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Crítica
2 de Julho de 2016   Metafísica

Explicação e compreensão da acção

Georg H. von Wright
Tradução e adaptação de Vítor João Oliveira

Para avaliar uma acção, é necessário antes de mais compreendê-la.

Uma explicação por compreensão, para ser aceitável, deve satisfazer as três condições seguintes. Em primeiro lugar, deve poder estar de acordo sobre o que o agente fez. Em segundo lugar, deve determinar as razões do agente para realizar essa acção. Finalmente, deve determinar quais foram as razões, além das presentes, que levaram o agente efectivamente a agir. Nenhuma destas razões vale por si. A acção, as razões da acção e a relação entre acção e razões da acção formam um todo e é impossível estabelecer distinções conceptuais claras entre os seus elementos. Espero poder mostrar a seguir o significado deste facto e os problemas que envolve.

2. O que é uma razão da acção? Podemos dizer que uma razão da acção (ou de uma omissão) é que a acção (ou a omissão) é uma reacção adequada (ou uma “resposta” correcta). Dar uma resposta é a reacção adequada a uma questão; prestar um serviço é uma resposta adequada a um pedido; travar é a reacção adequada quando se excede largamente o limite de velocidade; fazer o que prometemos é a resposta adequada à promessa que fizemos. Quem promete tem uma razão para agir. Uma questão completamente diferente é saber se alguém, tendo uma razão para agir, realizará efectivamente a acção; também pode ter razões para se abster; ou até poderá agir, mas não para cumprir a promessa.

Nestes exemplos, a razão da acção é ora uma escolha que interpela o agente, digamos, a partir do exterior, ora uma escolha do próprio agente e que “exige” outras acções (por exemplo, manter uma promessa). Designemos por isso estas razões de externas. Chamarei de internas as razões de um segundo tipo, quer dizer, aquelas que não interpelam o agente a partir do exterior, mas que surgem de alguma forma do interior, por exemplo, quando procuramos evitar algo que detestamos ou tentamos escapar a uma ameaça; nesse caso, o agente acredita ou sabe que a sua acção é apropriada a um fim. Podemos também agir para obter o que desejamos ou para atingir um fim que fixamos. Também neste caso, a crença ou saber que a acção é apropriada constitui, em conjunto com a vontade de alcançar o fim, uma razão da acção.

É fácil ver que as razões do segundo tipo (internas) têm dois componentes. Chamemos, ao primeiro, cognitivo e, ao segundo, volitivo. Este corresponderá à intenção ou à vontade de realizar alguma coisa, enquanto que o primeiro corresponderá à crença (correcta ou não) de que uma certa acção é útil ou necessária para realizar um dado fim […].

No contexto da explicação da acção, falamos então de “motivos” ou de “móbeis”. Este último é frequentemente utilizado como sinónimo de “razão da acção”. Contudo, podemos encontrar certas diferenças na utilização destes termos e é interessante questionarmo-nos sobre a diferença entre a razão da acção e o motivo ou móbil de uma acção.

Quando obedeço a uma ordem dada por um superior, esta ordem é a minha razão para agir. Há quem fale em “motivo”, mas isso não me parece correcto. Ao contrário, quando obedeço por acreditar que vou provocar a fúria no meu superior, não parece correcto dizer que a crença é o motivo ou o móbil da minha acção. Então como descrever de forma precisa esta diferença entre razão da acção e motivo?

No nosso exemplo, estamos na presença de duas razões para agir. Uma é externa: deram-me uma ordem. A outra é interna: não quero provocar a fúria do meu superior e sei que, por isso, é melhor obedecer-lhe. Podemos sublinhar que a razão interna pressupõe a externa, mas também que a razão externa poderá ser ineficaz sem a razão interna.

O motivo está ligado à razão interna sem que possamos identificar de que forma: o motivo que me faz agir é – dissemos — a crença de provocar a fúria daquele que me deu a ordem. Mas não podemos afirmar que o motivo está ligado apenas à componente volitiva da razão interna, quer dizer, à minha intenção de não provocar a fúria do meu superior. Poderemos até afirmar que o motivo é a causa desta componente da razão da acção. Se não conheço a fúria da pessoa que me deu a ordem, não terei vontade de não a suscitar, e não possuirei uma razão interna para obedecer.

