Eric Arthur Blair (1903–1950), mais conhecido pelo pseudônimo George Orwell, foi um ensaísta, jornalista e romancista britânico. Orwell é bastante famoso por suas obras de ficção distópica Animal Farm1 e 1984,2 muito embora grande parte de seus outros livros e ensaios tenha também alcançado popularidade. Em seu corpus literário se encontra uma das mais incisivas e amplamente reconhecidas críticas ao totalitarismo.
Embora não tenha tido formação acadêmica em filosofia, Orwell dá grande atenção a tópicos filosóficos e questões de filosofia política, epistemologia, filosofia da linguagem, ética e estética em seus escritos. Dentre as mais notáveis contribuições filosóficas de Orwell estão suas discussões sobre o nacionalismo, o totalitarismo, o socialismo, a propaganda, a linguagem, o status de classe, o trabalho, a pobreza, o imperialismo, a verdade, a história e a literatura.
Os escritos de Orwell refletem a sua jornada intelectual. Seus primeiros escritos têm como foco a pobreza, o trabalho, o dinheiro, dentre outros temas. Orwell examina a pobreza e o trabalho não apenas da perspectiva econômica, mas também de uma perspectiva social, política e existencial, rejeitando abordagens moralistas e individualistas da pobreza em favor de explicações sistemáticas. Ao fazê-lo, ele oferece as bases para a sua posterior defesa do socialismo.
As experiências de Orwell na década de 1930 — incluindo o relato das condições de vida dos pobres e da classe trabalhadora no norte da Inglaterra e a luta como soldado voluntário na guerra civil espanhola — ajudaram a cristalizar a sua perspectiva política e filosófica. Isso o levou a escrever em 1936 que “cada linha que tenho seriamente escrito desde 1936 tem sido, direta ou indiretamente, contra o totalitarismo e a favor do socialismo democrático” (“Why I Write”3).
Para Orwell o totalitarismo é uma ordem política que visa o poder e o controle. Muito da eficácia de Orwell ao escrever contra o totalitarismo se deve ao seu reconhecimento das dimensões epistêmica e linguística do totalitarismo. A fala de Winston Smith, o protagonista de 1984, é um bom exemplo: “Liberdade é liberdade de dizer que dois mais dois são quatro. Se isso é permitido, tudo o mais se segue”. Orwell usa aqui, como de costume, uma afirmação particular a fim de veicular uma mensagem mais ampla. A liberdade (um estado político) depende da capacidade de manter a crença verdadeira de que dois mais dois são quatro (um estado epistêmico) e a capacidade de comunicar essa verdade aos outros (via ato linguístico).
Orwell também argumenta que o poder político é dependente do pensamento e da linguagem. É por isso que o totalitarismo, que procura o poder pleno, requer o controle sobre a linguagem e a mente. Nesse sentido, os escritos de Orwell podem ser vistos como filosoficamente a frente de seu tempo, uma vez que reúne filosofia política, epistemologia e filosofia da linguagem.
Eric Arthur Blair nasceu em 25 de junho de 1903, na Índia. O seu pai, homem inglês, trabalhava como membro dos serviços especializados britânicos na Índia colonial, supervisionando a produção local de ópio voltada à exportação para a China. A mãe de Blair, de ascendência inglesa e francesa, antes que ele completasse um ano, retornou à Inglaterra levando junto de si ele e sua irmã mais velha. Até os oito anos de idade ele pouco viu seu pai.
Blair descreveu sua família como parte da “baixa classe média alta” da Inglaterra. Blair tinha um alto grau de consciência de classe, o que se tornou um tema comum em sua obra e uma preocupação central em seu ensaio autobiográfico, (ironicamente intitulado) “Such, Such Were Joys”,4 sobre o período em que frequentou a escola preparatória St. Cyprian, dos oito aos treze, com bolsa de estudos por mérito. Após se formar no St. Cyprian, Orwell frequentou, dos treze aos dezoito, a prestigiosa escola pública inglesa, Eton, também com bolsa de estudo por mérito.
Após se formar na Eton, onde não foi um estudante particularmente bem sucedido, Blair decidiu seguir os passos de seu pai e se juntar aos serviços especializados do império britânico em vez de seguir o ensino superior. Blair foi assentado na Birmânia (atualmente Myanmar), local onde nasceu sua mãe. Passou cinco infelizes anos na polícia imperial da Birmânia (1922–1927) antes de deixar a posição e retornar à Inglaterra na esperança de se tornar um escritor.
Parcialmente por necessidade e parcialmente por desejo, Blair passou vários anos vivendo na pobreza, ou muito próximo dela, tanto em Paris como em Londres. As suas experiências formaram a base de seu primeiro livro, Down and Out in Paris and London,5 que fora publicado em 1933. Blair publicou o livro sob o pseudônimo George Orwell, alcunha pela qual viria a publicar seus escritos pelo resto vida.
A escrita de Orwell é bastante inspirada por sua experiência pessoal. Os serviços prestados ao império britânico na Birmânia forneceram a base para o seu segundo livro, Burmese Days,6 publicado inicialmente em 1934, e para os ensaios — frequentemente editados em antologias — “A Hanging”7 e “Shooting an Elephant”,8 publicados inicialmente em 1931 e 1936, respectivamente.
Em seu terceiro livro, A Clergyman’s Daughter,9 de 1935, ele se valeu de suas experiências como apanhador de lúpulo e como professor. Em seu próximo romance, Keep the Aspidistra Flying,10 publicado em 1936, o personagem principal abandonava um emprego de classe média para se torna um vendedor de livros e tentar a sorte como escritor. No fim do romance o protagonista se casa e retorna a seu antigo emprego de classe média. Orwell escreveu esse livro enquanto trabalhava como vendedor de livros e estava prestes a se casar.
Nos anos de 1936-37 vários eventos importantes influenciariam a escrita de Orwell para o resto de sua vida. O editor de Orwell, o socialista Victor Gollancz, sugeriu que ele passasse algum tempo no norte industrial da Inglaterra a fim de que adquirisse experiência com a escrita jornalística. E Orwell o fez no inverno de 1936. Essas experiências formaram a base do seu livro de 1937, The Road to Wigan Pier.11 A primeira metade do Wigan Pier relatava as parcas condições de trabalho e a pobreza que Orwell testemunhara. A segunda metade focava-se na necessidade do socialismo e nas razões pelas quais Orwell pensava que a intelligentsia esquerdista britânica tinha falhado em convencer os pobres e a classe operária da necessidade do socialismo. Gollancz publicou Wigan Pier como parte do seu Clube do Livro da Esquerda, o que lhe deu mais visibilidade e melhor vendagem do que a qualquer um de seus livros anteriores.
Em junho de 1936 Orwell se casou com Eileen O’Shaughnessy, graduada em língua inglesa pela Universidade de Oxford e que já tinha trabalhado em vários empregos, incluindo professora e secretária. Não demorou para que Orwell se voluntariasse como soldado para lutar ao lado da esquerda, junto dos Republicanos Espanhóis, contra Francisco Franco e a direita nacionalista na guerra civil espanhola. Mais tarde sua esposa se juntou a ele na Espanha. As experiências de Orwell na Espanha marcaram ainda mais a sua guinada a uma escrita abertamente política. Ele viu em primeira mão a luta interna entre várias facções de esquerda opostas a Franco. Também testemunhou o controle que os comunistas soviéticos procuravam exercer sobre a guerra e, talvez ainda mais importante, as narrativas contadas sobre a guerra.
Orwell lutou ao lado da milícia do POUM (Partido Obrero de Unificación Marxista), que foi mais tarde difamada pela propaganda soviética. Os soviéticos fizeram várias acusações contra a milícia, incluindo a de que seus membros eram trotskistas e espiões do outro lado. Como consequência, a Espanha tornara-se um lugar inseguro para ele e Eileen. Ele fugiu de trem da Espanha para a França no verão de 1937. Mais tarde ele escreveu sobre essas experiências na guerra civil espanhola em Homage to Catalonia,12 publicado em 1938.
Enquanto que o Wigan Pier tinha sinalizado uma guinada a um foco permanente na política e nas ideias políticas, o Homenagem à Catalunha, similarmente, sinalizava a guinada a um foco permanente na epistemologia e na linguagem. O tempo que Orwell passou na Espanha o ajudou a entender como a linguagem molda as crenças, e como as crenças, por sua vez, moldam os contornos do poder. O Homenagem à Catalunha não marca apenas uma guinada epistêmica e linguística no pensamento de Orwell; marca também um desenvolvimento significativo em sua perspectiva sobre a relação complexa entre linguagem, pensamento e poder.
As experiências de Orwell na Espanha também consolidaram o seu anticomunismo e o seu papel como crítico esquerdista da própria esquerda. Após um período enfermo, ao voltar da Espanha, devido à fraqueza de seus pulmões depois de ser atingido por um tiro na garganta durante confronto, Orwell engrenou na produção literária, publicando Coming Up for Air13 em 1939, Dentro da Baleia e Outros Ensaios em 1940, e o longo ensaio sobre o socialismo britânico, “The Lion and the Unicorn: Socialism and the English Genius”,14 em 1941, além de muitos outros ensaios e resenhas.
