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Crítica
3 de Abril de 2011   Ética

Como viver a vida?

Martha Nussbaum
Tradução de Luís Filipe Bettencourt e Desidério Murcho
Não estamos discutindo uma questão menor, mas antes como viver a vida.
Platão, República

Aqui, como em todos os outros casos, temos de estabelecer as aparências e, trabalhando primeiro a partir dos quebra-cabeças, partir daí para mostrar, se possível, a verdade de todas as crenças profundas sobre essas experiências; e, se isto não for possível, a verdade do maior número de pessoas e das mais conhecedoras.
Aristóteles, Ética Nicomaqueia

O conflito da antiguidade entre a filosofia e a literatura tinha uma clareza exemplar, dado que os seus participantes partilhavam uma perspectiva quanto ao que estava em causa. Por mais que Platão e os poetas discordassem, concordavam que o objectivo das suas obras era iluminar a questão de como viver. Claro que discordavam quanto ao que era a verdade ética, e também quanto à natureza da compreensão. Mas mesmo assim havia aproximadamente um só objectivo, por mais que precisasse de ser melhor especificado, que ambos partilhavam, uma pergunta à qual se podia considerar que ofereciam respostas rivais.

Um obstáculo a qualquer versão contemporânea do projecto da antiguidade é a dificuldade de chegar a qualquer posição quanto ao que procuramos que seja partilhado por todos. O meu objectivo é estabelecer que certos textos literários (ou textos similares a estes em certos aspectos relevantes) são indispensáveis para a investigação filosófica no domínio ético: não são de modo algum suficientes, mas fontes de ideias perspicazes sem as quais a investigação não poderá ser completa. Mas então é importante ter alguma concepção, por mais geral e flexível, da investigação no seio da qual desejo pôr os romances, o projecto em que considero que estes ajudam a formular uma alternativa distinta às concepções kantianas e utilitaristas. Uma dificuldade aqui é que algumas perspectivas influentes do que a filosofia moral inclui são formuladas em termos de uma ou outra das concepções éticas rivais; assim, revelar-se-ão inadequadas, se quisermos organizar uma comparação que faça justiça a todas. Por exemplo, se começarmos com a pergunta organizadora dos utilitaristas, “Como podemos maximizar a utilidade?”, aceitamos já uma certa caracterização do que é saliente no que respeita à ética, das descrições correctas ou relevantes para as situações práticas — e isto excluiria como irrelevante, desde o início, grande parte do que os romances apresentam como muitíssimo relevante. De modo semelhante, apoiarmo-nos na caracterização kantiana do domínio da moral, e da sua relação com o que acontece no domínio empírico, apoiando-nos ainda na pergunta organizadora do kantiano, “Qual é o meu dever moral?”, teria o efeito de eliminar artificialmente da investigação alguns elementos da vida que os romances mostram que são importantes e que ligam a outros — isto previamente a um estudo cuidadoso do entendimento da vida que os romances em si têm para oferecer. Assim, seria insensato, ao que parece, adoptar qualquer um destes métodos e perguntas como guias arquitectónicos para a procura de uma comparação entre diferentes concepções, diferentes entendimentos da vida — entre eles, as perspectivas da vida expressas nos romances. Parece que é de ver se conseguimos encontrar uma perspectiva dos métodos, do objecto de estudo, e das perguntas da filosofia moral (investigação ética) que seja mais inclusiva.

E aqui, sublinhe-se, o que realmente queremos é uma perspectiva da investigação ética que capte o que efectivamente fazemos quando nos interrogamos sobre as questões éticas mais prementes. Pois a actividade de comparação que descrevo é uma actividade prática real, a que nos entregamos de diversos modos quando nos perguntamos como viver, o que ser; actividade a que nos entregamos com outras pessoas, procurando modos de vivermos em conjunto numa comunidade, país ou planeta. Introduzir romances na filosofia moral não é — do modo como entendo esta proposta — trazê-los para uma qualquer disciplina académica que por acaso faz perguntas éticas. É fazê-los ligar-se à nossa procura prática mais profunda, por nós e pelos outros, a procura em conexão com a qual as influentes concepções filosóficas do ético originalmente foram desenvolvidas, a procura a que nos entregamos ao comparar estas concepções, tanto entre si como com o nosso entendimento activo da vida. Ou antes, é reconhecer que os romances se entregam já a esta procura: é insistir e descrever as conexões que os romances já têm com os leitores que os apreciam e que lêem, como David Copperfield, toda a vida.