A relação entre motivo e componente volitiva da razão interna obriga a uma nova precisão. A intenção (o desejo, a vontade) de evitar a fúria do meu superior, é expressão da minha crença; este elemento e outras reacções similares “constituem-na” de alguma forma. Será falso afirmar que são “causados” pela crença. Ao dizer que o motivo “causa” a orientação da vontade, estamos a utilizar este termo de uma forma que pode ser considerada filosoficamente enganadora. O motivo não é “causa” da mesma forma que dizemos que o movimento de um corpo foi causado por um choque.

O medo e a fúria, o amor e o ódio, a atracção e a repulsa e outro tipo de paixões da alma, são móbeis ou motivos típicos da acção. Referem-se habitualmente a um objecto – uma coisa que se receia, se odeia ou se ama, a que aspiramos ou que queremos. Em certas circunstâncias (por exemplo, quando um objecto está presente ou pode ser alcançado), estes motivos e estes móbeis manifestam-se através da intenção de realizar uma acção que o agente acredita ser apropriada ou útil. Por outras palavras, nestas circunstâncias, o agente tem uma razão interna para realizar uma dada acção ou para se abster de a realizar.

As paixões enquanto tais não têm relação conceptual com a racionalidade ou o carácter racional do homem. Dizemos algumas vezes que são “irracionais” (em função do seu objecto ou da sua intensidade), mas dizemos bastantes vezes que são cegas. É verdade que o ódio, tal como o amor, podem cegar. Mas uma paixão “cega” pode muito bem ser o móbil de uma acção perfeitamente racional, sempre que se manifesta através da componente volitiva de uma razão da acção, em que a componente cognitiva é uma crença bem fundada no carácter apropriado da acção relativamente ao objecto da paixão (por exemplo, quando um assassino prepara com inteligência um homicídio a sangue frio).

[…]

3. Por vezes uma acção não possui apenas uma razão. Se é realizada, a sua explicação é geralmente desinteressante. Mas suponhamos que uma acção em que é evidente a razão para agir, não se realiza. Este caso torna-se bem mais interessante: pode ser que haja uma razão contrária para não a realizar (uma razão contrária a sua realização é uma razão a favor da omissão), e que a abstenção ou omissão se expliquem através do facto desta razão contrária ser mais forte (ter mais peso) que a razão.

O plano motivacional prévio de uma acção é complexo (ou composto) quando inclui uma razão para agir e uma razão contrária. A complexidade da motivação pode surgir também quando existem várias razões a favor e contra a realização de uma acção ou então quando existem razões para agir com forças diferentes. Quando existem várias razões a favor e contra a realização de uma acção, o agente deve “pesar” a “soma” das razões contrárias e tentar formular o “resultado da acção”.

A natureza composta da acção humana é um facto bem conhecido dos psicólogos. Mas, tanto quanto sei os filósofos – pelo menos aqueles que se inscrevem na tradição analítica da filosofia da acção – não tem, de um modo geral, prestado atenção ao papel das escolhas nas discussões sobre o problema da explicação da acção. Esta parcialidade deve ser corrigida o que fará com que as coisas apareçam sob um novo ângulo.

Consideremos o exemplo seguinte. Uma pessoa fez uma promessa. Tem, portanto, uma razão externa para executar uma acção particular. Ao mesmo tempo, é-lhe oferecida uma recompensa se realizar essa acção. A perspectiva de ser recompensada é-lhe agradável; tem agora também uma razão interna para cumprir a sua promessa. Mas consideremos que a pessoa sabe que a acção em causa é moral e criminalmente censurável. Tem, portanto, uma razão contrária (externa) para se abster. Ela deve pesar as razões a favor e as razões contra. A pessoa em causa fez uma promessa e nós devemos cumprir as nossas promessas. Prometemos-lhe uma recompensa e ela gostará de ser recompensada. Mas o que prometeu fazer é repreensível e é possível que neste caso a promessa não seja cumprida pelo seu autor.

Suponhamos que a pessoa tem a sua promessa. Como compreender (ou explicar) o seu comportamento? Será que é um “moralista intransigente” que considera que uma promessa deve ser sempre cumprida? Ou será uma pessoa insensível aos aspectos morais e de tal forma perversa que a única coisa que lhe interessa é a recompensa oferecida em caso de cumprimento da promessa? Ou então será que todas estas razões intervêm ao mesmo tempo na “força motriz” que a fará agir? Como resolver este problema?

