Em “A Puzzle about Belief” (Meaning and Use, ed. by A. Margalit, Reidel, Dordrecht, 1979, pp. 239-283), Kripke enuncia dois princípios que descreve como auto-evidentes. O primeiro é o princípio da descitação:
Se um locutor normal de inglês, sob reflexão, assente sinceramente a “P”, então acredita que P (p. 249).
O outro princípio é o da tradução:
Se um frase de uma língua expressa uma verdade nessa língua, então qualquer tradução dela para qualquer outra língua também expressa uma verdade (nessa outra língua) (p. 250).
Kripke deriva o seu puzzle a partir destes princípios. Aplicados a uma história sobre um locutor nativo de francês, Pierre, que aprende inglês pelo método directo, os princípios deixam-nos incertos sobre se Pierre acredita que Londres é bonita ou que Londres não é bonita. Kripke conclui que os contextos de crença parecem paradoxais e consequentemente que no presente momento há pouca justificação “[…] para usar a alegada falta de substituibilidade em contextos de crença para extrair qualquer conclusão significativa sobre os nomes próprios”. (p. 270)
Neste artigo, argumento que Kripke usa incorrectamente o princípio da tradução. Mas, primeiro, voltemos a ver rapidamente como surge o puzzle de Kripke. Como resultado do que ouviu em francês, Pierre está inclinado a afirmar “Londres est jolie”.a Mas depois de aprender inglês numa parte mal conservada de Londres, não se dando conta de que “Londres” e “London” referem o mesmo sítio, Pierre afirma “London is not pretty”. Pelos princípios de descitação e tradução aplicados ao francês, Pierre deveria ter crenças inconsistentes. Porém, Kripke sustenta que não podemos aceitar esta conclusão nem dar uma resposta racional à pergunta “Em que acredita Pierre?”
Suponha-se agora que Pierre faz uma pausa do seu estudo de inglês e passa um curto tempo em Paris. Decide regressar a Londres num comboio pelo novo túnel do canal, que só agora fora terminado e que nunca antes usou. Embarca no comboio em Paris e, de modo impressionante, em pouco tempo está a viajar pelo campo inglês. O comboio sofisticado (muito veloz) cedo pára numa estação onde Pierre vê um sinal com a inscrição “Londres”, ali colocado para auxílio dos visitantes franceses. Pierre diz:
1) Então isto é Londres. Sempre me questionei onde seria Londres. Pena que não tenho tempo para dar uma volta — tenho de chegar a Londres o mais cedo possível.
Pierre também podia, claro, expressar isto em francês. Pressupondo os princípios da descitação e da tradução, deveremos ter pouca dificuldade em atribuir-lhe uma crença, quer ele use francês ou o seu idiolecto inglês. Tomando a primeira frase que ele afirma, se aceitarmos o uso de Kripke de ambos os princípios, deveremos inferir:
2) Pierre acredita que isto é Londres.
Mas é claro que se fôssemos sentados ao lado de Pierre nesta ocasião, rejeitaríamos 2 por ser falsa. Se Pierre tivesse a crença referida em 2, sairia do comboio e não estaria em risco de continuar para Birmingham. Pierre acredita que isto não é Londres e acredita que isto é Londres. São estas as crenças que explicam o seu comportamento, e não estamos tentados a dizer que ele tem crenças inconsistentes. Mas não conseguiríamos explicar o seu comportamento, e teríamos de sustentar que tinha crenças inconsistentes, se seguíssemos Kripke e traduzíssemos o uso de Pierre de “Londres” por “Londres”.
Consideremos um exemplo menos rebuscado. Estamos sentados num comboio no metro de Londres com alguns turistas franceses. Eles falam francês ou franglês, ou a sua própria variedade de inglês aprendido como língua estrangeira. Seja o que for que falem, temos de traduzir pelo menos algumas das suas palavras para a nossa versão de inglês. Por exemplo, rapidamente percebemos que pronunciam “Leicester” de um modo que para nós é incorrecto, que pode ser representado simplesmente como “Lei-ces-ter”. Apontando para o seu mapa, eles dizem “Ali é Leicester Square” (ou dizem o equivalente em francês ou franglês). Seguindo os princípios da descitação e tradução usados por Kripke, dizemos “Eles acreditam que ali é Leicester Square”. Mas depois eles comentam: “Disseram-nos para ir a Leicester Square”. Neste caso, usam a pronúncia britânica padrão e nós vemos que tomam “Leicester” e “Lei-ces-ter” como palavras que referem sítios distintos. Naturalmente, não sairão do comboio quando virem o sinal com a inscrição “Leicester Square”. Ficarão sentados dizendo “Isto é Lei-ces-ter Square”. O princípio da descitação, aplicado à sua versão do inglês, continua a parecer auto-evidente. Mas nós certamente rejeitaremos “Leicester” como tradução de “Lei-ces-ter” e não concluímos “Eles acreditam que isto é Leicester Square”. Nós sabemos que eles não têm qualquer crença dessas, e como tal temos de lhes dizer que isto é Leicester Square. A diferença entre este caso e o exemplo de Kripke de “London” e “Londres” é que não há a prática corrente de traduzir “Lei-ces-ter” como “Leicester”, e por isso podemos obviamente considerar “Lei-ces-ter” de um modo que explique as acções dos turistas franceses.