Orwell gostaria de ter servido no exército durante a Segunda Guerra, mas sua saúde frágil não o permitiu. Em vez disso, entre 1941 e 1943, trabalhou para a British Broadcasting Company (BBC). O seu trabalho era, em teoria, ajudar nos esforços de guerra britânicos. Orwell fora incumbido de criar e entregar conteúdo radiofônico aos ouvintes do subcontinente indiano na esperança de criar apoio às forças britânicas e aos Aliados. Por conta da relativamente pequena audiência, Orwell acabou por considerar o emprego uma perda de tempo. Não obstante, as suas experiências com a burocracia e a censura na BBC serviriam mais tarde como uma das inspirações para o “Ministério da Verdade”, que desempenhou um papel proeminente na trama de 1984 (Sheldon 1991, 380–1).
Os últimos anos de Orwell foram de altos e baixos. Após deixar a BBC foi contratado como editor literário da revista socialdemocrata, Tribune. Como parte de suas obrigações ele escrevia uma coluna regular intitulada “As I Please”. Ele e Eileen, ela trabalhando para a BBC, adotaram em 1944 um bebê chamado Richard. Um pouco antes de terem adotado Richard, Orwell tinha terminado aquela que foi sua obra divisora, A Revolução dos Bichos. Inicialmente ele teve problemas em encontrar alguém que a publicasse, devido à sua mensagem anticomunista; e também devido ao desejo dos editores em não comprometer os esforços de guerra britânicos, uma vez que, àquela altura, o Reino Unido era aliado da URSS contra a Alemanha nazista. O livro foi enfim publicado em agosto de 1945, poucos meses depois de Eileen, aos trinta e nove anos, ter morrido inesperadamente durante uma operação.
A Revolução dos Bichos foi um sucesso comercial tanto nos Estados Unidos quanto no Reino Unido. Isso rendeu a Orwell fortuna e fama literária. Ele se mudou, com sua irmã Avril e Richard, para a ilha escocesa de Jura, onde esperava conseguir escrever com menos interrupções e oferecer um bom meio para que Richard crescesse. Durante esse período, vivendo sem eletricidade na costa do atlântico norte, a saúde de Orwell continuou a piorar. Ele foi diagnosticado com tuberculose.
Orwell apressou-se para terminar aquele que seria o seu último livro, 1984. Nas palavras de um de seus biógrafos, Michael Sheldon, 1984 é um livro no qual “quase todos os elementos da vida de Orwell estão de alguma forma representados”. Publicado em 1949, 1984 foi em muitos sentidos o ápice da obra da vida de Orwell: lida com todos os grandes temas de seus escritos — pobreza, classe social, guerra, totalitarismo, nacionalismo, censura, verdade, história, propaganda, linguagem, literatura, dentre outros.
Orwell morreu menos de um ano após a publicação de 1984. Pouco antes de sua morte, ele tinha se casado com Sonia Brownell, que tinha trabalhado para a revista literária Horizons. Brownell, que depois veio a se chamar Sonia Brownell Orwell, tornou-se uma das executoras literárias de Orwell. Seus esforços para promover a obra do finado marido incluíram a criação do Arquivo George Orwell no University College London e a co-editoria, com Ian Angus, de uma coleção, em quatro tomos, dos ensaios, dos escritos jornalísticos e das cartas de Orwell, publicada em 1968. A publicação dessa coleção contribuiu para o aumento do interesse em Orwell e sua obra, que, mesmo setenta anos após sua morte, permanece.
A afirmação de Orwell de que “cada linha seriamente escrita por mim desde 1936 tem sido direta ou indiretamente contra o totalitarismo e a favor do socialismo democrático”, divide sua obra em duas partes: pré–1936 e 1936 e após.
O segundo período (1936 e após) é caracterizado por suas opiniões fortes sobre política e o foco nas interconexões entre linguagem, pensamento e poder. O primeiro período de Orwell (pré–1936) dá ênfase em dois conjuntos de temas inter-relacionados: 1) pobreza, dinheiro, trabalho e status social, e 2) imperialismo e seus custos éticos.
Orwell escrevia com frequência sobre a pobreza. É um tópico central em seus livros Na Pior em Paris e Londres e Wigan Pier, e de seus ensaios, incluindo “The Spike”15 e “How the Poor Die”.16 Ao escrever sobre a pobreza, Orwell não adota uma perspectiva objetiva “a parir de lugar nenhum”: muito pelo contrário, ele escreve como um membro da classe média para leitores das classes média e alta. Ao fazê-lo ele procura corrigir equívocos comuns sobre a pobreza cometidos tanto pela classe média quanta pela alta. Essas correções dizem respeito tanto à fenomenologia da pobreza quando suas causas.
O panorama que ele oferece da pobreza é menos dramático, embora mais entorpecente, do que sua audiência inicialmente pudesse imaginar: embora não esmagado pela pobreza, o espírito se atrofia sob ela.
A fenomenologia da pobreza, segundo Orwell, é exemplificada na seguinte passagem de Na Pior:
É muitíssimo curioso o primeiro contato com a pobreza. Você pensou tanto sobre ela — é uma coisa que você temeu a vida inteira, uma coisa que sabia que ia acontecer com você mais cedo ou mais tarde, e ainda assim é tudo tão completa e prosaicamente diferente. Você achava que iria ser bem simples; é extraordinariamente complicado. Você achava que ia ser terrível, é apenas imundo e chato. A primeira coisa que você descobre é a baixeza peculiar da pobreza, as mudanças que ela impõe, a complicada mesquinhez, o desnudamento de si mesmo. (Na Pior em Paris e Londres, p. 24).
Essa explicação reflete as próprias experiências de Orwell, que assume a perspectiva de alguém que encontra a pobreza apenas mais adiante na vida, e não a perspectiva de alguém que já nasceu na pobreza. Pelos menos para aqueles que “caíram” na pobreza, Orwell consegue ver um lado bom nela: o medo da pobreza numa sociedade capitalista hierárquica é talvez pior do que a pobreza em si. Uma vez que você percebe que consegue sobreviver à pobreza (e Orwell parecia pensar que a maioria das pessoas de classe média na Inglaterra que empobreceram conseguia), há um “sentimento de alívio, quase de prazer, de você saber que está, por fim, genuinamente na pior” (Na Pior em Paris e Londres, p. 28). Esse lado bom, porém, parece se limitar àqueles que ficam pobres depois de terem recebido alguma educação. Orwell conclui que aqueles que sempre estiveram na pior são aqueles que merecem piedade, pois uma pessoa dessas “encara a pobreza com a cabeça impotente e vazia” (p. 205). Essa última afirmação invoca suposições controversas na filosofia da mente, o que indica que Orwell nunca foi capaz de superar certos vieses de classe provindos de sua própria educação. As perspectivas de Orwell sobre a classe operária e os pobres têm sido criticadas por alguns autores, dentre eles Raymond Williams (1971) e Beatrix Campbell (1984).
Grande parte da discussão de Orwell sobre a pobreza visava à humanização das pessoas pobres e à erradicação dos equívocos acerca das pessoas pobres. Orwell não via diferença de caráter inerente entre ricos e pobres. A diferença está nas circunstâncias, não em sua bondade moral. Ele identifica nos ingleses “um forte sentimento de pecado a respeito da pobreza” (Na Pior, p. 227). Através da narrativa pessoal Orwell procura minar esse sentimento, concluindo, em vez disso que “a massa dos ricos e dos pobres diferenciam-se por suas rendas e nada mais, e o milionário típico é apenas o lavador de pratos típico com roupa nova” (p. 138).
Se a pobreza é erroneamente associada ao vício, também o dinheiro é erroneamente associado à virtude, nota Orwell. Esse tema é tratado mais diretamente no romance de 1936, A Flor da Inglaterra, que destaca o papel central do dinheiro na vida inglesa através dos fracassos do protagonista em tentar viver uma vida plena que não gire em torno do dinheiro. Orwell tem o cuidado de notar que a importância do dinheiro não é apenas econômica, mas também social. Em Wigan Pier Orwell nota que a estratificação de classes na Inglaterra é uma “estratificação de dinheiro”, mas que é também um “sistema de castas obscuro” “não inteiramente explicável em termos de dinheiro” (p. 122). Desse modo, tanto o dinheiro quanto a cultura parecem desempenhar um papel na abordagem da estratificação social inglesa feita por Orwell.
A perspectiva de Orwell sobre a importância social do dinheiro ajudou a moldar as suas opiniões sobre o socialismo. Por exemplo, em “O Leão e o Unicórnio” Orwell argumenta a favor de uma sociedade socialista na qual a disparidade de renda fosse limitada a tal ponto que “um homem que receba 3 libras por semana e outro que ganhe 1,500 libras por ano possam se sentir semelhantes, algo que não acontece com o Duque de Westminster e os mendigos que dormem nos bancos das praças”.
Orwell estava atento aos vários modos pelos quais o dinheiro impacta o trabalho e vice-versa. Por exemplo, em A Flor da Inglaterra o protagonista, Gordon Comstock, deixa seu emprego a fim de ter tempo para escrever apenas para descobrir que o desconforto de viver com pouco dinheiro tinha consumido a sua motivação e capacidade de escrever. Isso está a par com a ideia de Orwell de que o trabalho criativo, tal como fazer arte ou escrever contos, requer certo nível de conforto financeiro. Orwell expressa essa perspectiva em Wigan Pier ao escrever que “Você não pode controlar o espírito de esperança, necessário à criação, com a nuvem negra do desemprego pairando sobre você” (p. 82).
