Platonismo
M. J. Inwood
Tradução de Desidério Murcho
O termo “platonismo” refere-se 1) às doutrinas de Platão; ou 2) a uma doutrina central de Platão, especialmente a teoria das Formas, ou Ideias, ou uma doutrina que com ela tenha alguma semelhança relevante, como a perspectiva (que contrasta com o “construtivismo”) de que as entidades lógicas e/ou matemáticas subsistem independentemente tanto do mundo empírico como do pensamento humano (Frege); ou 3) à tradição de pensadores que declaravam fidelidade a Platão, independentemente de as suas doutrinas serem de facto de Platão.
A carreira literária de Platão durou cinquenta anos e, à parte algumas cartas de duvidosa autenticidade, só escreveu diálogos nos quais ele próprio nunca aparece, sendo na melhor das hipóteses representado por um participante principal — habitualmente, Sócrates, ainda que nem sempre. É comum dividir os diálogos em três grupos:
- Os primeiros diálogos consideram uma questão como a definição de virtude ou se esta é susceptível de ser ensinada, e examinam várias respostas, mas não subscrevem habitualmente uma conclusão positiva; estes diálogos e as suas maneiras típicas de proceder são comummente conhecidos como “socráticos” e não “platónicos”.
- