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Crítica
19 de Março de 2024   História da filosofia

Pitagorismo

Holger Thesleff
Tradução de Desidério Murcho

O pitagorismo foi uma escola filosófica e uma comunidade religiosa que se pensa ter sido fundada por Pitágoras de Samos, que se estabeleceu em Crotona, no sul de Itália, por volta de 525 a. C.

Características gerais do pitagorismo

O carácter do pitagorismo original é controverso, e o conglomerado de características díspares que exibia é intrinsecamente confuso. A sua fama deve-se, contudo, a algumas ideias muito influentes, nem sempre correctamente entendidas, que lhe foram atribuídas desde a Antiguidade. Estas ideias incluem o seguinte:

  1. A metafísica do número e a ideia de que a realidade, incluindo a música e a astronomia, é por natureza matemática, ao nível mais profundo;
  2. O uso da filosofia como meio de purificação espiritual;
  3. O destino celeste da alma e a possibilidade da sua elevação para se unir ao divino;
  4. O apelo a certos símbolos, por vezes místicos, como o tetraktys, a secção áurea e a harmonia das esferas;
  5. O teorema de Pitágoras; e
  6. A exigência de que os membros da ordem observassem uma lealdade e secretismo estritos.

Ao dar ênfase a certas experiências interiores e a verdades intuitivas só reveladas aos iniciados, o pitagorismo parece ter representado um subjectivismo espiritualista alheio à tendência do pensamento grego pré-socrático centrado na costa jónia da Ásia Menor, que procurava determinar qual é a substância cósmica básica.

Em contraste com esse naturalismo jónio, o pitagorismo era semelhante a tendências presentes nas religiões dos mistérios e em movimentos emocionais, como o orfismo, que afirmava com frequência conseguir atingir por meio da intoxicação uma revelação espiritual da origem divina da alma e da sua natureza. Contudo, tinha também aspectos que se ficavam aparentemente a dever à muito mais sóbria filosofia “homérica” dos jónios. Por exemplo, os pitagóricos mostravam interesse na metafísica, como os seus antecessores naturalistas, apesar de afirmarem encontrar a sua chave na forma matemática, e não numa qualquer substância. Aceitavam as doutrinas essencialmente jónias de que o mundo é composto por opostos (húmido-seco, quente-frio, e assim por diante) e com origem num ilimitado; mas acrescentaram a ideia de impor limite ao ilimitado e também o sentido de uma harmonia musical no Universo. Uma vez mais como os jónios, dedicaram-se à especulação astronómica e geométrica. Ao combinar uma teoria racionalista do número com uma numerologia mística, e uma cosmologia especulativa com uma teoria dos recessos mais profundos e enigmáticos da alma, o pitagorismo entrelaça racionalismo e irracionalismo mais inseparavelmente do que qualquer outro movimento do pensamento grego antigo.

Principais temas e doutrinas

O problema de descrever o pitagorismo torna-se difícil porque a imagem que nos chegou está longe de ser completa, baseando-se sobretudo num pequeno número de fragmentos anteriores a Platão (c. 428–348 a. C.) e em várias discussões de autores que escreveram muito mais tarde — a maior parte dos quais eram aristotélicos ou neoplatónicos. Contudo, apesar das incertezas históricas que têm atormentado os especialistas, o contributo do pitagorismo para a cultura ocidental tem sido significativo e justifica por isso o esforço, por mais inadequado que seja, para descrever o que terão sido as suas doutrinas. Além disso, o carácter heterogéneo das doutrinas pitagóricas tem sido bem documentado desde Heraclito, um filósofo grego clássico de inícios do século V que, zombando do conhecimento muito abrangente de Pitágoras, afirmou que “não nos ensina a ter inteligência”. Nunca houve provavelmente um sistema estritamente uniforme de filosofia pitagórica, nem de crenças religiosas, ainda que a escola tivesse uma certa organização interna. Pitágoras parece ter transmitido as suas ideias por meio de fecundos e crípticos akousmata (literalmente “o que se ouve”, em grego) ou symbola (símbolos). Os seus alunos transmitiram-nos, e deram-lhes em parte a forma de Hieroi Logoi (“Discursos Sagrados”), dos quais diferentes versões estavam em circulação a partir do século IV, interpretando-os segundo as suas convicções.

