, conhece o passado, o presente e o futuro devido a isso. Ainda que o determinismo teológico levante outras questões relacionadas à responsabilidade das criaturas e ao problema do mal, a visão certamente explica como Deus poderia saber das orações futuras de um modo que permite a ele respondê-las. (Para aprofundar essas questões ver Hasker 1989, Timpe e Speak 2016, White 2019 e Furlong 2019).
Também vale ressaltar, ainda nesta seção, a argumentação de alguns filósofos, segundo a qual, se Deus existir, não fará sentido somente a oração pelo futuro, mas também a oração pelo passado. Tais orações serão eficazes, a depender da extensão do conhecimento divino. Por exemplo, dada a forma como descrevemos a oração peticionária eficaz, pode ser possível que uma oração para que algo tenha ocorrido ontem seja eficaz, desde que a coisa em questão de fato tenha acontecido ontem. Isto porque Deus poderia saber que eu ofereceria a oração no futuro e poderia levar isso em conta, contanto que ele conheça o futuro. Assim, defensores do conhecimento médio e da eternidade atemporal podem dizer que orações pelo passado podem ser eficazes (porém, teístas abertos, ao que parece, não podem dizer isso: para aprofundar essa questão cf. Timpe 2005).
Tradicionalmente os teístas têm reconhecido vários limites às ações de Deus. Por exemplo, é comum sustentar que a onipotência divina não implica que Deus possa fazer coisas impossíveis, como criar pedras tão pesadas que ele mesmo não consiga carregar. Também é comum insistir que Deus não pode fazer aquilo que é intrinsecamente mau, uma vez que Deus é moralmente perfeito. (Para uma discussão sobre orações peticionárias em prol de coisas más, cf. Smilansky 2012). Sendo que Deus é providente, pode-se também suspeitar que Deus não atenderia as orações que interferem nos planos providenciais que ele tem para o mundo. Dentro desses limites, é possível questionar se entre as razões de Deus existiria espaço suficiente para que as orações peticionárias façam alguma diferença, e que tipos de razões tais orações poderiam fornecer à Deus.
Alguns têm argumentado que a perfeição moral de Deus implica que as orações peticionárias não façam diferença, pois Deus fará o que é melhor para todos, independente do oferecimento ou não oferecimento de tais orações. Se as coisas forem assim, pode ser o caso que orações peticionárias nunca sejam respondidas no sentido descrito acima.
Em resposta a esse problema, vários autores sugeriram que, em alguns casos, poderia ser melhor para Deus realizar certas coisas em resposta às orações peticionárias do que realizá-las independentemente de tais pedidos. Para explorar essa ideia, será útil traçarmos uma distinção. Algumas vezes as pessoas rezam por si mesmas e outras vezes elas rezam pelos outros. Vamos chamar o primeiro tipo de oração de “auto-dirigida” e o segundo tipo de oração de “dirigida-aos-outros”.
Primeiro, consideremos as orações auto-dirigidas. Eleonore Stump argumenta que, em alguns casos, Deus espera que peçamos algo antes de nos conceder, a fim de não nos estragar ou sobrecarregar. Poderíamos ser estragados por Deus se ele respondesse todas as nossas preces automaticamente e poderíamos ser sobrecarregados se ele nos providenciasse todo o bem, sem esperar que peçamos primeiro (cf. Stump 1979). De forma similar, Michael Murray e Kurt Meyers argumentam que ao tornar a provisão de certas coisas dependente da oração peticionária, Deus nos ajuda a evitar a idolatria, a qual se caracteriza por um senso de completa autossuficiência que erra ao não reconhecer Deus como fonte de todos os bens. Dizem também que a exigência de oração peticionária em alguns casos nos ajuda a aprender sobre a vontade divina, na medida em que reconhecemos padrões nas orações respondidas e não respondidas (cf. Murray e Meyers 1994; cf. também a Seção 5, abaixo).