Nenhum ponto de partida é neste caso inteiramente neutro. Nenhum modo de nos entregarmos à procura, de formular a pergunta, deixa de ter alguma sugestão quanto ao lugar onde se poderá encontrar as respostas.41 As perguntas formulam as coisas de um modo ou de outro, dizem-nos o que incluir e o que procurar. Qualquer modo de proceder implica uma concepção qualquer, ou concepções, de como passamos a saber, e em que partes de nós podemos confiar. Isto não significa que todas as escolhas de modo de proceder e de ponto de partida sejam meramente subjectivas e irracionais.42 Mas quer dizer que para nos atermos à racionalidade que está disponível (em contraste com a quimera do afastamento total, que não está disponível) temos de dar atenção àqueles aspectos de um modo de proceder que poderão influenciá-lo indevidamente numa ou noutra direcção, comprometendo-nos com a investigação séria de posições alternativas.

Aqui, a vida e a história da filosofia combinam-se para nos ajudar. Pois, na vida, usamos a nossa experiência, o nosso entendimento activo da vida, para reflectir sobre as diferentes concepções que encontramos, percorrendo-as, comparando as alternativas que apresentam, tendo por referência o nosso entendimento em construção do que é importante e daquilo com o qual podemos viver, procurando um ajuste entre a experiência e a concepção. E na história da filosofia moral encontramos também uma perspectiva de um ponto de partida inclusivo, e um método aberto e dialéctico que é, de facto, a descrição filosófica desta actividade da vida real e de como ela ocorre, quando realizado de modo meticuloso e sensível. Pois os proponentes de concepções filosóficas rivais em ética não concluíram, regra geral, que as suas investigações e resultados eram incomparáveis com os dos seus oponentes, ou comparáveis apenas recorrendo a um método de comparação que já empurra o juízo para um dos lados. Pelo contrário, apelaram constantemente para o método dialéctico inclusivo descrito primeiramente por Aristóteles, por ser um método que (a par da procura activa da vida) pode fornecer um procedimento abrangente ou de enquadramento no qual perspectivas alternativas podem ser devidamente comparadas, respeitando cada uma delas, bem com o entendimento da vida em construção a que cada uma responde. Filósofos tão diferentes quanto o utilitarista Henry Sidgwick e o kantiano John Rawls apelaram para a concepção aristotélica do modo filosófico de proceder, considerando que pode, pelo seu carácter abrangente, fazer justiça às posições rivais.43 Concordo com esta posição e sigo este exemplo — insistindo, também, que uma das virtudes salientes deste método é a sua continuidade com a “nossa aventura efectiva” à medida que procuramos a compreensão. (É importante distinguir o procedimento e o ponto de partida aristotélico da própria concepção ética de Aristóteles, que é apenas uma das concepções sob consideração.)

O modo de proceder aristotélico em ética começa com uma pergunta muito ampla e abrangente: “Como haverá um ser humano de viver?”.44 Esta pergunta não pressupõe qualquer demarcação específica do terreno da vida humana e por isso, a fortiori, nem a sua demarcação nos domínios separados do moral e do não moral. Isto é, não pressupõe a existência, entre as muitas finalidades e actividades que os seres humanos valorizam e a que se entregam, um certo domínio, o domínio do valor moral, que seja de especial importância e dignidade, e apartado do resto da vida. Nem pressupõe, como fazem os defensores da teoria utilitarista, que há um algo mais ou menos unitário que se possa considerar que um bom agente maximiza em cada escolha que faz. Também não pressupõe a negação destas teses; considera-as abertas à investigação no seio do modo de proceder — daí resultando que, até aqui, estamos a inspeccionar tudo o que Aristóteles inspecciona, e que efectivamente inspeccionamos: o humor juntamente com a justiça, a graciosidade além da coragem.