Religião e ética

A crença na transmigração das almas forneceu uma base para o modo de vida pitagórico. Alguns pitagóricos deduziram desta crença o princípio da “fraternidade de todos os seres”, cujas implicações éticas foram mais tarde sublinhadas na especulação do século IV. O próprio Pitágoras parece ter reivindicado um estatuto semidivino, intimamente associado ao deus superior Apolo; pensava que era capaz de se lembrar das suas encarnações anteriores, e assim saber mais do que os outros. A investigação do século XX sublinhou a presença no primeiro pitagorismo de traços xamânicos, derivados de práticas do culto do êxtase dos curandeiros trácios. As regras da vida religiosa que Pitágoras ensinava eram em grande parte ritualistas: evita falar do sagrado, veste roupas brancas, observa a pureza sexual, não mexas no feijão, e assim por diante. Parece ter também ensinado a purificação da alma por meio da música e da actividade mental (mais tarde denominada filosofia) para atingir encarnações superiores. “Ser como o Mestre” para “ficar mais próximo dos deuses” era o desafio que impunha aos alunos. A salvação, e talvez a união última com o cosmos divino, por meio do estudo da ordem cósmica, tornou-se uma das ideias principais da sua escola.

As teorias éticas e políticas avançadas que por vezes se atribui ao pitagorismo poderão em certa medida reflectir ideias desenvolvidas mais tarde, no círculo de Arquitas, o principal pitagórico do século IV. Mas a ideia comum entre os peripatéticos (a escola fundada por Aristóteles) de Pitágoras como educador dos gregos, que pregava publicamente o credo da humanidade, é claramente anacrónica. Vários autores peripatéticos interpretaram ao que parece alguns princípios — formulados na verdade só para uso esotérico, no seio da comunidade — como se se aplicassem a toda a humanidade: a lealdade interna, o recato, a autodisciplina, piedade e a abstinência exigida pelo sistema doutrinal original; a perspectiva mais elevada das mulheres, que se reflectiu na admissão das mulheres na escola; uma certa comunidade de propriedade; e talvez a formulação de um paralelo entre o macrocosmo (o Universo) e o microcosmo (a humanidade), em que (por exemplo) a ideia pitagórica de que o cosmos é um organismo foi aplicada ao estado, que por isso deveria misturar a monarquia, a oligarquia e a democracia num todo harmonioso — tudo isto foi universalizado.

Metafísica e teoria dos números

Segundo Aristóteles, a especulação numérica é a característica mais distintiva do pitagorismo. As coisas “são” números, ou são “parecidas” a números. Para muitos pitagóricos, este conceito significava que as coisas eram mensuráveis e comensuráveis ou proporcionais em termos de número — uma ideia de considerável importância na civilização ocidental. Mas houve também tentativas para dispor um certo mínimo de seixos de modo a representar a forma de uma coisa — como estrelas numa constelação que representam aparentemente um animal, por exemplo. Para os pitagóricos mesmo as coisas abstractas “têm” o seu número: a justiça está associada ao número quatro e a um quadrado, o casamento ao número cinco, e assim por diante. As associações psicológicas aqui presentes nunca foram clarificadas.

A harmonia do cosmos

A década sagrada (a soma dos primeiros quatro números), em particular, tinha uma importância cósmica no pitagorismo: o seu nome místico, tetraktys (que quer dizer aproximadamente “tetratídade”), sugere 1 + 2 + 3 + 4 = 10; mas pode também ser concebido como um “triângulo perfeito”.

