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Crítica
3 de Julho de 2011   Estética

A evolução das narrativas

José Costa Junior
On the Origin of Stories: Evolution, Cognition, and Fiction
de Brian Boyd
Cambridge, MA: Harvard University Press, 2009, 560 pp.

Explicações naturalistas acerca de diversos fenômenos culturais são abundantes atualmente. Explica-se quase tudo a partir da evolução da nossa espécie, desde o nosso gosto estético, até a nossa repulsa por alguns odores. Há quem acuse tal tendência de ser um exercício reducionista, que torna simplório aquilo que não o é.

Contudo, este não parece ser o caso do livro de Brian Boyd, um crítico literário especializado em Nabokov, que tem publicado alguns textos sobre estética evolucionista. Com o objetivo de explicar nossa predileção pelas “vozes viciadoras” da ficção, o autor faz um trocadilho com o título do livro no qual Darwin expõe sua teoria acerca do surgimento e da evolução das espécies. Trata-se de uma tentativa de explicar a ficção em termos naturalistas, defendendo Boyd que a arte, incluindo a ficção, é uma adaptação humana única, cujo principal papel é “melhorar a cognição humana, a cooperação e a criatividade”.

Assim, reunidos ao redor de uma fogueira, há milhares de anos, no tempo livre entre as tarefas do dia e a hora de dormir, os homens primitivos já contavam histórias. A partir delas, buscavam compreender a realidade, além de trazer sentido e coesão social para a comunidade, obtendo um ganho cognitivo a partir de experiências ficcionais. Talvez tenha sido para isso que a ficção foi desenvolvida, para compreender e aprimorar a experiência humana, de um modo que chame a atenção e seja agradável. Esse cenário “naturalista” aponta para a natureza próxima entre as diversas formas de narrativas ficcionais: aquilo que era contado ao redor da fogueira pelo homem primitivo tem um processo de criação e exposição próximo das criações de William Shakespeare e do cinema hollywoodiano. Há algo na ficção que nos agrada e talvez seja até necessário para complementação da vida. Algo muito profundo tem de haver na ficção para ficarmos sempre seduzidos com a voz viciadora e poética que narra histórias.

Boyd afirma que, “considerados estritamente, enquanto objetos que proporcionam alguma forma de experiência estética, as obras de arte não acontecem no mundo mas antes no teatro da mente humana e a forma como se dá a distinção entre o faz-de-conta e realidade é uma questão complexa e antiga”.

O envolvimento mental com os mundos imaginativos da ficção é um universal cultural, uma forma de produção cultural existente em todos os agrupamentos humanos. Os seres humanos consideram que histórias são intelectualmente e emocionalmente fascinantes, retirando dividendos da sua apreciação. Terá a nossa mente sido “projetada” para produzir e entender narrativas?

A capacidade para imaginar cenários e situações distantes da percepção direta pode ter sido uma característica adaptativa no passado natural do homem, onde a imaginação permite pensar em indícios indiretos, deduzir conseqüências, possibilitar simulações intelectuais que não são desgastantes, desenvolver estratégias para a guerra e manutenção de diversos traços humanos. A possibilidade de enfrentar o mundo não apenas a partir daquilo que é imediato, mas também a partir da criação de suposições e experimentações de cenários parece trazer vantagens, tanto cognitivas quanto adaptativas.

As ficções são desenvolvidas a partir de conjuntos de proposições, ligadas entre si, mas isoladas da verdade literal do mundo real. A verossimilhança é uma possibilidade nesse cenário, mas não uma obrigatoriedade.

Se apenas a descrição factual do mundo tivesse relevância na história humana, o problema filosófico da ficção não surgiria; dado que a ficção é uma constante na vida humana, há algo que liga a criação de histórias à natureza humana. Os seres humanos dedicam enormes quantidades de tempo e recursos na criação e experimentação de ficções, que ocupam um espaço relevante na vida humana. Onde há seres humanos, há ficção. Esta é um universal na espécie humana, assim como o estabelecimento de hierarquias sociais, a instituição do casamento, a religião e o tabu do incesto.

A tese de Boyd é que a arte funciona como um “acoplamento mental”, onde o homo sapiens tem a possibilidade de aperfeiçoar suas habilidades mentais e físicas. Se há algo que nos distingue do resto das espécies sobre o planeta, é que os humanos têm uma tendência para relatar o que lhe acontece, mesmo o que é fruto da sua imaginação. Este traço narrativo e contista seria uma vantagem adaptativa fruto da evolução: uma capacidade para chamar a atenção dos nossos ouvintes, de ordenar o mundo em categorias compreensíveis, de injetar sentido. Tudo isto é uma vantagem adaptativa que faz parte da nossa história natural.

Num cenário primitivo, e levando em consideração a relação entre o custo e o benefício, o processo de criação de uma história pode ser caro em termos de tempo e energia — mas intrinsecamente gratificante, devido a apelar a padrões e histórias sentimentais do nosso cérebro. A ficção contribuiria para modelar e remodelar a mente, promovendo um enfoque criativo para a solução de problemas, além de promover o estatuto social do narrador. A audiência, entretanto, paga um preço em tempo, mas em troca ganha uma visão mais rica do mundo, da sociedade e da mentalidade de outros indivíduos.

A teoria naturalista de Boyd acerca da origem, manutenção e usos da ficção não é uma proposta reducionista em relação às diversas propostas filosóficas, literárias ou até mesmo científicas de explicação da ficção. O que o autor faz é desenvolver uma explicação plausível da ficção, levando em consideração o passado natural e evolutivo de nossa espécie, documentado e cientificamente provado.

Thomas Nagel defende em A Última Palavra que há hoje um darwinismo excessivo, sendo caracterizando-se pelo “grotesco uso excessivo da biologia evolucionista para explicar tudo o que respeita à vida humana, incluindo tudo o que respeita à mente humana”. A crítica de Nagel diz respeito ao uso excessivo, e não a qualquer explicação darwinista. Não nos parece uma prática condenável desenvolver teorias filosóficas levando a sério a teoria darwinista, uma vez que tão fecunda tem sido para a compreensão de tantos fenômenos. A questão é saber traçar a linha entre explicações darwinistas iluminantes, e explicações grotescas que nada explicam mas têm o ar de ciência. As explicações da ficção exploradas por Boyd são iluminantes, e estão longe de ser grotescas.

José Costa Junior

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