A investigação (tal como a descrevo mais demoradamente em “Perceptive Equilibrium”) é simultaneamente empírica e prática: empírica na medida em que se preocupa com a experiência de vida, e nela procura “indícios”; prática no sentido em que visa encontrar uma concepção com a qual os seres humanos possam viver, e viver em conjunto.

A investigação procede atentando nas principais posições alternativas (incluindo as do próprio Aristóteles, mas não só), confrontando-as entre si e com as crenças e sentimentos dos participantes, com o seu entendimento activo da vida. Nada se considera irrevisível neste processo, excepto a ideia lógica muito básica que afirmar implica negar, que asserir algo é excluir outra coisa qualquer. Os participantes não estão à procura de uma perspectiva que seja verdadeira por correspondência com uma realidade extra-humana, procuram antes o melhor ajustamento possível entre uma perspectiva e aquilo que há de mais profundo nas vidas humanas. Pede-se-lhes que imaginem, em cada estádio, o que menos seria dispensável para viverem bem, o que há de mais profundo nas suas vidas; e, de novo, o que lhes parece mais superficial e mais dispensável. Procuram coerência e ajuste na rede de juízos, sentimentos, percepções e princípios, tomada como um todo.

Nesta tarefa, as obras literárias desempenham um papel em dois níveis.45 Em primeiro lugar, podem intervir para garantir que temos uma concepção suficientemente rica e abrangente da pergunta de abertura e do procedimento dialéctico que lhe procura responder — abrangente o suficiente para incluir tudo o que o nosso entendimento da vida nos insta a considerar. “Perceptive Equilibrium” discute esta questão, mostrando como se pode alargar a concepção de John Rawls do modo aristotélico de proceder considerando a nossa experiência literária.46 E o estilo desta introdução ilustra a abrangência da abordagem aristotélica.

Mas segundo os termos do conflito da antiguidade entre a literatura e a filosofia, a própria escolha de escrever uma peça trágica — ou, podemos hoje dizer, um romance — expressa já certos compromissos valorativos. Entre estes parece haver compromissos com a importância ética de acontecimentos sem controlo, com o valor epistemológico da emoção, com a diversidade e não comensurabilidade das coisas importantes. As obras literárias (e daqui em diante (veja-se a § F) centrar-nos-emos em certos romances) não são instrumentos neutros para a investigação de todas as concepções. Na própria estrutura de um romance encontra-se uma certa concepção do que importa. Nos romancistas que estudamos aqui, quando encontramos uma personagem kantiana, ou qualquer outro expoente de uma posição ética que divirja da que anima a narrativa tomada como um todo (a Sra. Newsome de James, a Agnes e o Sr. Gradgrind de Dickens47), não é provável que essas personagens sejam bem vistos pelo leitor. E é-nos dado a saber que se os acontecimentos em que, como leitores, participamos, nos tivessem sido descritos por essas personagens, não teriam tido a forma literária que têm agora, e não teriam de todo em todo constituído um romance. Um sentido diferente do que é saliente teria ditado uma forma diferente. Em suma, ao consentir ver os acontecimentos no mundo do romance como o romance os apresenta, nós, como leitores, estamos já a afastar-nos de Gradgrind, da Sra. Newsome e de Agnes.

O meu segundo interesse nos romances é, pois, um interesse nesta ligação entre uma concepção peculiar da vida (ou uma família de concepções) e a estrutura destes romances. Defenderei, de facto, que há uma concepção ética peculiar (a que chamarei concepção aristotélica) que requer, para poder ser completa e adequadamente investigada e formulada, formas e estruturas como as que encontramos nestes romances. Assim, se a tarefa da filosofia moral for entendida como o tem sido, uma procura da verdade em todas as suas formas, exigindo uma investigação profunda e compreensiva de todas as alternativas éticas principais e a comparação de cada uma delas com o nosso entendimento activo da vida, então a filosofia moral precisa, para a sua completude, desses textos literários e da experiência de ler romances com gosto e atentamente. Isto envolve, claramente, uma expansão e reconstrução daquilo que se considera, desde há muito, que a filosofia moral é e do que inclui.