Orwell vê essa incapacidade de se fazer trabalho criativo ou qualquer outro trabalho significativo como uma consequência danosa da pobreza. Isso porque Orwell vê a dedicação ao trabalho satisfatório como parte significativa da experiência humana. Ele argumenta que os seres humanos precisam e buscam por trabalho (Wigan Pier, 197), e vai ainda mais longe ao dizer que tirar a chance de trabalhar é tirar a chance de viver (Wigan Pier, 198). Mas isso porque Orwell vê o trabalho como um meio pelo qual podemos significativamente exercitar nossos corpos e nossas mentes. Para ele o trabalho é valoroso quando contribui para o florescimento humano.
Mas isso não significa que Orwell pense que todo trabalho tenha tal valor. Ele é bastante crítico a várias circunstâncias sociais que obrigam as pessoas a trabalharem naquilo que acham degradante, servil ou entediante. Ele mostra particular desgosto por condições de trabalho que combinam indesejabilidade com ineficiência ou exploração, como as condições dos subempregos nos restaurantes de Paris e dos mineiros de carvão no norte da Inglaterra. Orwell reconhece que os operários toleram tais condições por necessidade e desespero, muito embora essas condições de trabalho roubem dos trabalhadores vários aspectos de uma vida humana próspera.
Na época em que deixou a Birmânia, aos 24 anos, Orwell opusera-se fortemente ao imperialismo. As suas obras anti-imperialistas incluem o romance Dias na Birmânia, os ensaios “O abate de um elefante” e “Um enforcamento”, e o capítulo 9 de Wigan Pier, no qual ele escreveu, ao deixar sua posição na Polícia Imperial na Birmânia, “odeio tão amargamente o imperialismo ao qual servi que provavelmente não consigo me fazer claro” (Wigan Pier, p. 143).
Em harmonia à sua tendência de escrever a partir da experiência, Orwell — enquanto imperialista opressor e não como oprimido — deu atenção principalmente ao dano que vira o imperialismo causar. Uma crítica a Orwell poderia ser a de que ele não consegue dar conta do dano que o imperialismo causa ao oprimido; mas também poderíamos dar-lhe crédito por ter discutido os males do imperialismo de um modo que fizesse seus custos parecerem reais à sua audiência, que, pelo menos inicialmente, era formada em grande parte por beneficiários do imperialismo britânico.
Ao escrever sobre a experiência da opressão imperialista da perspectiva do opressor, Orwell retorna amiúde a vários temas.
O primeiro é o papel da experiência. Orwell argumenta que alguém só pode vir a detestar de fato o imperialismo sendo parte do imperialismo (Wigan Pier p. 144). Ainda que se possa duvidar da veracidade dessa afirmação, podemos concordar com Orwell que a força emocional de se experienciar o imperialismo em primeira mão pode oferecer uma compreensão particularmente vívida da “injustiça tirânica” do imperialismo, pois, como dito por Orwell, a pessoa “é parte do maquinário efetivo do despotismo” (Wigan Pier, p. 145).
A participação no maquinário do despotismo conecta os escritos de Orwell sobre o imperialismo a um segundo tema: a culpa e o dano moral por ter sido um opressor imperialista. Em Wigan Pier, por exemplo, Orwell escreve o seguinte sobre seu estado mental após trabalhar por cinco anos para a Polícia Imperial Britânica na Birmânia:
Eu tinha consciência da imensa culpa que tinha de expiar. Suponho que isso soe exagerado; mas se por cinco anos você tivesse feito um trabalho ao qual desaprova completamente, provavelmente teria o mesmo sentimento. Eu tinha reduzido tudo à simples teoria de que os opressores estão sempre certos e os oprimidos sempre errados: uma teoria errada, embora resultado natural de ser um dos opressores (Wigan Pier, p. 148).
Um terceiro tema nos escritos de Orwell sobre o imperialismo trata dos modos pelos quais os próprios opressores imperialistas — a despeito de exercerem o poderio econômico e político sobre os oprimidos — tornam-se controlados, em algum sentido, por aqueles a quem oprimem. Por exemplo, em “O abate de um elefante” Orwell narra ter atirado em um elefante solto em uma vila na Birmânia apenas para satisfazer as expectativas das pessoas locais, muito embora duvidasse que fosse necessário ter atirado. Orwell escreve, a partir dessa experiência, que “percebi naquele momento que quando um homem branco se torna tirano aquilo que ele destrói é a sua própria liberdade […] Pois a condição de sua regra é tal que ele passará a vida tentando impressionar os “nativos” e, por isso, em toda crise ele terá de fazer aquilo que os “nativos” esperam dele”.
Desse modo, da perspectiva de Orwell, ninguém é livre sob as condições de opressão imperialista — nem os opressores nem os oprimidos. O oprimido experiencia aquilo que Orwell chama em Wigan Pier de “opressão dupla” porque o poderio imperialista não apenas leva a injustiças substanciais contra o povo oprimido, mas também a injustiças cometidas por invasores estrangeiros indesejados (Wigan Pier, p. 147). Os opressores, por sua vez, sentem a necessidade de se conformar com seu papel enquanto opressores, a despeito da culpa, da vergonha e do desejo de fazerem o contrário (Orwell parecia pensar que tais sentimentos fossem quase universais dentre os imperialistas britânicos de seu tempo).
É notável que algumas das primeiras articulações de Orwell sobre como a pressão ao conformismo social pode levar à supressão da liberdade de expressão ocorram no contexto de suas discussões sobre a falta de liberdade experienciadas pelos opressores imperialistas. Por exemplo, em “O abate de um elefante” Orwell escreveu que “pensara melhor em [seus] problemas no total silêncio imposto a todo inglês no Oriente”. E em Wigan Pier escreveu que “não havia liberdade de expressão” aos imperialistas britânicos na Índia e que “ser flagrado expressando uma única observação subversiva podia arruinar a [sua] carreira” (p. 144).
De meados da década 1930 até o fim de sua vida Orwell defendeu o socialismo. Ao fazê-lo, ele procurou defender o socialismo contra caracterizações equivocadas. Assim, para entender as opiniões de Orwell sobre o socialismo é preciso entender tanto aquilo que Orwell pensava ser o socialismo quanto aquilo que ele pensava não ser.
Em Wigan Pier Orwell oferece a sua mais sucinta definição do socialismo como “justiça e liberdade”. O sentido de justiça que ele tinha em mente incluía não apenas a justiça econômica, mas também a justiça social e política. A inclusão da palavra “liberdade” em sua definição de socialismo ajuda a explicar por que alhures Orwell especifica ser um socialista democrata. Para Orwell, o socialismo democrático é uma ordem política que oferece igualdade social e econômica ao mesmo tempo em que também preserva a liberdade pessoal robusta. Orwell estava particularmente interessado em preservar aquilo que poderíamos chamar de liberdades intelectuais: liberdade de pensamento, liberdade de expressão e liberdade de impressa.
A abordagem mais detalhada de Orwell ao socialismo, pelo menos como ele o vislumbrava para a Grã-Bretanha, encontra-se no ensaio “O Leão e o Unicórnio”. Orwell nota que o socialismo é geralmente definido como “a detenção comum dos meios de produção” (Parte II, Seção I), mas considera que essa definição seja insuficiente. Para ele o socialismo requer a democracia política, o fim do privilégio hereditário na Câmara dos Comuns do Reino Unido e a imposição de limites à desigualdade de renda (Parte II, Seção I).
Para Orwell, um dos maiores benefícios do socialismo parecia ser o fim do preconceito de classe. Orwell via isso como necessário para a criação de um sentimento de semelhança entre as pessoas numa sociedade. Graças às suas experiências com a cultura inglesa socialmente estratificada no início do século XX, Orwell via a importância da extinção da desigualdade econômica e social para que uma sociedade justa e livre fosse alcançada.
Reflexo disso aparece em suas propostas específicas para que Inglaterra adotasse ao entrar na Segunda Guerra. (Em “O Leão e o Unicórnio” Orwell tipicamente faz referência à Inglaterra ou à Grã-Bretanha, e não ao Reino Unido como um todo. Isso ocorre em grande parte de sua obra). Essas propostas incluem:
Orwell via isso como passos que levariam a Inglaterra à “democracia socialista”.
Na última metade de Wigan Pier Orwell argumenta que muitas pessoas se afastam do socialismo porque o associam a coisas que não lhe são inerentes. Ele defende que o socialismo não requer um desinteresse no paroquialismo ou no patriotismo. Ele vê o socialismo, além do mais, como uma forma distinta tanto do marxismo quanto do comunismo, considerando esse último como uma forma de totalitarismo que, na melhor das hipóteses, ostenta um socialismo de faixada.
Orwell contrasta o socialismo com o capitalismo, que ele define em “O Leão e o Unicórnio” como “um sistema econômico no qual a terra, as fábricas, as minas e o transporte são propriedade privada e operados tendo o lucro como finalidade”. A razão principal de Orwell para se opor ao capitalismo é a sua afirmação de que o capitalismo “não funciona” (Parte II, Seção I). Ele oferece algumas razões teóricas para se pensar que o capitalismo não funciona (por exemplo, “É um sistema no qual todas as forças atuam em direções opostas e os interesses do indivíduo não infrequentemente opõem-se totalmente aos interesses do Estado”) (Parte II, Seção I). O argumento central de Orwell contra o capitalismo, todavia, baseia-se em sua experiência. Em particular, ele argumenta que o capitalismo deixou a Grã-Bretanha mal preparada para a Segunda Guerra e levou a uma injusta desigualdade social.