Tetraktys

A especulação sobre o número e a proporção levou a um sentimento intuitivo de harmonia (“entreajuste”) do kosmos (“ordem das coisas”); e a aplicação do tetraktys à teoria da música revelou uma ordem oculta no domínio do som. Pitágoras poderá ter-se referido, vagamente, à “música dos céus”, que só ele aparentemente conseguia ouvir; e os pitagóricos posteriores pressupuseram aparentemente que as distâncias entre os corpos celestes e a Terra correspondiam de algum modo aos intervalos musicais — uma teoria que, sob a influência de concepções platónicas, resultou na famosa ideia da “harmonia das esferas”. Apesar de, para os primeiros pitagóricos, o número ser ainda uma espécie de matéria cósmica, como a água ou o ar propostos pelos jónios, ao destacar as proporções numéricas, a harmonia e a ordem deram um passo decisivo em direcção a uma metafísica na qual a forma é a realidade básica.

A doutrina dos opostos

Dos jónios, os pitagóricos adoptaram a ideia de opostos cósmicos que — talvez em segunda mão — aplicaram à sua especulação numérica. O principal par de opostos é o limitado e o ilimitado; o limitado (ou o limite), representado pelo ímpar (3, 5, 7, …), é uma força activa que produz ordem, harmonia e o “cosmos” no ilimitado, representado pelo par. Todos os tipos de opostos se “articulam” de algum modo no seio do cosmos, tal como o fazem no microcosmos de uma pessoa individual e da sociedade pitagórica. Havia também uma “tabela pitagórica dos dez opostos”, à qual Aristóteles se refere — limitado-ilimitado, ímpar-par, uno-múltiplo, direita-esquerda, masculino-feminino, repouso-movimento, recto-curvo, luz-escuridão, bem-mal e rectangular-oblongo. A disposição desta tabela reflecte uma concepção dualista que, contudo, não era aparentemente original da escola, nem aceite por todos os seus membros.

A metafísica pitagórica do número reflectia-se também na sua cosmologia. A unidade (1), sendo o ponto de partida da série de números e o seu princípio de construção, não é em si estritamente um número; pois ser um número é ser par ou ímpar, ao passo que do ponto de vista pitagórico o “uno” é visto como simultaneamente ímpar e par. Esta ambivalência aplica-se, analogamente, à totalidade do Universo, concebido como Uno. Havia também uma teoria cosmogónica (uma teoria das origens do cosmos) que explicava a geração dos números e das coisas-números a partir do limitador-ímpar e do ilimitado-par — uma teoria que, por fases que os estudiosos desconhecem, acabou por ser incorporada na filosofia de Platão, na sua doutrina da derivação das realidades sensíveis a partir de princípios matemáticos.

Matemática e ciência

O pensamento pitagórico era científico, tal como metafísico, e incluía desenvolvimentos específicos de aritmética e geometria, na ciência dos tons musicais e das harmonias, e na astronomia.

Aritmética

Os mais antigos resultados matemáticos dos primeiros pitagóricos são obscuros e muitíssimo disputáveis, de modo que o que se segue é um compromisso entre perspectivas imensamente divergentes de vários especialistas.

Na especulação sobre os números ímpares e pares, os primeiros pitagóricos usaram os chamados gnōmones (“esquadro de carpinteiro”). Segundo Aristóteles, os números gnómicos, representados por pontos ou seixos, eram dispostos como se vê na Figura 1. Se uma série de números ímpares for posta à volta da unidade como gnómones, produz sempre quadrados; assim, os membros da série 4, 9, 16, 25, … são números “quadrados”.

Figura 1

Caso se disponha números ímpares do mesmo modo, as imagens que resultam (que oferecem variações infinitas) representam números “oblongos”, como os das séries 2, 6, 12, 20, … (Figura 2).

Figura 2

Por outro lado, um triângulo representado por três pontos (como na parte superior do tetraktys) pode ser alargado com uma série de números naturais, para formar os números “triangulares” 6, 10 (o tetraktys), 15, 21, …. Este processo — que até agora era pitagórico — acabou mais tarde, talvez na Academia de Platão, por conduzir à especulação sobre números “poligonais”.