Qualificamos por vezes as razões fortes como “boas” e as razões fracas como “más”. Os termos “bom” e “mau” podem servir para avaliar as razões do agir de um ponto de vista moral, mas não é esta a altura de abordar este aspecto.

4. As reacções ou ordens, ou as questões, ou as promessas, ou as prescrições e as regras, podem em todo o caso ser qualificadas de comportamentos institucionalizados, já que estão ligados à vida social. Chamarei de “externas” as razões de tais comportamentos.

O agente não está necessariamente consciente da razão externa para uma dada acção. Por exemplo, para que uma ordem dada a uma pessoa seja por ela percebida como razão para agir, ela deve, em primeiro lugar, compreendê-la (ou reconhecê-la de uma outra forma); em segundo lugar, deve conhecer suficientemente a língua (ou o simbolismo) através da qual (ou através do qual) a ordem foi dada; e, em terceiro lugar, deve compreender o “significado” da ordem, quer dizer, tem que saber que deve executar a ordem, agrade-lhe ou não. É só na presença destas três condições que uma ordem se torna em razão para agir, quer dizer, que se torna relevante para a explicação do comportamento de uma pessoa. Considerações análogas valem para outras razões externas. Para se integrar no plano motivacional prévio do agente, elas devem ser percebidas e compreendidas pelo agente. Se um estrangeiro que atravessa a nossa cidade não compreende o significado dos sinais de trânsito, então não estará motivado para os cumprir. Neste caso, criticaremos o indivíduo pela sua ignorância e até afirmaremos que ele “devia conhecer os sinais de trânsito”.

As coisas são diferentes no caso das razões para agir internas. Não podem ser “objectivamente” apresentadas sem que pertençam plano motivacional prévio do agente. Não se segue portanto que o agente aja necessariamente em conformidade com elas ou que lhes “preste” atenção de qualquer forma, como não se segue que tenha clara consciência da sua existência. Por outro lado, os móbeis de uma acção podem muito bem ser “inconscientes”, mas ainda assim eficientes.

Suponhamos que rejeito um convite para jantar dando como razão o facto de já ter aceite um convite similar para a mesma altura. A razão invocada é uma razão externa: “desculpo-me” ao rejeitar o convite. Mas será que a razão invocada é a “verdadeira” razão? Ou será porque jantar com X aborrece-me de morte ou porque sou bastante tímido ou porque não gosto de estar na companhia de muitas pessoas; por outro lado, posso dizer que Z me convidou e que gosto bastante de estar com Z (anseio mesmo por estar com Z).

Os elementos que referi fornecem as razões internas mais ou menos fortes (ou boas) para rejeitar o convite. Mas se me perguntarem porquê, direi apenas que já aceitei um outro convite similar. Pode dar-se o caso de nem sequer ter pensado nas outras razões, pois já tinha uma boa “desculpa”. É possível que não tenha sequer pensado que podia encontrar Z na casa de X. Se esse tivesse sido efectivamente o caso, se esta eventualidade não fazia parte do plano motivacional prévio do meu comportamento, a minha atitude relativamente a Z não intervém de modo algum na explicação da minha acção. Mas podemos estar seguros de que é assim? Diremos talvez: “Sabe perfeitamente que Z é bastantes vezes convidado por X e percebeu que há o risco de encontrar Z. Sendo certo que tem boas razões para evitar Z, deve ter sido por isso que rejeitou o convite de X”. Como saber?

Voltarei a este aspecto, mas por agora contento-me em chamar a atenção para os pontos seguintes. Primeiro, nem sempre vemos com clareza que razões a favor ou contra pertencem ao plano motivacional prévio do agente; segundo, as razões efectivamente presentes (por exemplo, que sou tímido ou que não me sinto à vontade no meio de desconhecidos) não determinam necessariamente o comportamento. Por outras palavras, devemos distinguir as razões presentes (existentes) das razões eficientes. Chamo pretexto a uma razão que é apresentada e que não é eficiente, mas que o próprio agente invoca como razão da acção. Apenas as razões eficientes e as razões contrárias fazem parte de uma verdadeira explicação.