Nada poderia estar mais longe dos meus propósitos do que a sugestão de que devemos substituir o estudo das grandes obras reconhecidas das várias tradições filosóficas em ética pelo estudo de romances. Apesar de isto poder desapontar quem considera as posições moderadas enfadonhas, não tenho qualquer interesse nos ataques desdenhosos à teoria ética sistemática, ou à “racionalidade ocidental”, ou até ao kantismo ou ao utilitarismo, a que os romances, sem dúvida, revelam as suas próprias oposições. Faço uma proposta que deverá ser aceitável mesmo por kantianos e utilitaristas se, como Rawls e Sidgwick, aceitarem que a pergunta aristotélica e o seu procedimento dialéctico são bons guias em ética, estando por isso comprometidos metodologicamente com o estudo compreensivo de concepções alternativas. A proposta é que devemos acrescentar o estudo de certas obras literárias ao estudo destas obras, com o fundamento de que sem elas não obteremos uma formulação completamente adequada de uma concepção ética poderosa, que devemos investigar. Será claro que sou simpática a esta concepção ética e que apresento, juntamente com os romances, o princípio da sua defesa. Mas é apenas isso, o princípio, e não o fim. E no desenvolvimento completo do estudo, a investigação de perspectivas alternativas, nos seus próprios estilos e estruturas, desempenhariam um papel central. De facto, o trabalho desenvolvido nesta investigação mais vasta irá, como se argumenta em “Perceptive Equilibrium”, desempenhar um papel importante mesmo na compreensão dos romances, dado que vemos algo mais profunda e claramente quando compreendemos mais claramente aquilo a que se opõe.

Haverá quem objecte que nenhuma pergunta e nenhum modo de proceder pode possivelmente fazer justiça simultaneamente ao entendimento da vida que encontramos num romance de James e à perspectiva muito diferente da segunda Crítica de Kant, digamos. E é claro que admitimos que a perspectiva não é vazia de conteúdo. De facto, os modos de proceder da dialéctica aristotélica e as ideias perspicazes da perspectiva ética de Aristóteles, apesar de serem distintas em aspectos importantes, têm em muitos aspectos uma continuidade entre si, na medida em que o entendimento da vida que nos leva a incluir no modo de proceder geral uma atenção aos particulares, um respeito pelas emoções, e uma atitude exploratória e não dogmática perante as desconcertantes multiplicidades da vida, inclinar-nos-á também a ter alguma simpatia pela concepção aristotélica, que destaca estas características. Mas, em primeiríssimo lugar, o modo de proceder como um todo limita-se a incluir estas características: não nos diz, ainda, como valorizá-las. E insta-nos a considerar a uma luz favorável todas as posições significativas, e não apenas esta. Na sua abrangência e flexibilidade, e sobretudo a sua abertura, pode reivindicar plausivelmente ser uma investigação filosófica equilibrada de todas as alternativas, e não apenas uma defesa facciosa de uma delas. Além disso, o procedimento não incluiu estas características por razões teóricas arbitrárias: acolheu-as da vida, e incluiu-as porque o nosso entendimento da vida parecia incluí-las. Assim, se um modo de proceder que inclui o que a vida inclui se afasta de certas alternativas teóricas, isto é, ou pode ser, um sinal da estreiteza dessas alternativas teóricas.

Mas haverá quem diga que certamente que qualquer concepção de um modo de proceder que tenha de todo conteúdo irá incorporar uma concepção da racionalidade que pretende a uma tradição de pensamento e não a outra, e que não pode portanto conter ou explorar com bonomia os pensamentos de qualquer outra tradição. As tradições incorporam normas de racionalidade processuais que são parte constitutiva das conclusões substanciais que apoiam.48 Esta não é uma preocupação menor; mas penso que muito depende, aqui, do modo como a entendermos, de quão decididos estamos, ou não, a progredir com respeito à pergunta inicial. O modo de proceder aristotélico diz-nos para respeitar a diferença; mas também nos insta a procurar uma resposta consistente e partilhável à pergunta de como viver, resposta que capte aquilo que é mais profundo e mais básico, ainda que, necessariamente, tenha que abdicar de outras coisas para atingir esse objectivo. Nesta medida, um compromisso profundo para chegar a algum lado restringe a sua flexibilidade. Faz parte do próprio procedimento não nos ficarmos pela enumeração de diferenças e pelo veredicto de que não podemos fazer comparações que lhes façam justiça, que não podemos decidir racionalmente. Insta-nos a fazer tudo o que pudermos para compararmos e escolhermos o melhor que conseguirmos, sabendo que nenhuma comparação está talvez acima da crítica de outrem, uma vez que temos de traduzir cada uma das alternativas, com efeito, para os nossos próprios termos em construção e de contrastá-los com os recursos das nossas próprias imaginações, com o nosso próprio entendimento, reconhecidamente incompleto, da vida. (Temos de fazer notar aqui que é precisamente essa determinação para comparar e chegar a algo partilhável que constitui a motivação tanto de Rawls como de Sidgwick para escolher o modo de proceder aristotélico.) Então porquê persistir neste método deficiente, em vez de concluir simplesmente que toda a tradição ética é completamente incomparável com qualquer outra, não havendo qualquer ponto de partida único, nenhum único modo de proceder?