Provavelmente, os números quadrados dos gnómones foram desde cedo associados ao teorema de Pitágoras (que, contudo, já era provavelmente usado na prática, na Grécia, antes de Pitágoras), que assevera que, num triângulo rectângulo, um quadrado desenhado na hipotenusa tem a mesma área do que a soma dos quadrados desenhados nos seus lados; nos gnómones vê-se facilmente, no caso de um triângulo 3, 4, 5, por exemplo, que acrescentar um número gnómon quadrado a um quadrado forma um novo quadrado: 32 + 42 = 5,2 e isto constitui um método para encontrar dois números quadrados, a soma dos quais também é quadrado.

Alguns pitagóricos do século V parece que ficaram perplexos com aparentes anomalias aritméticas: as relações mútuas entre os números triangulares e quadrados; as propriedades anómalas do pentágono regular; o facto de o comprimento da diagonal de um quadrado ser incomensurável com os seus lados — ou seja, que nenhuma fracção composta de inteiros consegue exprimir esta proporção com exactidão (o decimal que daí resulta é por isso definido como irracional); e a irracionalidade das proporções matemáticas das escalas musicais. A descoberta dessa irracionalidade foi inquietante, porque tinha consequências fatais para a perspectiva ingénua de que o Universo pode ser expresso em números inteiros; diz-se que o pitagórico Hípaso terá sido expulso da comunidade, e segundo algumas fontes terá até sido afogado, porque destacou a irracionalidade.

No século IV, matemáticos de tendência pitagórica fizeram avanços significativos na teoria dos números irracionais, como a raiz quadrada de n (√n), sendo n qualquer número racional, quando desenvolveram um método para encontrar aproximações cada vez maiores à √2, formando conjuntos dos chamados números diagonais.

Geometria

Na geometria, não se pode atribuir aos pitagóricos quaisquer provas no sentido euclidiano. Preocupavam-se evidentemente, contudo, com alguma especulação sobre figuras geométricas, como no caso do teorema de Pitágoras, e o conceito de que o ponto, linha, triângulo e tetraedro correspondiam aos elementos do tetraktys, dado serem determinados por um, dois, três, e quatro pontos, respectivamente. Conheciam talvez métodos práticos para construir os cinco sólidos regulares, mas a base teórica dessas construções foi dada no século IV por matemáticos que não eram pitagóricos.

É notável que as propriedades do círculo não foram aparentemente do interesse dos primeiros pitagóricos. Mas talvez a tradição segundo a qual o próprio Pitágoras descobriu que a soma dos três ângulos de qualquer triângulo é igual a dois ângulos rectos seja de confiar. A ideia das proporções geométricas é provavelmente de origem pitagórica; mas a chamada secção áurea — que divide uma linha num ponto tal que a parte menor está para a maior como esta está para o todo — dificilmente é um contributo dos primeiros pitagóricos. Alguns avanços na geometria foram conseguidos mais tarde, por pitagóricos do século IV; por exemplo, Arquitas ofereceu uma solução interessante para o problema da duplicação do cubo — na qual se constrói um cubo com o dobro do volume de outro cubo dado — por meio do que é essencialmente um construção geométrica em três dimensões; e a concepção de geometria como um “fluxo” de pontos em linhas, de linhas em superfícies, e assim por diante, poderá ter sido um contributo de Arquitas; mas, no geral, os inúmeros feitos dos matemáticos que não eram pitagóricos foram de facto mais salientes do que os dos pitagóricos.