Orwell concebe o totalitarismo como uma ordem política focada no poder e controle absolutos. A atitude totalitária é exemplificada na pessoa de O’Brien, o antagonista de 1984. O’Brien é um poderoso oficial do governo que usa a tortura e a manipulação a fim de apoderar-se dos pensamentos e das ações do protagonista, Winston Smith, um funcionário do baixo-escalão responsável pela produção de propaganda no “Ministério da Verdade”. O’Brien, de maneira significativa, trata seu desejo por poder como um fim em si mesmo. O’Brien representa o poder pelo poder.
Orwell percebeu que por que o totalitarismo busca o pleno poder e o total controle, ele é incompatível com o império da lei — isto é, o totalitarismo é incompatível com leis estáveis que se aplicam a todos, inclusos os próprios líderes políticos. Em “O Leão e o Unicórnio” Orwell escreve sobre “a ideia totalitária de que não há algo com a lei, só o poder”. Ao passo que a lei limita o poder do governante, o totalitarismo procura obliterar os limites da lei através do exercício desenfreado do poder. Assim, a aplicação justa e consistente da lei é incompatível com o tipo de poder e controle completamente centralizados que são a meta final do totalitarismo.
Orwell vê o totalitarismo como um fenômeno distintamente moderno. Para ele, o comunismo soviético, o fascismo italiano e o nazismo alemão foram as primeiras ordens políticas que procuravam ser verdadeiramente totalitárias. Em “Literature and Totalitarianism”17 Orwell descreve a maneira pela qual o totalitarismo difere de formas anteriores de tirania e ortodoxia:
A peculiaridade do estado totalitário é que, embora controle o pensamento, não o imobiliza. Ele estabelece dogmas inquestionáveis, e os altera dia sim outro também. Ele necessita dos dogmas porque necessita da obediência absoluta das pessoas; todavia, não pode evitar as mudanças, que são ditadas pelas necessidades da política de poder. (“Literature and Totalitarianism”)
Na busca pelo poder pleno, o totalitarismo procura distorcer a realidade a seu bel prazer. Isso requer que se trate o poder político como anterior à verdade objetiva.
Orwell, contudo, nega que a verdade e a realidade possam ser distorcidas da maneira como querem os totalitários. A verdade objetiva em si não poder ser obliterada pelo totalitário (embora talvez a crença na verdade objetiva possa). É por essa razão que Orwell escreve em “Looking Back on the Spanish War”18 que “por mais que você negue a verdade, ela continua a existir, por assim dizer, bem atrás de você, e, consequentemente, você não consegue violá-la a ponto de diminuir a eficiência militar”. Orwell considera isso como uma das duas “proteções” contra o totalitarismo. A outra proteção é a “tradição liberal” que ele identifica com o liberalismo clássico e sua proteção da liberdade individual.
Orwell pensava que o totalitarismo pudesse ser encontrado na esquerda e na direita política. Para ele, tanto o nazismo quanto o comunismo eram totalitários (veja, por exemplo, “Raffles and Miss Blandish”19). O que unia o comunismo soviético e o nazismo alemão sob a bandeira do totalitarismo era a busca do poder pleno e a conformidade ideológica exigida pelo poder. Orwell percebeu que tal poder exigia uma grande capacidade de vigilância, o que explica por que meios de vigilância como a “teletela” e a “Polícia do Pensamento” desempenham um papel central na trama de 1984. (Para uma discussão de Orwell como uma figura incipiente na ética da vigilância veja o artigo sobre ética da vigilância).
Uma das citadas contribuições de Orwell ao pensamento político é o tratamento que ele dá ao conceito de nacionalismo. Em “Notes on Nationalism”20 Orwell descreve o nacionalismo como “o hábito de identificar-se com uma única nação ou outra unidade, colocando-a acima do bem e do mal e reconhecendo nenhum outro dever além do de avançar seus interesses”. Em “The Sporting Spirit”21 ele adiciona que o nacionalismo é “o moderno hábito lunático de identificar-se com amplas unidades de poder e de ver tudo em termos de prestígio competitivo”.
Em ambas as descrições Orwell descreve o nacionalismo com um “hábito”. Alhures ele se refere ao nacionalismo mais especificamente como um “hábito da mente”. Esse hábito da mente tem pelo menos duas características centrais, segundo Orwell — a saber, (1) a fixação da identidade do sujeito ao pertencimento de grupo e não à individualidade, e (2) a priorização do avanço do grupo ao qual o sujeito se identifica sobre todos os outros objetivos. Vale a pena examinar cada uma dessas características em maior detalhe.
Para Orwell o nacionalismo exige a subordinação da identidade individual à identidade do grupo, sendo o grupo com o qual o sujeito se identifica uma “ampla unidade de poder”. Orwell sublinha que essa unidade ampla de poder não precisa ser uma nação. Ele considerava que o nacionalismo prevalecia em movimentos tão variados quanto o “comunismo, o catolicismo político, o sionismo, o antissemitismo, o trotskismo e o pacifismo” (“Notas sobre o Nacionalismo”). O que se exige é que a unidade ampla de poder seja algo que os indivíduos possam adotar como o centro de sua identidade. Isso pode ocorrer via adesão positiva (isto é, através da identificação com um grupo), mas também pode ocorrer via rejeição negativa (isto é, identificando-se como contrário a um grupo). É assim que a lista de Orwell consegue incluir movimentos de tendências nacionalistas como, por exemplo, o sionismo e o antissemitismo.
Fazer do pertencimento de grupo o centro da identidade de alguém, contudo, não é por si só suficiente para o nacionalismo no sentido de Orwell. Os nacionalistas fazem do avanço de seu grupo sua prioridade central. Por esse razão Orwell diz que o nacionalismo “é inseparável do desejo pelo poder” (“Notas sobre o Nacionalismo”). A postura nacionalista é agressiva. Ela procura se sobrepor a tudo mais. Orwell contrasta a postura agressiva do nacionalismo a uma postura meramente defensiva, a qual ele atribui ao patriotismo. Para Orwell, o patriotismo é “a devoção a um lugar e modo de vida particulares que o sujeito acredita serem os melhores do mundo, muito embora não deseje impô-los a outrem” (“Notas sobre o Nacionalismo”). Ele vê o patriotismo como louvável, embora veja o nacionalismo como perigoso e danoso.
Em “Notas sobre o Nacionalismo” Orwell escreve que o “nacionalista é alguém que pensa única, ou principalmente, em termos de prestígio competitivo”. Como resultado, o nacionalista “pode usar sua energia mental tanto para promover quanto para denegrir — mas seja como for, seus pensamentos sempre se voltarão para vitórias, derrotas, triunfo e humilhações”. Desse modo, a análise que Orwell faz do nacionalismo pode ser vista como precursora de grande parte da discussão contemporânea sobre tribalismo político e partidarismo negativo, que ocorre quando a identidade partidária é movida primariamente pela aversão ao grupo externo e não pelo apoio interno ao próprio grupo (Abramowitz & Webster).
Vale notar que Orwell considera estipulativa a sua definição de nacionalismo. Ele começa com um conceito para o qual ele sente que precisa ser discutido e decide que “nacionalismo” é o melhor nome para esse conceito. Assim, as suas discussões sobre nacionalismo (e patriotismo) não deveriam ser consideradas como análises conceituais: tais discussões estão mais para aquilo que agora geralmente se chama de “ética conceitual” ou “engenharia conceitual”.
Os anos de 1936-7 marcaram não apenas uma nítida guinada política nos escritos de Orwell, mas também uma clara guinada epistêmica. Orwell tinha plena consciência de como entidades poderosas, como os governos e os ricos, eram capazes de influenciar as crenças das pessoas. Ao testemunhar a desonestidade e o sucesso da propaganda sobre a guerra civil espanhola, Orwell temia que essas entidades tivessem se tornado tão bem sucedidas no controle das crenças das pessoas que “o próprio conceito de verdade objetiva [estivesse] desaparecendo do mundo” (“Recordando a Guerra Civil Espanhola”). O desejo de Orwell de defender a verdade, junto de suas preocupações de que a verdade não pudesse ser defendida de maneira bem sucedida numa sociedade completamente totalitária, culmina nas frequentes ruminações epistemológicas de Winston Smith, o protagonista ficcional de 1984.
Em seus escritos, Orwell constantemente emprega muitos termos epistêmicos comuns provindos da filosofia, dentre eles: “verdade”, “crença”, “conhecimento”, “fatos”, “evidência”, “testemunho”, “confiabilidade”, “falibilidade”, etc. No entanto, parece também que ele toma por garantido que sua audiência irá entender tais termos sem quaisquer definições prévias. É preciso, portanto, que prestemos a atenção no contexto e na maneira pela qual Orwell usa esses termos a fim de compreender o que ele queria dizer com eles.
Começando com o básico, Orwell distingue entre crença e verdade, e rejeita o ponto de vista de que o consenso de um grupo torna algo verdadeiro. Por exemplo, em seu ensaio sobre Rudyard Kipling, Orwell escreve “não estou dizendo que esta seja uma crença verdadeira, mas apenas que é uma crença sustentada por todos os homens contemporâneos”. Tal afirmação pressupõe que a verdade é uma propriedade que se aplica às crenças, que a verdade não se fundamenta na aceitação de um grupo e que, exatamente por isso, acreditar em algo não torna essa crença verdadeira.
