O direito é freqüentemente visto como um emaranhado de problemas descritos em pilhas de papéis que são conduzidos de uma maneira obscura por burocratas especializados. É associado também a essa disciplina a figura do sofista, aquele que utiliza a persuasão a fim de, a qualquer custo, “vencer” um debate — este seria o advogado. Ao contrário do que esse estereótipo sugere, o direito é uma disciplina que suscita inúmeros problemas filosóficos e por isso exige argumentos cogentes e justificações. Essa exigência é mostrada de forma vívida por Mark Murphy neste livro introdutório de filosofia do direito.
O livro é composto por uma pequena introdução e seis capítulos temáticos. Na introdução o autor defende a tese de que uma boa análise filosófica deve partir do mais óbvio e intuitivo, dos lugares comuns acerca da filosofia do direito e seguir para questões mais difíceis e menos intuitivas da filosofia direito. Partir dos lugares-comuns do direito será importante para tentar definir padrões que tendem a ser aceitos por quase todas as pessoas. Essa análise do mais intuitivo para o menos intuitivo está presente em todo o livro e por isso cada capítulo é mais profundo e complexo do que o anterior.
Os lugares-comuns apresentados são: o direito é um fenômeno social; o direito é autoritário e o direito é para o bem comum. Quanto ao primeiro, o autor argumenta que o direito é ao menos parcialmente determinado por fatos sociais, sendo estes basicamente fatos construídos pela relação entre agentes racionais (o autor faz uma exposição precisa sobre o que torna um fato um fato social). O segundo trata do caráter impositivo de normas e punições àqueles que estão sob o direito; o direito não dá meros conselhos, mas exige certas condutas. Já o último lugar-comum é o de que o direito é para ser justificado por todos aqueles que vivem sob ele, e não só por uma classe ou outra.
Dizer que esses são os lugares-comuns, não implica dizer que não há problemas neles próprios e que não merecem uma análise cuidadosa. Contrariamente, é justamente a partir de discordâncias em relação a esses lugares-comuns que surgem os problemas mais complexos.
No primeiro capítulo aborda-se o problema mais conhecido da filosofia do direito: o conceito de direito. Esse problema decorre principalmente do desacordo filosófico quanto ao lugar-comum de que o direito é um fenômeno social. Nesse capítulo são expostas as principais teses e divergências dos chamados positivismo jurídico e direito natural. A divergência principal entre essas duas teses é que enquanto o direito natural consiste numa defesa da conexão necessária entre direito e moral, o positivismo defende que possivelmente não há essa conexão ou que o direito é exclusivamente composto por fatos sociais. Expõem-se de maneira breve e clara os argumentos de diversos autores, porém há certo grau de superficialidade na explicação da tese do positivismo jurídico exclusivo, que destoa um pouco em qualidade do restante do capítulo. Talvez seja uma surpresa para os brasileiros que o positivismo jurídico de Hans Kelsen não seja sequer mencionado no capítulo — o que mostra como a teoria de Kelsen é irrelevante para o debate atual e como os brasileiros interessados em filosofia do direito precisam rever a sua bibliografia.
O segundo capítulo examina quais são os cargos básicos em um sistema jurídico e quais as regras que constituem tais cargos e estabelecem padrões para seu bom desempenho. Os cargos básicos são: sujeito, legislador e juiz. São básicos por ser impossível imaginar um sistema jurídico viável sem esses três cargos. Daí algumas das questões levantadas em relação a eles: Por que devem os sujeitos obedecer à lei? Existem circunstâncias em que é legítimo desobedecer às leis? Os legisladores devem legislar de forma representativa ou objetiva? O que os juízes devem levar em conta na interpretação e aplicação da lei? É possível que os juízes julguem com critérios próprios sem violar a neutralidade da lei? Nessas questões, por extensão, são problematizados os lugares-comuns da autoridade e do bem comum.
O problema do conflito entre bem comum e autoridade é abordado no terceiro capítulo. “Quais são os objetivos primários do direito?” e “O que devemos reconhecer e cumprir através do direito?” são duas questões levantadas pelo autor. Neste capítulo ele pretende definir até que ponto o uso da autoridade do direito é legítimo a fim de promover o bem comum. Dentre as propostas que pretendem explicar esse problema uma das mais plausíveis e influentes é a do princípio do dano alheio de John Stuart Mill. O capítulo conta com uma seção inteira dedicada a esse princípio, bem como com outra seção de contra-argumentos.
No quarto e quinto capítulo a análise é focada na maneira pela qual o direito responde à violação de normas. São os temas dos capítulos, respectivamente, a natureza e objetivos do direito penal e a natureza e objetivos da responsabilidade civil. No capítulo referente ao direito penal há uma boa abordagem do debate entre as teorias utilitaristas da punição e as teorias da retribuição e também dos problemas decorrentes da compatibilidade entre as excludentes de ilicitude (legitima defesa, necessidade, compulsão, etc.) e o próprio conceito da punição. O quinto capítulo, o maior do livro, trata com amplitude os problemas filosóficos da responsabilidade civil; explora desde a análise econômica do direito até conceitos de justiça reparativa. Também são analisados um a um os elementos da responsabilidade civil: dever, rompimento contratual, relação causal e prejuízo.
O capítulo conclusivo do livro é dedicado às teorias que não aceitam os lugares-comuns do direito apontados pelo autor: o anarquismo filosófico, o marxismo, o feminismo, a teoria crítica racial, o realismo jurídico norte-americano e os estudos jurídicos críticos. O autor expõe as teorias e contra-argumenta no sentido de reforçar os lugares-comuns, apesar de conceder méritos a algumas dessas teorias.
Este livro é indispensável para aqueles que querem iniciar seus estudos de filosofia do direito e também para os interessados em ética e filosofia política. É recomendável mesmo para quem já tiver conhecimento de certa bibliografia nessa área, pois reúne de forma concisa e rigorosa os principais problemas da filosofia do direito. O maior mérito do livro é sem dúvida o didatismo: é perfeito para ser utilizado como bibliografia básica numa disciplina semestral. Infelizmente ainda não podemos contar com uma versão em português de livros como este na filosofia do direito.
Mark Murphy é professor de filosofia na Universidade de Georgetown, na área de filosofia moral, política e do direito. Na filosofia do direito é um dos filósofos mais originais, sendo um dos poucos contemporâneos que defendem o direito natural. É autor de Natural Law and Practical Rationality (2001), An Essay on Divine Authority (2002), Natural Law in Jurisprudence and Politics (2006), e foi organizador de Alasdair MacIntyre (2003). É também autor de um artigo sobre direito natural na Stanford Encyclopedia e um artigo introdutório sobre o mesmo tema em The Blackwell Guide to the Philosophy of Law and Legal Theory (2006).
Lucas Miotto Lopes