Música

Os feitos dos primeiros pitagóricos na teoria musical são um tanto menos controversos. A abordagem científica da música, na qual os intervalos musicais são expressos como proporções matemáticas, tem neles a sua origem, assim como a ideia mais específica de “médias” harmónicas. Bem no início, os pitagóricos descobriram empiricamente que os intervalos básicos da música grega incluíam os elementos do tetraktys, visto terem as proporções 1:2 (oitava), 3:2 (quinta) e 4:3 (quarta). A descoberta pode ter sido feita, por exemplo, em pífaros ou flautas ou instrumentos de cordas: o tom de uma corda fixada no meio é uma oitava mais alta do que a corda completa; o tom de uma corda fixada a 2/3 é uma quinta mais alta; e a 3/4 uma quarta. Além disso, deram-se conta de que se consegue a subtracção dos intervalos dividindo estas proporções entre si. No decurso do século V, calcularam os intervalos da habitual escala diatónica, sendo o tom representado por 9:8 (a quinta menos a quarta); ou seja, 3/2 ÷ 4/3, e o semitom por 256:243 (a quarta menos dois tons); ou seja, 4/3 ÷ (9/8 × 9/8). Arquitas introduziu algumas modificações nesta doutrina e estabeleceu também as relações das notas na escala cromática (12 tons) e na enarmónica (que diz respeito a diferenças diminutas, como as existentes entre o Lá bemol e o Sol sustenido, que num piano são produzidas pela mesma tecla).

Astronomia

Nas suas perspectivas cosmológicas, os primeiros pitagóricos não diferiam provavelmente muito dos seus predecessores jónios. Faziam questão de estudar os céus estrelados; mas — com a possível excepção da teoria dos intervalos musicais no cosmos — não se pode atribuir-lhes novos contributos para a astronomia, com qualquer grau de probabilidade. Em finais do século V, ou possivelmente no IV, um pitagórico abandonou corajosamente a perspectiva geocêntrica e postulou um modelo cosmológico no qual a Terra, o Sol e as estrelas circulam em torno de um fogo central (invisível) — uma perspectiva tradicionalmente atribuída a um pitagórico do século V, Filolau de Crotona.

História do pitagorismo

A vida de Pitágoras e as origens do pitagorismo surgem-nos esbatidas num espesso véu de lenda e tradição semi-histórica. As fontes bibliográficas das doutrinas dos pitagóricos apresentam problemas extremamente complicados. Surgem dificuldades especiais em resultado da transmissão oral e esotérica das primeiras doutrinas, da profusa acumulação de lendas tendenciosas, e da quantidade considerável de confusão que foi provocada pela cisão da escola, no século V a. C. No século IV, a inclinação de Platão em direcção ao pitagorismo criou uma tendência — já manifesta em meados do século nas obras dos seus alunos — para interpretar conceitos platónicos como se fossem originalmente pitagóricos. Mas o cepticismo radical quanto à confiança das fontes que alguns especialistas manifestaram foi em geral abandonado. Parece agora possível extrair fragmentos de provas fidedignas de variadíssimos autores da Antiguidade, como Porfírio e Jâmblico.

A maior parte destas fontes bibliográficas remontam, em última análise, ao ambiente de Platão e Aristóteles; e aqui a importância de um dos estudantes de Aristóteles tornou-se óbvia, a saber, o musicólogo e filósofo Aristóxenes que, apesar do seu tendenciosismo, tinha informação em primeira mão, independente do ponto de vista da Academia de Platão. O papel desempenhado por Dicearco, outro dos estudantes de Aristóteles, e pelo historiador siciliano Timeu, de inícios do século III a. C., é menos claro. A credibilidade do relato de Aristóteles sobre o pitagorismo foi também sublinhada, contra as dúvidas a que alguns especialistas deram voz; mas as fontes de Aristóteles, por seu lado, dificilmente vão mais longe do que finais do século V (talvez até Filolau). Além disso, há sugestões dispersas em vários dos primeiros autores e em alguns fragmentos substanciais dos escritos pitagóricos do século IV. O mosaico da reconstrução tem por isso de ser em alguma medida subjectivo.