A resposta aristotélica é que isto é o que efectivamente fazemos — e aquilo que mais urgentemente temos de fazer mais e melhor. Perguntamos como viver. Comparamos e avaliamos uma tradição, um modo, uma resposta com outra — apesar de cada uma conter normas de racionalidade processual — sem nos deixarmos intimidar, na nossa carência, pelo carácter caótico dessa tarefa. O que proponho não é uma tarefa apenas teórica, mas algo urgentemente prático, que fazemos e temos fazer todos os dias.49 Se desejarmos considerar que os obstáculos a uma comparação das alternativas que lhes faça justiça são insuperáveis por razões de pureza metodológica, podemos sempre fazê-lo; mas o preço prático é imenso. E as nossas experiências comuns, as nossas perguntas activas práticas, dão uma unidade e centragem à procura que poderá não parecer que tem quando a consideramos apenas no plano da teoria. Como afirmou Aristóteles, “Todos procuramos não o modo de vida dos nossos antepassados, mas o bem” (Política, 126a). O modo de proceder aristotélico dá uma forma explícita a essa procura e insta-nos a dar-lhe continuidade. Queremos saber como as diferentes concepções éticas — incluindo as mais distantes de nós no tempo e no espaço — se ajustam ou não às nossas experiências e aos nossos desejos. E num mundo em que o discurso prático é e tem de ser cada vez mais internacional, precisamos tanto mais urgentemente de o fazer, o mais flexível e atentamente que conseguirmos, por mais que seja difícil fazê-lo bem. Como Charlotte Stant diz ao Príncipe (antes de se entregar a um projecto caótico, urgente e pleno de amor), “Que mais podemos fazer, que mais podemos realmente fazer?”51

Mas por que razão, pode outra pessoa objectar, quero eu arrastar a literatura para esta tarefa prática/filosófica? E não tem esta tarefa de não fazer demasiadas concessões à exigência filosófica de explicações para fazer de todo em todo justiça à literatura? Não está a literatura a ser transformada aqui num capítulo de um compêndio de ética, ficando assim reduzida e perdendo os seus contornos? A resposta a isto tem de ser, em primeiro lugar, que a literatura já faz parte da investigação prática; e que não são os leitores comuns, mas os teorizadores, que sentiram por vezes que a pressão de uma pergunta prática iria manchar a pureza do acabamento do texto, como uma mão suada numa pasta delicada de cabedal.52 A relação que efectivamente temos com os livros de que gostamos já é caótica, complexa, erótica. Lemos efectivamente “pela vida”, trazendo para os textos literários de que gostamos (bem como para os textos admitidamente filosóficos) as nossas perguntas prementes e as nossas perplexidades, procurando imagens daquilo que poderemos fazer e ser, e confrontando-as com as imagens que derivamos do nosso conhecimento de outras concepções — literárias, filosóficas e religiosas. E a entrega complementar a esta tarefa por meio da comparação explícita e da explicação não é, de modo algum, uma despromoção dos romances, mas antes uma expressão da profundidade e abrangência das alegações que quem gosta deles faz em seu nome. Profundidade, porque o procedimento prático aristotélico mostra com o que têm de ser comparados, com o que se considera serem os seus rivais: nomeadamente, as melhores e mais profundas das outras concepções filosóficas. Abrangência, porque o resultado da empresa dialéctica deve ser convencer não apenas as pessoas que já têm uma sensibilidade jamesiana, mas todas as pessoas interessadas na reflexão ética séria e no escrutínio imparcial de alternativas, que obras como estas contêm algo que não pode ser completamente formulado de outro modo e que não deve ser omitido.