Por outro lado, Orwell parece pensar que a verdade é, num sentido importante, independente da mente. Por exemplo, ele escreve que “por mais que você negue a verdade, ela continua a existir, por assim dizer, bem atrás de você, e, consequentemente, você não consegue violá-la a ponto de diminuir a eficiência militar” (“Recordando a Guerra Civil Espanhola”). Para Orwell a verdade é derivada da maneira pela qual o mundo é. Por que o mundo é de certo modo, quando as nossas crenças não concordam com a realidade, as nossas ações não se alinham ao modo pelo qual o mundo é. É por isso que a rejeição em bloco da verdade objetiva, por exemplo, “diminuiria a eficiência militar”. Você pode afirmar haver ração e munição o suficiente para seus soldados; mas caso de fato não haja ração e munição o suficiente para seus soldados, você enfrentará contratempos militares. Orwell reconhece que essa é uma razão pragmática para perseguir a verdade.
Orwell não fala sobre a justificação das crenças do modo como fariam os filósofos acadêmicos. No entanto, ele frequentemente recorre a fontes de justificação epistêmica cruciais — tal como evidência e confiabilidade — como indicadores de se vale a pena sustentar uma crença e da probabilidade dela ser verdadeira. Por exemplo, Orwell sugere que se alguém desconfia estar nutrindo atitudes antissemitas, poderia “começar a sua investigação naquele local em que encontraria alguma evidência confiável — isto é, em sua própria mente” (“Antisemitism”22). A despeito de qual seja a estratégia de Orwell para detectar o antissemitismo, essa passagem mostra a suposição de Orwell de que, pelo menos algumas vezes, podemos obter evidência confiável através da introspecção.
Os escritos de Orwell sobre a guerra civil espanhola fornecem um conjunto particularmente rico de textos dos quais podemos aprender sobre as condições sob as quais ele pensa podermos obter evidência confiável. Isso porque Orwell procurava ajudar os leitores (e talvez a ele próprio) a separar a verdade das mentiras sobre o que acontecia durante a guerra. Ao fazê-lo, Orwell oferece uma epistemologia do testemunho. Por exemplo:
Também não há muito que duvidar da grande quantidade de ultrajes fascistas nos últimos dez anos na Europa. É enorme o volume de testemunhos, e uma proporção respeitável vem da imprensa e rádio alemães. Essas coisas realmente ocorreram, e é nelas que temos de ficar de olho. (“Looking Back on the Spanish War”).
Embora reconhecesse os desafios epistêmicos impostos pela propaganda e pelo auto-interesse, Orwell não era cético quanto ao conhecimento. Ele não tinha problemas em atribuir conhecimento a agentes e a fazer referência a estados de coisas como fatos, escrevendo, por exemplo: “Esses fatos, conhecidos in loco pelos jornalistas, são praticamente ignorados pela imprensa britânica” (“The Prevention of Literature”23). Orwell era menos otimista quanto a nossa capacidade de saber com certeza, escrevendo, por exemplo, “é difícil estar certo sobre algo, a não ser quando visto com os próprios olhos; consciente ou inconscientemente todo mundo escreve tomando partido” (Homage to Catalonia, p. 195). Isso nos dá razão para pensar que Orwell é um falibilista acerca do conhecimento — isto é, alguém que pensa que podemos saber uma proposição mesmo na falta de certeza sobre a verdade dessa proposição. (Por exemplo, um falibilista poderia alegar saber ter mãos, muito embora negar que esteja certo sobre ter mãos).
Orwell via o socialismo democrático como responsivo a fatos políticos e econômicos, ao passo que considerava o totalitarismo como procurando distorcer os fatos a seu bel prazer. Desse modo, a promoção da verdade objetiva feita por Orwell está intimamente ligada à sua promoção do socialismo em detrimento do totalitarismo. É isso o que leva Orwell a confessar seu temor pelo “sentimento de o próprio conceito de verdade objetiva estar desaparecendo do mundo”. Para Orwell, reconhecer a verdade objetiva requer que se reconheça a realidade e as limitações que ela nos impõe. A realidade diz que 2 + 2 = 4 e não que 2 + 2 = 5.
É assim que Orwell usa o protagonista de 1984, Winston Smith, a fim de expressar suas perspectivas sobre a relação entre verdade e liberdade. Uma parte essencial da liberdade, para Orwell, é a capacidade de pensar e falar a verdade. Orwell era especialmente presciente na identificação de empecilhos ao reconhecimento da verdade e à liberdade que a acompanha. Essas ameaças incluem o nacionalismo, a propaganda e a tecnologia que pode ser usada para a vigia constante.
Orwell usava a escrita como ferramenta para dissipar a ignorância de seus leitores. Ele foi um escritor prolífico, tendo produzido muitos livros, resenhas, editoriais, artigos para revistas, transmissões de rádio e cartas durante uma carreira relativamente curta. Em seus escritos ele procurou corrigir as noções ignorantes que os ricos tinham sobre os pobres; corrigir as crenças erradas sobre a guerra civil espanhola que tinham sido espalhadas pela propaganda fascista, e procurou contra-atacar as imagens imprecisas do socialismo democrático e sua relação com o comunismo soviético.
As próprias ignorâncias iniciais de Orwell sobre essas questões foram dissipadas por sua experiência de vida. Como resultado, ele pensava que a experiência fosse capaz de acabar com a ignorância. Ele parecia acreditar que o testemunho sobre a experiência também tivesse o poder de ajudar aqueles que recebem o testemunho a acabar com sua ignorância. Assim, Orwell procurou recorrer às suas experiências de modo que pudesse auxiliar no contra-ataque às percepções imprecisas daqueles que careciam da experiência sobre tais questões às quais ele relata em seus escritos.
Como discutido anteriormente, Orwell acreditava que as pessoas das classes média e alta na Grã-Bretanha eram bastante ignorantes sobre o caráter e as circunstâncias daqueles que viviam na pobreza, e que aquilo que eles imaginavam sobre a pobreza era bastante impreciso. No que respeita à sua afirmação de que os ricos e os pobres não têm naturezas ou caráter moral distintos, Orwell escreve que “Todos aqueles que já se misturaram igualmente aos pobres sabem disso muito bem. O problema é que as pessoas cultas e inteligentes, as mesmas pessoas das quais se esperam opiniões liberais, não se misturam aos pobres” (Down and Out, p. 120).
Orwell fez observações similares sobre muitas outras pessoas e circunstâncias. Ele argumentou que o trabalho dos ajudantes de cozinha nos restaurantes da França que aparentemente parecia fácil, olhando-se de fora, era na verdade “surpreendentemente difícil” (Down and Out, p. 62); que ver de perto o trabalho nas minas de carvão faria com que um inglês duvidasse de seu status de “pessoa superior” (Wigan Pier, p. 35); e que trabalhar numa livraria era uma boa maneira de desfazer a fantasia de que trabalhar numa livraria é um paraíso (veja “Bookshop Memories”24).
É difícil evitar um metacomentário sobre a percepção de Orwell de que a experiência é geralmente necessária para se corrigir a ignorância. Ao longo de sua vida, ele acumulou um conjunto eclético de experiências que o ajudaram a entender melhor a perspectiva daqueles que ocupavam diversas profissões e classes sociais. Isso o possibilitou ter empatia com as dificuldades de uma ampla variedade de homens brancos. Contudo, por mais que tivesse tentado, Orwell nunca poderia, em quaisquer dessas circunstâncias, experienciar como é ser uma mulher, uma pessoa de cor ou uma pessoa queer. As críticas feministas têm corretamente chamado atenção para a misoginia e o racismo comuns na obra de Orwell (veja, por exemplo, Beddoe 1984, Campebell 1984 e Patai 1984). Os escritos de Orwell são também bastante homofóbicos (veja, por exemplo, A Flor da Inglaterra, cap. 1; Tylor 2003, p. 245). Além disso, os críticos têm apontado antissemitismo e anticatolicismo em seus escritos (veja, por exemplo, Brennan 2017). Desse modo, os insights de Orwell sobre o poder epistêmico da experiência também ajudam a explicar as falhas significativas em seu corpus graças aos limites de sua própria experiência e imaginação, ou talvez mais simplesmente devido a seus próprios preconceitos.
Os escritos de Orwell são altamente consonantes com o trabalho filosófico que dá ênfase à tese de que a cognição humana é incorporada. Para Orwell, ao contrário de Descartes, nós não somos primordialmente uma coisa pensante. Em vez disso, escreve Orwell, “um ser humano é primariamente um saco de se por comida dentro; as outras funções e faculdades podem até ser endeusadas, mas a essa altura elas são secundárias” (Wigan Pier, p. 91-2).
A influência das circunstâncias externas e das condições físicas sobre a cognição humana desempenha um papel importante em todos os livros de não-ficção de Orwell, assim com em A Revolução dos Bichos e 1984. Em Homenagem à Catalunha Orwell relata como, devido às poucas horas de sono enquanto soldado do exército republicano espanhol, “se fica estúpido” (p. 43). Em Na Pior Orwell enfatizou como as condições físicas de uma dieta pobre podem te deixar com um “interesse em nada” tornando-se “apenas uma barriga com alguns poucos órgãos acessórios” (pp. 18-9). E em Wigan Pier ele argumenta que mesmo o “melhor intelecto” não é capaz de resistir ao “efeito debilitante do desemprego” (p. 81). É por isso que, sugere ele, é difícil para um desempregado fazer coisas como escrever livros. Eles têm tempo, mas, de acordo com Orwell, escrever livros requer, além de tempo, paz de espírito. E Orwell acreditava que as condições de vida para a maioria das pessoas desempregadas no início do século XX na Inglaterra não permitia tal paz de espírito.