Quando a motivação é complexa, diversas razões podem co-determinar a acção. Mas uma explicação da acção deve mencioná-las todas. Neste caso, não é obviamente possível dizer que uma acção foi realizada por uma razão determinada; a acção não tem uma mas diversas razões. No entanto, pode dizer-se que uma única razão ou certas razões em conjunto são ou foram determinantes para produzir a acção. Neste caso, diremos que a acção é sobredeterminada. (…)

5. Antes de passar à questão da ligação entre a acção e as razões da acção, é necessário precisar como se faz a atribuição a uma pessoa de uma dada acção e das razões dadas de um comportamento. Suponhamos que observamos um homem em vias de mexer as mãos e os braços. Numa mão tem uma chave e na outra a fechadura da porta de um armário. O que é que está prestes a fazer, ou para me exprimir como certos filósofos contemporâneos, sob que descrição o seu comportamento (quer dizer, os seus movimentos corporais) é intencional? Apresentam-se várias possibilidades. Pode muito bem ser que se prepare para abrir a porta do armário; é igualmente possível queria saber se é capaz de abrir a fechadura (supondo que se trata de um mecanismo complexo); uma terceira possibilidade é que apenas esteja prestes a meter a chave na fechadura (por vezes esquece-se que chaves do seu chaveiro pertencem a que fechaduras). No primeiro caso a sua intenção será realizada se a porta abrir, enquanto que, nos outros dois casos, realizará a sua intenção independentemente da porta se abrir.

A descrição do comportamento “puro”, quer dizer, dos movimentos corporais ligados a uma dada acção, nunca é suficiente para caracterizar a acção (que é efectivamente realizada) sem equívocos. É bastante importante compreender o seguinte: afim de determinar o que o agente fez, é necessário saber o que ele se propunha fazer antes de ter a intenção de o fazer, ou como se diz por vezes, antes de o querer fazer. O próprio agente pode sabê-lo, pelo que o “método” mais simples é interrogá-lo. Se não é exequível ou se não confiamos nas suas respostas, devemos continuar a observar o seu comportamento (por exemplo, observar se tira alguma coisa do armário) ou então tentar lembrarmo-nos de algo que tenha dito ou feito (antes de se ocupar da fechadura), por exemplo, se procurava alguma coisa que pudesse estar no armário.

Quando identificamos um comportamento como sendo uma acção, indicamos habitualmente uma razão (ou várias razões possíveis) dessa acção. Se o indivíduo do nosso exemplo queria tirar algo do armário, tinha uma razão para abrir a fechadura. Neste caso, a sua acção consistia em abrir a porta do armário e não, por exemplo, experimentar a chave. Como vemos, a identificação de um comportamento dado como sendo tal ou tal acção é ao mesmo tempo uma explicação rudimentar. Atribuímos ao agente razões para realizar essa acção. Com que legitimidade? Na maioria das vezes, baseando-nos noutras acções que vimos ser realizadas pelo mesmo agente ou que lhe atribuímos por outras razões. Resulta daqui que há uma interdependência entre, por um lado, a atribuição de uma dada acção a uma pessoa, e, por outro, a atribuição a essa pessoa de determinadas razões para uma acção deste tipo.

6. […] Para descobrir as razões da acção, devemos recorrer a outro tipo de critérios diferentes dos verbais, nomeadamente ao comportamento anterior da pessoa, na medida em que seja conhecido, ou até ao comportamento posterior.

A razão da acção não corresponde a um estado presente, a um momento determinado, a um acontecimento que se produz desse momento; trata-se de um facto “global” de duração indeterminada. No fim de contas, é com base nos comportamentos (verbais ou não) que atribuímos factos deste género a indivíduos lógicos que apelidamos de pessoas.

O comportamento a partir do qual atribuímos a uma pessoa as razões para uma dada acção, não é nem uma condição necessária nem uma condição suficiente da existência destas razões. […] É por isso que proponho que falemos destes comportamentos como critérios das razões da acção. Esta forma de empregar o termo “critério” vem-nos do segundo Wittgenstein.

Georg H. von Wright
“Poblèmes de l’explication e de la comprehensióm de l’action”, in Théorie de l’action: Textes majeurs de la philosophie analytique de l’action, de Marc Neuberg (Liége: Pierre Mardaga Éditeur, 1991), pp. 102–109.
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ISSN 1749-8457