Pitagorismo nascente

No seio do movimento pitagórico da Antiguidade, pode-se distinguir quatro períodos principais: o nascente, que data de finais do século VI a. C. e abrange até ao ano 400 a. C.; o pitagorismo do século IV; as tendências helenísticas; e o neopitagorismo, um revivalismo que ocorreu em meados do século I d. C. e que durou dois séculos e meio.

Origens

As origens do pitagorismo são complexas, mas consegue-se distinguir dois grupos principais de fontes. Os filósofos jónios — Tales, Anaximandro e Anaxímenes, entre outros — deram a Pitágoras o problema de um princípio cósmico único, a doutrina dos opostos, e os traços de matemática oriental que se encontra no pitagorismo; e dos técnicos da sua terra natal, a Ilha de Samos, Pitágoras aprendeu a compreender a importância do número, das medições e das proporções. Os cultos e crenças populares comuns no século VI, que se reflectiam nas doutrinas do orfismo, apresentaram-lhe as noções de ocultismo e ritualismo, e a doutrina da imortalidade individual. Dados os traços xamânicos do pitagorismo, que fazem lembrar os cultos trácios, é interessante fazer notar que Pitágoras parece ter tido um escravo trácio.

Comunidades pitagóricas

A escola aparentemente fundada por Pitágoras em Crotona, no sul da Itália, parece ter sido sobretudo uma comunidade religiosa centrada em Pitágoras e nos cultos de Apolo e das Musas, as deusas patronas da poesia e da cultura na Antiguidade. Foi talvez sucessivamente institucionalizada e recebeu diferentes classes de membros esotéricos e de simpatizantes exotéricos. O rigorismo e as observâncias rituais e éticas exigidas aos membros não tem paralelo na Grécia dos primórdios; além das regras de vida já mencionadas, está razoavelmente bem atestado que se exigia secretismo e um longo silêncio durante o período de iniciação. Os associados exotéricos, contudo, eram politicamente activos e estabeleceram uma hegemonia crotoniana no sul de Itália. Por volta de 500 a. C., um golpe de estado por parte de um grupo rival levou Pitágoras a refugiar-se em Metaponto, onde morreu.

No início do século V, inspirando-se na escola original de Crotona, existiam comunidades pitagóricas em muitas cidades do sul de Itália, o que levou a alguma diferenciação e dispersão doutrinal. Com o correr do tempo, a política dos partidos pitagóricos tornou-se decididamente antidemocrática. Por volta de meados do século, uma revolução democrática violenta varreu o sul de Itália; em resultado disso, muitos pitagóricos foram mortos, e só escaparam uns poucos, entre eles Lísis de Tarento e Filolau, que foram para a Grécia e formaram pequenos círculos pitagóricos em Tebes e Fliunte.

Duas facções pitagóricas

Pouco se sabe da actividade pitagórica durante a última parte do século V. A diferenciação da escola em duas facções principais, posteriormente denominadas akousmatikoi (de akousma, a saber, as doutrinas esotéricas) e mathēmatikoi (de mathēmatikos, “científico”), poderá ter ocorrido nessa altura. Os acusmáticos dedicavam-se à observância de rituais e regras, e à interpretação das sentenças do mestre; os “matemáticos” ocupavam-se dos aspectos científicos do pitagorismo. Filolau, que era um dos matemáticos, publicou provavelmente uma síntese da filosofia e ciência pitagóricas em finais do século V.

Pitagorismo do século IV

Na primeira metade do século IV, Tarento, no sul da Itália, ganhou uma importância significativa. Sob a liderança política e espiritual do matemático Arquitas, que era amigo de Platão, Tarento tornou-se um novo centro de pitagorismo, do qual os acusmáticos — pitagóricos que não simpatizavam com Arquitas — saíram, passando a viajar como ascetas mendicantes por todo o mundo de língua grega. Os acusmáticos preservaram, ao que parece, alguns dos mais antigos Hieroi Logoi e das práticas rituais. O próprio Arquitas, por outro lado, concentrou-se em problemas científicos, e a organização da sua comunidade pitagórica era evidentemente menos rigorosa do que a da escola anterior. Depois da década de 380, houve um intercâmbio entre a escola de Arquitas e a Academia de Platão, relação essa que torna quase impossível separar os feitos originais de Arquitas dos trabalhos comuns.