A ênfase que Orwell dá à cognição incorporada é outra maneira dele reconhecer a íntima conexão entre o político e o epistêmico. Em A Revolução dos Bichos, por exemplo, os animais são, no primeiro momento, instados a se rebelar contra o fazendeiro após terem sido deixados sem alimento, tendo sua fome os movido à ação. E Napoleão, o apropriadamente nomeado porco que por fim assume o controle ditatorial da fazenda, mantém os outros animais sobrecarregados de trabalho e mal alimentados como forma de deixa-los mais flexíveis e controláveis. E em 1984, do mesmo modo, embora a comida seja racionada, o gin é distribuído em abundância aos membros do partido. E as condições físicas da privação e da tortura são usadas para enfraquecer a vontade do protagonista, Wiston Smith, a ponto de tornar completamente maleáveis seus pensamentos. O controle epistêmico sobre a mente dos cidadãos dá poder ao Partido sobre as condições físicas da sociedade, que, por sua vez, serve para consolidar o controle epistêmico dos cidadãos por parte do Partido.
Orwell trata a memória com uma faculdade profundamente falha, mas ainda assim inestimável, pois ela é geralmente a melhor ou a única fonte de se obter muitas verdades sobre o passado. A seguinte passagem é significativa de sua posição: “Traiçoeira como a memória é, ela me parece o principal meio de se descobrir como a mente de uma criança funciona. Só depois de ressuscitarmos as nossas próprias memórias é que percebemos o quão incrivelmente distorcida é a visão de mundo de uma criança” (“Tamanhas eram as alegrias”).
No ensaio “My Country Right or Left”25 Orwell se mostra cauteloso sobre a infiabilidade das memórias, muito embora ele também pareça otimista quanto à nossa capacidade de separar as memórias genuínas das interpolações falsas através da concentração e da reflexão. Orwell argumentou que na Grã-Brentanha a rememoração da Primeira Guerra foi ficando, ao longo do tempo, distorcida pela nostalgia e pelas narrativas post hoc. Ele encorajou seus leitores a “desemaranhar suas memórias reais dos acréscimos posteriores”, o que sugere que ele pensa que tal separação é pelo menos possível. Isso é reforçado por outra afirmação sua, a de que ele era capaz de “separar honestamente [suas] memórias e descartar aquilo que tem aprendido desde” a Primeira Guerra (“Meu país à direita ou à esquerda”).
Como prefiguram essas passagens, Orwell vê tanto o poder quanto a limitação da memória como politicamente significativos. Memórias acuradas podem refutar falsidades e mentiras, incluindo falsidades e mentiras sobre a história. Mas as memórias são também susceptíveis à corrupção, e os vieses cognitivos permitem que as nossas memórias sejam corrompidas de forma previsível e útil por aqueles que detêm o poder político. Orwell temia que os governos totalitários impulsionassem um ceticismo completo sobre a capacidade de escrever a “verdadeira história”. Ao mesmo tempo ele também notou que esses mesmos governos totalitários usavam propaganda para tentar promover suas próprias abordagens à história — abordagens que em geral discordavam amplamente dos fatos (veja, por exemplo, “Recordando a Guerra Civil Espanhola”, Seção IV).
A relação complexa entre verdade, memória e história no regime totalitário é um tema central em 1984. Umas das maneiras pelas quais o protagonista resistia às mentiras patentes contadas pelo Partido era se agarrando às memórias que contradiziam as afirmações falsas sobre o passado feitas pelo Partido. O’Brien, o principal antagonista, procurava eliminar o confiança que Winston tinha em suas próprias memórias ao convencê-lo a abandonar a noção de verdade objetiva por completo. Assim como muitos dos temas centrais de 1984, Orwell discutiu a relação entre verdade, memória e história sob o totalitarismo em vários outros lugares. Exemplos notáveis são “Recordando a Guerra Civil Espanhola”, “Notas sobre o nacionalismo” e “A prevenção contra a literatura”.
Orwell tinha interesses amplos na linguagem. Esses interesses iam desde o simples “prazer das meras palavras” até o desejo político de usar a linguagem “para empurrar o mundo numa certa direção” (“Por que escrevo”). Orwell estudou como a linguagem poderia tanto obscurecer quanto clarificar, e procurou identificar a importância política que a linguagem tinha como resultado.
Para Orwell, a linguagem e o pensamento influenciam um ao outro de maneira significativa. O nosso pensamento é produto da nossa linguagem, que, por sua vez, é produto do nosso pensamento.
“Politics and the English Language”26 contém o escrito mais explícito de Orwell sobre essa relação. Nesse ensaio Orwell enfatiza primariamente os efeitos prejudiciais da linguagem sobre o pensamento e vice-versa, escrevendo, por exemplo, que a língua inglesa “tornou-se feia e imprecisa porque os nossos pensamentos são tolos, muito embora o desleixo com a nossa língua facilite que tenhamos pensamentos tolos”. Mas, a despeito desses efeitos prejudiciais, o propósito de Orwell em “A Política e a Língua Inglesa” é em última instância positivo. O seu “ponto é o de que o processo [de corrupção] é reversível”. Orwell acreditava que os maus hábitos de pensamento e escrita observados por ele pudessem “ser evitados caso nos disponhamos a fazer o trabalho necessário”. O ensaio, em parte, funciona como um guia para se fazer exatamente isso.
Essa relação entre pensamento e linguagem é parte de uma relação tripartite mais ampla, por Orwell identificada, entre linguagem, pensamento e política (é por isso que o artigo é intitulado “A Política e a Língua Inglesa”). Assim como pensamento e linguagem se influenciam mutuamente, também o fazem pensamento e política. Desse modo, por meio do pensamento, política e linguagem influenciam também um ao outro. Orwell argumenta que ao escrever bem, uma pessoa “pode pensar mais claramente”, e que, por sua vez, “pensar claramente é o primeiro passo necessário rumo à regeneração política”. Isso faz da boa escrita uma tarefa política. Orwell conclui, então, que àqueles que participam das comunidades anglófonas “a luta contra o mau inglês não é uma frivolidade e não se restringe apenas aos escritores profissionais”. Um princípio análogo vale para aqueles que vivem em comunidades políticas que usam outras línguas. Por exemplo, com base em sua teoria sobre a influência bidirecional que linguagem, pensamento e política têm umas sobre as outras, Orwell esperava que “as línguas alemã, russa e italiana tivessem se deteriorado nos últimos dez ou quinze anos como resultado da ditadura”. (“A Política e a Língua Inglesa” foi publicado logo após o fim da Segunda Guerra).
O desejo de Orwell em evitar a má escrita não é o desejo de defender o “inglês padrão” ou regras gramaticais rígidas. Muito pelo contrário, seu principal objetivo era o de que os usuários da língua aspirassem “que o significado escolhesse a palavra, e não o contrário”. A comunicação clara e precisa requer pensamento e intenção conscientes. Escrever de forma a preservar aquilo que se quer dizer dá trabalho. Selecionar meramente aquelas palavras, metáforas e expressões que vêm mais facilmente à mente pode obscurecer aos outros, e até a nós mesmos, aquilo que queremos dizer. Orwell descreve um falante completamente controlado por lugares comum, metáforas mortas e uma linha partidária ortodoxa como alguém que
Está prestes a se tornar uma máquina. Os barulhos apropriados saem de sua laringe, mas seu cérebro não está envolvido; é como se ele estivesse escolhendo suas palavras por si próprias. Se esse é um discurso que ele está acostumado a fazer rotineiramente, é bem capaz de ele não ter consciência daquilo que está dizendo.
Orwell explora essa ideia em 1984 com o conceito de “patofalar”, que é definido como um falante que meramente grasna como um pato ao repetir banalidades ortodoxas.
Assim como vários termos que lhe eram importantes, Orwell nunca define aquilo que quer dizer por “propaganda”, e não é claro que ele tenha sempre o usado de maneira consistente. Ainda assim ele foi um comentador perspicaz de como a propaganda funcionava e por que entendê-la era importante.
Orwell muitas vezes usava o termo “propaganda” de maneira pejorativa. Mas isso não significa que ele pensasse que a propaganda fosse sempre negativa. Ele escreveu que “toda arte é propaganda”, embora tenha negado que toda propaganda fosse arte (“Charles Dickens”). Ele sustentava que o objetivo primário da propaganda é “influenciar a opinião contemporânea” (“Notas sobre o nacionalismo”). Assim, a concepção mais ampla que Orwell tem da propaganda parece ser a de que é veiculação de mensagens visando influenciar a opinião. Tais mensagens não precisam ser comunicadas apenas com palavras. Por exemplo, Orwell frisava com frequência as propriedades propagandísticas de pôsteres, o que provavelmente influenciou a sua prosa sobre os pôsteres do Grande Irmão em 1984. Essa concepção esparsa de propaganda não inclui condições que outras abordagens eventualmente possam incluir, como, por exemplo, a de que a veiculação de mensagens tem de ser em algum sentido enganadora ou que a tentativa de influenciar tem de ser em algum sentido manipulativa (compare com Stanley 2016).