Segundo, considere as orações dirigidas-aos-outros. Murray e Meyers argumentam que se Deus faz a provisão de certas coisas aos outros depender das nossas orações, é porque isto pode auxiliar a construir interdependência e comunhão (cf. Murray e Meyers 1994). Por outro lado, Richard Swinburne, Daniel e Frances Howard-Snyder, sustentam que ao exigir orações peticionárias em alguns casos, Deus nos dá mais responsabilidade pelo bem-estar de nós próprios e dos outros do que se não exigisse tais orações (cf. Swinburne 1998, Howard-Snider 2011). Críticos dessa abordagem questionam se isso envolve Deus utilizar as pessoas como meios para um fim (cf. Basinger 1983) ou se nossa responsabilidade pelos outros realmente se amplia em tais casos (cf. Davison 2017, capítulo 7).
Por fim, alguns filósofos (por exemplo, Basinger 2004) observam que existem várias maneiras de compreender as obrigações de Deus para com as pessoas criadas e somente algumas sugerem que a bondade divina ficaria comprometida se Deus negasse as coisas devido a orações peticionárias não oferecidas. Portanto, há uma série de respostas que os teístas podem dar ao enigma da oração peticionária decorrente da perfeição moral divina. (Para aprofundar essa questão consultar: Davison 2017, capítulo 6 e Davison 2022, capítulo 4).
Seria possível saber ou crer razoavelmente que Deus respondeu à determinada oração peticionária? Como era de se esperar, filósofos discordam sobre essa questão. Alguns teístas pensam que, dado aquilo que sabemos, para qualquer ocorrência particular de um evento, Deus poderia ter razões independentes para realizá-lo, de modo que não podemos saber se Deus o causou ou não causou devido a uma oração, ao invés de o realizar por quaisquer outros motivos (para mais sobre esse argumento consultar Basinger 2004, Davison 2017, capítulo 4, Choi 2016 e Davison 2022, capítulo 4). Essa linha de raciocínio é interessante, de forma especial, à luz da recente popularidade do assim chamado teísmo cético, o qual responde ao problema do mal declarando que nunca podemos saber exatamente como determinados eventos estão conectados uns com os outros e com boas ou más consequências, algumas das quais podem estar além de nossa compreensão (cf. Mcbrayer 2010, Recursos na Internet). Outros argumentam que, se as pessoas estiverem justificadas em acreditar, em termos gerais, que Deus algumas vezes responde às orações, então é possível crer razoavelmente que uma oração peticionária específica foi atendida, quando se sabe que aquilo que foi pedido se concretizou (cf. Murray e Meyers 1994, Murray 2004 e Choi 2016).
Várias pessoas tentaram realizar estudos estatísticos para determinar se a oração peticionária é ou não eficaz. Tais estudos buscam mensurar as diferenças entre dois grupos de pessoas, nos quais um dos grupos é objeto de oração peticionária e o outro não. Embora alguns estudos anteriores sugeriram uma correlação positiva entre a recuperação do paciente e a oração peticionária (cf. Byrd 1998, Harris, et al. 1999 e Leibovici, 2001), estudos mais recentes sugeriram que o oferecimento de oração peticionária (e o conhecimento [por parte do paciente] de que tais orações eram oferecidas) não está positivamente correlacionado com a recuperação (cf. Benson, et al. 2006).
Alguns têm sugerido, no entanto, que este tipo de estudo é falho desde o início (cf. Brümmer 2008, Davison 2017, capítulo 5). É difícil assegurar que algum grupo de pessoas não seja objeto de oração peticionária, por exemplo, uma vez que é impossível impedir as pessoas de orarem por aqueles que conhecem. Ademais, assume-se normalmente que Deus é uma pessoa livre, não uma força natural que age automaticamente em todos os casos similares, portanto, não podemos assumir que Deus irá simplesmente ignorar aquelas pessoas pelas quais orações peticionárias não foram oferecidas. Isso significa que mesmo que um estudo mostrasse alguma diferença estatisticamente significativa entre os dois grupos de pessoas, não poderíamos ter certeza de que tais diferenças se deviam apenas ao oferecimento de orações peticionárias, em oposição a algum outro fator ou fatores.
The Stanford Encyclopedia of Philosophy, ed. Edward N. Zalta.