A era helenística

Apesar de a escola de Arquitas se ter aparentemente afundado em inactividade depois da morte do seu fundador (provavelmente depois de 350 a. C.), os Académicos da geração seguinte continuaram a “pitagorizar” doutrinas platónicas, como a do Uno supremo, da díade indefinida (um princípio metafísico), e a alma tripartida. Ao mesmo tempo, vários peripatéticos da escola de Aristóteles, incluindo Aristóxeno, coligiram lendas pitagóricas e aplicaram-lhes noções éticas contemporâneas. Na era helenística, as perspectivas académicas e peripatéticas deram origem a uma bibliografia antiquária bastante extravagante sobre o pitagorismo. Apareceu também uma massa imensa e ainda mais heterogénea de escritos apócrifos falsamente atribuídos a diferentes pitagóricos, como se se estivesse a tentar reactivar a escola. Os textos atribuídos a Arquitas mostram filosofias académicas e peripatéticas misturadas com algumas noções que eram originalmente pitagóricas. Outros textos foram atribuídos ao próprio Pitágoras ou aos seus alunos mais próximos, imaginados ou reais. Alguns mostram, por exemplo, que o pitagorismo passara a confundir-se com o orfismo; outros sugerem que Pitágoras era considerado um mágico e um astrólogo; há também indicações de Pitágoras, “o atleta” e “o nacionalista dório”. Mas os autores anónimos desta bibliografia pseudopitagórica não conseguiram restabelecer a escola, e as congregações “pitagóricas” formadas no início da Roma imperial parece que pouco tinham em comum com a escola original de pitagorismo estabelecida em finais do século VI a. C.; eram facções ritualistas que adaptaram, eclecticamente, várias práticas ocultistas.

Neopitagorismo

Com o sábio asceta Apolónio de Tiana, por volta de meados do século I d. C., surgiu uma nova tendência neopitagórica. Apolónio estudou as lendas pitagóricas dos séculos anteriores, criou e propagou o ideal de uma vida pitagórica — de sabedoria oculta, pureza, tolerância universal, e aproximação do divino — e sentia que era uma reencarnação de Pitágoras. Devido às actividades de platónicos neopitagóricos, como Moderato de Cádiz, um trinitário pagão, e o aritmético Nicómaco de Gérasa, ambos do século I d. C., e, nos séculos II e III, Numénio de Apameia, precursor de Plotino (cuja interpretação do platonismo marcou uma nova era), o neopitagorismo passou gradualmente a fazer parte da expressão de platonismo conhecida como neoplatonismo; e fê-lo sem ter conseguido conquistar um sistema escolástico próprio. O fundador de uma escola síria de neoplatonismo, Jâmblico, um aluno de Porfírio (que por sua vez foi aluno de Plotino), considerava-se um sábio pitagórico e escreveu a última grande síntese de pitagorismo, por volta de 300 d. C., em que se reflete a maior parte das mais diversas tradições pós-clássicas. Uma característica dos neopitagóricos era o interesse central no modo de vida pitagórico e na pseudociência do misticismo numérico. A nível mais popular, Pitágoras e Arquitas eram recordados como mágicos. Além disso, já se sugeriu que as lendas pitagóricas foram também influentes por terem orientado a tradição monástica cristã.