Orwell achava que grande parte da propaganda de sua época fosse problemática por causa dos efeitos deletérios que ela tinha sobre os indivíduos e sobre a sociedade. A propaganda funciona para controlar as narrativas e, de maneira mais ampla, o pensamento. Orwell observou que às vezes isso era feito através da manipulação do efeito que a linguagem era capaz de exercer sobre a audiência.
Ele notou que ditadores como Hitler e Stálin cometeram assassinatos cruéis, embora nunca se referissem a tais atos como tal, preferindo em vez disso usar termos como “liquidação”, “eliminação” ou “algum outro eufemismo” (“Inside the Whale”27). Em outras vezes ele notou que a propaganda consistia em mentiras descaradas. Em linhas que lembram o mundo que ele criou em 1984, Orwell descreveu a situação observada como se segue: “Grande parte da escrita propagandística de nosso tempo é pura falsificação. Fatos materiais são suprimidos, datas alteradas, citações removidas de seu contexto e adulteradas de modo que seu significado seja alterado” (“Notas sobre o nacionalismo”). Orwell também notou a propaganda mal feita poderia não apenas falhar, mas também ter o efeito contrário e repelir a audiência visada. Ele era particularmente duro com seus aliados da esquerda política sobre a propaganda que ele pensava ser desanimadora para a maioria da classe operária.
Orwell via o valor estético como distinto de outras formas de valor, tais como os valores moral e econômico. Na maior parte das vezes ele discutia o valor estético ao discutir literatura, que considerava ser uma categoria de arte. Orwell não pensava, vale notar, que o único modo de se avaliar a literatura fosse por seus méritos estéticos. Ele pensava que a literatura (ao lado de outros tipos de arte e escrita) pudesse ser também avaliada moral e politicamente. Isso talvez não surpreenda tanto, dado seu desejo de “fazer da escrita política uma arte” (“Por que escrevo”).
É bastante claro que Orwell via o valor estético como distinto do valor moral. Ele escreveu num ensaio sobre Salvador Dalí que “deveríamos ser capazes de ter em mente, simultaneamente, dois fatos sobre Salvador Dalí: que ele é um bom desenhista e um ser humano nojento” (“Benefit of Clergy”28). O que é menos claro é o que Orwell considera como base do valor estético. Ele parece ter sustentado duas perspectivas. Algumas vezes parecia que ele via os valores estéticos como objetivos, embora inefáveis. Outra vezes, parecia que ele via o valor estético sendo fundamentado subjetivamente no gosto dos indivíduos.
Por exemplo, Orwell escreve que sua própria época era uma “na qual o ser humano médio nos países altamente civilizados é esteticamente inferior ao mais baixo selvagem” (“Poetry and the Microphone”29). Isso sugere uma perspectiva culturalmente neutra a partir da qual o refinamento estético possa ser avaliado. Na verdade, Orwell parece pensar que o meio cultural do indivíduo pode melhorar ou corromper sua sensibilidade estética, escrevendo que “os juízos estéticos, especialmente os juízos literários, são geralmente corrompidos do mesmo modo que os juízos políticos” (“A poesia e o microfone”; “Notas sobre o nacionalismo”). Orwell sustentava ainda que algumas pessoas “não têm quaisquer sentimentos estéticos”, uma condição a qual ele pensava que os ingleses estivessem particularmente susceptíveis (“O Leão e o Unicórnio”). Por outro lado, Orwell também escreveu que “em última instância não há teste para o mérito literário exceto a sobrevivência, que é em si um índice da opinião da maioria” (“Lear, Tolstoy, and the Fool”30). Isso sugere que o valor estético talvez tenha seu limite na intersubjetividade.
Há, no entanto, várias maneiras de se suavizar essa tensão se prestarmos atenção nas diferentes formas pelas quais o mérito literário pode ser avaliado para Orwell. Por exemplo,
Supondo que haja algo na arte como o bom e o ruim, a bondade ou ruindade terá de residir na própria obra de arte — não independentemente do observador, decerto, mas independentemente do humor do observador. Desse modo, não pode ser o caso que um poema seja bom na segunda-feira e ruim na terça. Mas se julgarmos o poema pela apreciação suscitada por ele, aí sim isso talvez seja o caso; pois a apreciação, ou o deleite, é uma condição subjetiva que não pode ser controlada (“Politics vs. Liteterature”31).
Isso sugere que o mérito literário possa ser avaliado tanto em termos de mérito artístico quanto em termos de apreciação subjetiva, e que essas duas formas de avaliação não precisam coincidir.
Essa solução deixa sem reposta a pergunta sobre aquilo que justifica o mérito artístico, todavia. Talvez a melhor resposta disponível esteja no ensaio sobre Charles Dickens. Nele Orwell conclui que “via de regra, uma preferência estética é ou algo inexplicável ou algo tão corrompido por motivos não-estéticos a ponto de nos fazer pensar que toda a crítica literária não passa de um grande amontoado de charlatanice”. Orwell postula aqui duas fontes potenciais de preferência estética: charlatanice ou algo inexplicável. Isso sugere que Orwell talvez favorecesse uma perspectiva do valor estético que fosse, em última instância, inefável. Mas ainda que o fundamento do mérito estético seja inexplicável, Orwell parece pensar que ainda assim podemos julgar a arte a partir de bases estéticas tanto quanto morais e políticas.
Orwell acreditava que “não houvesse literatura genuinamente não-política” (“A prevenção contra a literatura”). Isso porque ele pensava que toda literatura envia uma mensagem política, ainda que tal mensagem seja uma simples reafirmação do status quo. Em parte é a isso a que Orwell se referia ao dizer que toda arte é propaganda. Para ele, toda a literatura — assim como toda a arte — procura influenciar a opinião contemporânea. É por essa razão que toda literatura é política.
Por que toda literatura é política, Orwell pensava que a perspectiva de uma obra de literatura geralmente influenciava o mérito que o leitor atribuía a ela. Mais especificamente, as pessoas tendem a fazer bom juízo da literatura que concorda com suas perspectivas políticas, e um mal juízo da literatura que discorda delas. Orwell defendia essa posição chamando atenção para “a extrema dificuldade de se enxergar algum mérito literário num livro que fere seriamente as nossas crenças mais arraigadas” (“Dentro da baleia”).
Mas assim como a literatura pode influenciar a política através de sua mensagem, também a política pode influenciar, e de fato influencia, a literatura. Orwell argumentou que toda ficção é “censurada pelos interesses da classe dominante” (Boy’s Weeklies”32). Para ele, isso era problemático sob várias circunstâncias, mas particularmente desconcertante quando o estado exibe tendências totalitárias. Ele pensava que a escrita da literatura se torna impossível num estado genuinamente autoritário. Isso porque em um regime totalitário não há liberdade intelectual e nenhum conjunto estável de fatos compartilhados. Como resultado, Orwell sustentava que “a destruição da liberdade intelectual estropia o jornalista, o escritor sociológico, o historiador, o romancista, o crítico e o poeta, nessa ordem” (“A prevenção contra a literatura”).
As perspectivas de Orwell sobre as conexões mútuas entre política, pensamento e linguagem, portanto, estendem-se à arte — especialmente à arte escrita. Essas coisas afetam a literatura de tal modo que certos ordenamentos políticos tornam impossível a escrita da literatura. A literatura, por sua vez, tem o poder de afetar tais aspectos centrais da vida humana.
A relação de Orwell com a filosofia acadêmica nunca foi algo simples. Orwell admirava Bertrand Russell, embora tenha escrito em resposta a uma dificuldade que encontrou ao ler um dos livros de Russell que era “o tipo de coisa que o fazia sentir que a filosofia deveria ser proibida por lei” (Barry 2021). Orwell considerava A. J. Ayer um “grande amigo”, embora Ayer tenha dito que Orwell “nunca teve o mínimo interesse pela filosofia acadêmica” e acreditasse que Orwell pensasse que a filosofia acadêmica fosse “um grande desperdício de tempo” (Barry 2022; Wahdhams 2017, p. 205). Além disso, Orwell se referia a Jean Paul Sartre como “um boçal” que merecia tomar “um belo pontapé [metafórico]” (Tyrell 1996).
Alguns concluem que Orwell não se interessava ou era incapaz de fazer um trabalho filosófico rigoroso. Bernard Crick, um dos biógrafos de Orwell e que é também filósofo e teórico da política, concluiu que Orwell “seria incapaz de escrever uma monografia filosófica contemporânea, e dificilmente entenderia uma”, observando que “Orwell escolheu escrever na forma de romance, e não na forma de tratado filosófico” (Crick 1980, xxvii). E isso é provavelmente verdadeiro; o que não significa que a obra de Orwell não tenha sido influenciada pela filosofia acadêmica. Foi. E isso também não significa que a obra de Orwell não seja de valor aos filósofos acadêmicos. Ela é.
Com exceção de alguns comentários sobre Marx, Orwell tendia a não se referir a filósofos pelo nome em suas obras (compare com Tyrrell 1996). Pode ser difícil determinar em que medida tais pensadores lhe eram familiares ou lhe influenciaram. Crick conclui que Orwell “não tinha lido J. S. Mill ou Karl Popper”, embora pareça ter chegado independentemente a conclusões similares (Crick 1980, 351). E muito embora haja pouca evidência de que Orwell conhecesse a história da filosofia, há considerável evidência de tivesse familiaridade com pelo menos algum trabalho filosófico escrito. Orwell resenhou livros de Sartre e Russell (Tyrrell 1996, Barry 2021), e em sua biblioteca, aquando de sua morte, havia livros de Russell (Barry 2021). Ao examinar o conhecimento e as interações de Orwell com os escritos de Russell, Peter Brian Barry argumentou convincentemente que Russell influenciou as opiniões de Orwell sobre psicologia moral, metaética e metafísica (Barry 2021; 2022). E, como notado por vários outros, há um sentido claro no qual os escritos de Orwell lidam com temas filosóficos e ele tenta elaborar ideias filosóficas (Tyrrell 1996; Dwan 2010, 2018; Quintana 2018, 2020; Satta 2021a, 2021c).