Nem esta abordagem dialéctica das obras literárias as transforma, temos de voltar a insistir, em tratados sistemáticos, ignorando, ao fazê-lo, as suas características formais e o seu conteúdo misterioso, diversificado e complexo. É isto, de facto, precisamente isto, que queremos preservar e trazer para a filosofia — o que significa, para nós, apenas a procura da verdade, e que, por conseguinte, tem de se tornar diversificada e misteriosa e não sistemática se a verdade também o for, e na medida em que o for. As próprias qualidades dos romances que os tornam tão diferentes dos tratados abstractos e dogmáticos são, para nós, a fonte do seu interesse filosófico.

Martha Nussbaum
Love’s Knowledge: Essays on Philosophy and Literature (Oxford: Oxford University Press, 1990), pp. 23-29.

Notas

  1. Veja-se a discussão deste aspecto em “Perceptive Equilibrium”, neste volume; e também “Therapeutic Arguments” (veja-se a nota 26). E veja-se Diamond, “Having a Rough Story” (veja-se nota 40).
  2. Veja-se “Therapeutic Arguments” (veja-se a nota 26).
  3. John Rawls, A Theory of Justice, 46-53; Henry Sidgwick, The Methods of Ethics, 7.ª ed. (Londres, 1907), especialmente o prefácio à sexta edição (reimpresso na sétima).
  4. Bernard Williams apresenta uma defesa eficaz deste ponto de partida em Ethics and the Limits of Philosophy (acima, nota 40); veja-se também o meu A Fragilidade da Bondade, cap. 1, e “Perceptive Equilibrium”, neste volume.
  5. Uma terceira função para a literatura nesta investigação é descrita nas Notas a “Plato on Commensurability”, neste volume.
  6. Veja-se também H. Richardson, “The Emotions of Reflective Equilibrium”, no prelo.
  7. Sobre a Sra. Newsome, veja-se “Perceptive Equilibrium”; sobre Agnes, “Steerforth's Arm”, sobre Mr. Gradgrind, “Discernment”, neste volume.
  8. Para este desafio, veja-se Alasdair MacIntyre, Whose Justice? Which Rationality? (Notre Dame, 1988); discuto o argumento de MacIntyre numa recensão do The New York Review of Books (7 de Dezembro de 1989).
  9. Veja-se também Nussbaum, “Non-Relative Virtues: an Aristotelian Approach”, Midwest Studies in Philosophy, 13 (1988), 32–33; “Aristotle on Human Nature and the Foundations of Ethics”, num volume sobre a obra filosófica de Bernard Williams, org. J. Altham e P. Harrison, Cambridge University Press, 1991. Para um esboço o resultado político de tal investigação, veja-se Nussbaum, “Aristotelian Social Democracy”, in Liberalism and the Good, org. H. Richardson e G. Mara (Nova Iorque, 1990).
  10. Aristóteles, Política, 1268a 39 ss., discutido em “Non-Relative Virtues” (acima, n. 49).
  11. James, The Golden Bowl, III, 5.
  12. É curioso que nos últimos anos os especialistas em teoria literária que se alinham com o desconstrutivismo enveredaram decididamente em direcção ao ético. Jacques Derrida, por exemplo, escolheu falar na Associação Filosófica Americana sobre o tópico da teoria aristotélica da amizade (Journal of Philosophy 85 (1988), 632–644); Barbara Johnson, em A World of Difference (Baltimore, 1987), defende que a Desconstrução pode dar valiosos contributos éticos e sociais; e em geral parece haver um regresso ao ético e ao prático — se não, talvez, com a entrega rigorosa ao pensamento ético que caracteriza o melhor trabalho em filosofia moral, seja “filosófico” ou “literário”. Sem dúvida que podemos fazer remontar parte desta mudança ao escândalo relativo à carreira política de Paul de Man, que fez os teorizadores ficar ansiosos por demonstrar que a Desconstrução não implica negligenciar considerações éticas e sociais.
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