Tendências medievais e modernas

Na Idade Média, a concepção popular de Pitágoras como mágico foi combinada com a ideia de que seria o pai do quadrivium — ou seja, das artes liberais mais especializadas do currículo. A partir do Renascimento italiano, algumas ideias “pitagóricas”, como a tétrade, a secção áurea e as proporções harmónicas, foram aplicadas à estética. Além disso, para muitos humanistas, Pitágoras era o pai das ciências exactas. No início do século XVI, Nicolau Copérnico, que desenvolveu a perspectiva de que a Terra orbita o Sol, considerava que o seu sistema era essencialmente pitagórico ou “filolaico”, e dizia-se que Galileu era pitagórico. Gottfried Wilhelm Leibniz, o racionalista do século XVII, parece ter sido o último grande filósofo e cientista que considerava que fazia parte da tradição pitagórica.

É duvidoso que a filosofia moderna avançada alguma vez tenha bebido de fontes consideradas distintamente pitagóricas. Contudo, noções platónicas-neoplatónicas, como a concepção matemática da realidade ou a união do filósofo com o Universo, assim como várias crenças místicas, é ainda provável que sejam consideradas de origem pitagórica.

Avaliação

A história da projecção do pitagorismo no pensamento posterior indica quão férteis eram alguns dos seus conceitos nucleares. Platão foi aqui o grande catalisador; mas é possível vislumbrar por detrás dele, ainda que indistintamente, uma série de ideias pitagóricas de potencial importância máxima: a combinação de esoterismo religioso (ou exclusivismo) com os germes de uma nova filosofia da mente, presente na crença na progressão da alma em direcção à actualização da sua natureza divina e em direcção ao conhecimento; a ênfase na ordem e harmonia, e no limite como bem; a primazia da forma, proporção e expressão numérica; e, na ética, uma ênfase em virtudes como a amizade e o recato. O facto de Pitágoras, nas eras posteriores, ter também passado a ser concebido como nacionalista dório, desportista, educador do povo ou grande mágico é uma consequência mais curiosa da produtividade das suas doutrinas.

Holger Thesleff
Encyclopedia Britannica (12 de Janeiro de 2024)

Bibliografia

A colecção de fragmentos de Hermann Diels e Walther Kranz, Die Fragmente der Vorsokratiker, 6.ª ed., vol. 1 (1951), é insuficiente; encontra-se complementos em Maria Timpanaro Cardini (ed.), Pitagorici: Testimonianze e frammenti, 3 vol. (1958–1964); e em Cornelia J. de Vogel, Pythagoras and Early Pythagoreanism (1966). Escritos dos pseudopitagóricos estão em Holger Thesleff (ed.), The Pythagorean Texts of the Hellenistic Period (1965).

A melhor introdução abrangente ao pitagorismo é o longo capítulo “Pythagoras and the Pythagoreans,” in W. K. C. Guthrie, A History of Greek Philosophy, vol. 1, pp. 146–340 (1962). Abordagens algo diferentes foram assumidas por de Vogel (op. cit.); e James A. Philip, Pythagoras and Early Pythagoreanism (1966), obras que exigem uma crítica mais activa por parte do leitor. Referências bibliográficas razoavelmente completas da discussão do pitagorismo até 1960 estão em Walter Burkert, Weisheit und Wissenschaft: Studien zu Pythagoras, Philolaos, und Platon (1962; trad. ingl., Lore and Science in Ancient Pythagoreanism, 1972), uma obra muitíssimo técnica e por vezes excessivamente crítica. Outras discussões técnicas encontram-se nos artigos “Pythagoras” e “Pythagoreer” in Pauly-Wissowa Realencyclopädie, vol. 47, (1963), e vol. supl. 10 (1965) — de entre os autores, Kurt Von Fritz e H. Dorrie chegam a conclusões menos controversas do que B. L. van Der Waerden.

O pitagorismo helenístico é abordado em Holger Thesleff, An Introduction to the Pythagorean Writings of the Hellenistic Period (1961); aditamentos e correcções encontram-se em Entretiens Fondation Hardt, vol. 18 (1972). O neopitagorismo é abordado em Philip Merlan, From Platonism to Neoplatonism (1953).

L’Année philologique (anual), sob o título “Pythagorica” e sob o nome dos vários pitagóricos fornece bibliografias actualizadas.

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