Tais alegações podem ser tornadas consistentes se distinguirmos entre ser um filósofo acadêmico e ser um pensador filosófico em algum outro sentido. Barry o faz razoavelmente ao notar que a falta de interesse de Orwell pela “filosofia acadêmica” é “consistente com o seu grande interesse pela filosofia pública normativa, incluindo a filosofia social e política”. David Dwan faz uma observação similar, preferindo chamar Orwell de “pensador político” em vez de “filósofo político”, e argumentando que “podemos mapear os desafios que [Orwell] apresenta à filosofia política sem a ele atribuir um rigor ao qual ele nunca pretendeu” (Dwan 2018, p.4).
Filósofos que atuam na filosofia política, na filosofia da linguagem, na epistemologia, na ética, na metafísica, dentre outros campos, costumam discutir os escritos de Orwell. Richard Rorty, por exemplo, dedicou um capítulo a Orwell em seu Contingency, Irony, and Solidarity (1989), onde afirmou que “a descrição que faz Orwell da nossa situação política — dos perigos e das opiniões disponíveis — continua tão útil quanto possível” (p. 170). Para Rorty, parte do valor de Orwell era a sua capacidade de “sensibilizar seus [leitores] para um conjunto de desculpas para a crueldade”, ajudando a remodelar a nossa compreensão política (p. 171). Rorty também via que a obra de Orwell ajudava seus leitores a perceber que figuras totalitárias como o O’Brien, de 1984, eram possíveis (pp. 175-6).
O principal valor que Rorty talvez tenha detectado na obra de Orwell foi a maneira pela qual ela apresenta o valor humano profundo de possuir a capacidade de dizer aquilo em que se acredita e a “capacidade de dizer às outras pessoas aquilo que você pensar ser verdadeiro” (Rorty 1989, p. 176). Isto é, Rorty reconheceu o valor que Orwell dava à liberdade intelectual. Dito isso, Rorty procura encaixar Orwell dentro de sua própria concepção sugerindo que ele se preocupa apenas com a liberdade intelectual e não com a verdade. Rorty argumenta que, para Orwell, “não importa se ‘dois mais dois é igual a quatro’ é verdadeira” e que “a pergunta de Orwell sobre ‘a possibilidade da verdade’ é uma pista falsa” (p. 176, 182). A tese de Rorty de que Orwell não estava interessado na verdade não tem sido amplamente adotada. Na realidade, a sua posição acabou provocando a defesa filosófica da perspectiva bem mais plausível de que Orwell se preocupava com a verdade e a considerava como sendo, em algum sentido, real e objetiva (veja, por exemplo, van Inwagen 2008; Dwan 2018, pp. 160-63; conferir Conant 2020).
Na filosofia da linguagem, Derek Ball identificou Orwell como alguém que reconhece que “um fato metassemântico particular pode ter certas consequências sociais e políticas” (Ball 2021, p. 45). Ball também nota que, numa interpretação plausível, Orwell parece aceitar tanto o determinismo linguístico — “a tese segundo a qual a linguagem influencia ou determina aquilo que o sujeito acredita, de tal modo que falantes de línguas diferentes tenderão a ter crenças diferentes (e potencialmente incompatíveis) precisamente porque falam línguas diferentes” — quanto o relativismo linguístico — “a tese segundo a qual a linguagem influencia ou determina os conceitos possuídos por um sujeito, e, por conseguinte, os pensamentos que ele é capaz de ter, de tal modo que falantes de línguas diferentes possuem frequentemente repertórios conceituais completamente diferentes precisamente porque falam línguas diferentes” (Ball 2021, p. 47).
Os apontamentos feitos por Ball são maneiras úteis de organizar os comprometimentos filosóficos centrais de Orwell sobre a inter-relação entre linguagem, pensamento e política. As observações de Ball concordam com a tese de Judith Shklar de que o enredo de 1984 “não é realmente sobre totalistarismo, mas sim sobre as implicações práticas da noção de que a linguagem estrutura todo o nosso conhecimento do mundo fenomênico” (Shklar 1984). De modo similar, em seu trabalho sobre o discurso manipulativo, Justin D’Ambrosio tem notado a importância dos escritos de Orwell para a filosofia da linguagem politicamente relevante (D’Ambrosio, manuscrito). Esses tipos de observações sobre as perspectivas de Orwell podem se tornar cada vez mais importantes para a filosofia acadêmica dado o desenvolvimento atual da filosofia da linguagem politicamente centrada enquanto área de estudo (veja, por exemplo, Khoo & Sterken 2021).
Os filósofos têm também notado o valor da obra de Orwell para a epistemologia. Martin Tyrrell argumenta que grande parte “dos últimos e melhores escritos de Orwell são uma tentativa de desenvolver as consequências políticas de questões que são essencialmente filosóficas” citando questões especificamente epistemológicas como “Quando e do que deveríamos duvidar?” e “Quando e no que deveríamos acreditar?” (Tyrrell 1996). Simon Blackburn observou a importância das preocupações de Orwell com a verdade para a epistemologia política, concluindo que “a resposta à preocupação de Orwell [sobre a possibilidade da verdade] não é o abandono da investigação, mas sim conduzi-la com mais cuidado, diligência e imaginação” (Blackburn 2021, p. 70). Mark Satta documentou o reconhecimento por parte de Orwell do aspecto epistêmico sobre as nossas circunstâncias físicas enquanto seres incorporados influenciarem os nossos pensamentos e as nossas crenças (Satta 2021a).
Como notado anteriormente, Orwell trata o valor moral como domínio distinto de outros tipos de valores, como o valor estético. Os filósofos acadêmicos têm estuado e usado proveitosamente as perspectivas de Orwell no campo da ética. Barry argumenta que as perspectivas de Orwell sobre a moralidade são uma forma de deontologia de limiar [treshold deontology], segundo a qual certas normas morais (como, por exemplo, dizer a verdade) devem ser seguidas, exceto em ocasiões em que não segui-las é necessário para evitar resultados horrendos. Barry também argumenta que as normas morais de Orwell provêm da sua abordagem humanista à bondade moral, que fundamenta a bondade moral naquilo que é bom para os seres humanos. Tal abordagem dos comprometimentos éticos está de acordo com a perspectiva de Dwan de que, embora Orwell tenha se empenhado em criticar amplamente o consequencialismo moral, havia limites à sua rejeição do consequencialismo, tal como a sua aceitação de que alguma matança é necessária na guerra (Dwan 2018, pp. 19–19).
Os filósofos têm também empregado os escritos de Orwell na interseção da ética com a filosofia política. Por exemplo, Martha Nussbaum identifica a importância ética e política dada às emoções no 1984. Ela examina como Wiston Smith saudosamente rememora um mundo que continha a expressão livre de emoções como o amor, a compaixão, a piedade e a solidariedade, ao passo que O’Brien procura estabelecer um mundo no qual as emoções dominantes (e talvez as únicas) são o medo, a raiva, o triunfo e a auto humilhação (Nussbaum 2005). Oriol Quintana identificou a importância do reconhecimento humano no corpus orwelliano e a tem explorado em uma abordagem da ética da solidariedade (Quintana 2018). Quintana tem também argumentado que há paralelos entre a obra de George Orwell e da filósofa francesa Simone Weil, especialmente a importância que ambos dão ao “enraizamento” — isto é, “um sentimento de pertencimento ao mundo” em contraste ao ascetismo ou ao desprendimento (Quintana 2020, p. 105). Felicia Nimume Ackerman tem enfatizado as maneiras pelas quais 1984 é um romance sobre um caso de amor, que trata de questões sobre a natureza da agência humana e das relações humanas em circunstâncias políticas extremas (Ackerman 2019). David Dwan examina a compreensão que Orwell tem de vários termos morais e políticos importantes, e o uso frequente que faz deles, incluindo “igualdade”, “liberdade” e “justiça” (Dwan 2012, 2018). Dwan sustenta que Orwell é “um grande educador político, mas menos pelas soluções que ele oferece e mais pelos problemas que ele incorporou e pelas perguntas que ele nos permitiu fazer” (Dwan 2018, p. 2).
Assim, muito embora nunca tenha sido um filósofo profissional ou membro da academia, Orwell muito tem a oferecer àqueles interessados na filosofia. Nos últimos anos tem sido crescente a quantidade de filósofos que parecem ter reconhecido isso. Embora limitado por sua época e seus preconceitos, Orwell foi um crítico perspicaz do totalitarismo e de vários outros modos pelos quais se pode abusar do poder político. Parte desse insight estava na inter-relação entre as nossas vidas políticas e outros aspectos das experiências individuais e coletivas, tais como aquilo que acreditamos, como nos comunicamos e aquilo que valoramos. Tanto a ficção quanto os ensaios de Orwell oferecem muito material para reflexão àqueles interessados em tais aspectos da experiência e vida política humanas.