Poderão ter-nos dito em francês básico que “London” é a tradução padrão de “Londres” mas no tipo de exemplo que Kripke desenvolve, e na sua extensão acima, temos de usar ambas as palavras para começarmos a descrever certas crenças fielmente. Um modo de olharmos para o caso de Pierre é dizer que, depois de ele aprender inglês, o seu idiolecto consiste em duas sublínguas, inglês e francês. “Idiolecto” é usado aqui num sentido lato para referir o total dos meios linguísticos de comunicação de Pierre. As suas sublínguas são normalmente mantidas bastante separadas, excepto em casos muitíssimo importantes como 1, no qual “Londres” ocorre numa frase inglesa.1 Confrontados com este idiolecto, não podemos necessariamente basear-nos em convenções comuns sobre como se traduz do francês para o inglês. No idiolecto de Pierre, “London” e “Londres” não são usadas permutavelmente, e temos de encontrar um modo de traduzir deste idiolecto para o nosso. O melhor que podemos fazer para formular as crenças de Pierre é levar “Londres” para os nossos idiolectos individuais (com efeito, dando-lhe uma tradução homófona). Da mesma forma, temos de usar ambas as palavras, “Leicester” e “Lei-ces-ter”, para formular as crenças dos turistas franceses. Uma pessoa vulgar diria que não podemos traduzir o uso de Pierre de “Londres” e o uso dos turistas de “Lei-ces-ter', mas teríamos de usar estes termos na nossa língua para formular as suas crenças. Tecnicamente, diríamos que a “Londres” e “Lei-ces-ter” tem de, pace Kripke, ser dada uma tradução homófona. Este é o único modo de explicarmos as acções de Pierre e dos turistas por meio das suas crenças.
Kripke constrói outro exemplo no qual um locutor nativo de inglês, Peter, não consegue perceber que Paderewski era quer um pianista de renome quer um político polaco; imagina que havia dois homens, um pianista e um político, chamados “Paderewski”. Pensando sobre o pianista, Peter por vezes diz “Paderewski tem talento musical”. Outras vezes, pensa no político e na sua experiência das capacidades musicais de homens desta classe e diz “Paderewski não tinha talento musical”. Parece seguir-se só do princípio da descitação que temos de atribuir crenças contraditórias a Peter.
Kripke admite numa nota de rodapé (p. 279) que poderá haver uma objecção a uma suposição implícita por trás deste exemplo: que o idiolecto de Peter pode ser traduzido homofonamente para a nossa língua. Como indica, podíamos argumentar que “Paderewski-o-pianista” e “Paderewski-o-político” deviam ser usados nas nossas frases acerca das crenças de Peter. Mas Kripke salienta que aceitaríamos a tradução homófona, sem questionar, antes de Peter ouvir acerca de (digamos) Paderewski — o pianista. Por que rejeitaríamos subitamente a tradução homófona quando Peter formula a sua ideia de Paderewski-o- pianista? A resposta é que consideramos este passo o único modo de conjugar as crenças de Peter com as suas acções.
Suponha-se que Peter é de ascendência polaca e sempre quis ter uma fotografia de Paderewski, um grande político da terra da sua mãe, mas que nunca soube que o seu herói também era um músico. Há duas possibilidades quando lhe mostram uma fotografia de um homem sentado ao piano com o título “Paderewski”. Peter pode não julgar tão improvável que um político pudesse tocar piano, pelo menos com um domínio básico. Irá então comprar a fotografia, e podemos continuar a traduzir “Paderewski” homofonamente. Ao invés, pode de imediato inferir que havia dois homens chamados “Paderewski” e recusar-se a comprar a fotografia. Neste caso, a compreensão de Peter de “Paderewski” muda, e temos portanto justificação para decidir que não deve mais ser traduzida homofonamente. Para esta possibilidade podemos traduzir o uso de Peter de “Paderewski” como “Paderewski-o-político” ou “Paderewski, o político” e concluir “Peter não acredita que isto é uma fotografia de Paderewski, o político”.
Os exemplos deste artigo reforçam os breves comentários de Putnam acerca da relação entre a tradução e a explicação da acção nos seus “Comentários” ao artigo de Kripke (p. 287). Mas não estabelecem que “London”, “Londres”, e “Paderewski” têm sentidos fregianos e não são designadores rígidos. Certamente que Pierre e Peter associam a estes nomes descrições ou propriedades vagas e gerais, mas este facto, só por si, não prova o que está em causa quanto aos nomes. Há outros casos nos quais a tentação de introduzir sentidos do tipo fregiano é muito mais forte. Por exemplo, podemos desenvolver um puzzle ao estilo do de Kripke no qual Peter não percebe que “a Caranguejo”, “M1” e “NGC 1952” referem todos a mesma nebulosa. Peter pode ouvir acerca da nebulosa Caranguejo em conversas vulgares acerca dos céus, mas poderá não identificar isto com o referente de “M1” e “NGC 1952” quando mais tarde ouve acerca destes nomes num curso de astronomia. Provavelmente associaria descrições definidas precisas a “M1” e “NGC 1952”, enunciando a correcta ascensão e declinação da nebulosa, tal como dadas nos catálogos relevantes de nebulosas. Poderíamos tentar expressar o conteúdo das suas crenças usando estas descrições, que estão tão intimamente relacionadas com os nomes que, poder-se-ia argumentar, dão os sentidos dos nomes. Talvez o próprio Kripke admitiria que estas descrições estão essencialmente relacionadas com as crenças de Peter e os seus juízos sobre possibilidade epistemológica e necessidade, dado o que diz numa nota de rodapé do seu artigo sobre “descrição convencional” (p. 273). Mas este é um tipo de caso muito invulgar, no qual a associação convencional entre os nomes e as descrições é explicitamente apresentada em livros de consulta. (Se não se aceitar que “M1” e “NGC 1952” sejam nomes, imagine que os catálogos associam nomes comuns a descrições.)
O que os exemplos neste artigo mostram é que Kripke aplica incorrectamente o princípio da tradução ao pressupor que o uso de “Londres” de todas as pessoas deve ser traduzido como “London”. Há claramente razões para reflectir outra vez nos pontos-chave acerca de nomes próprios, substituibilidade e crença.2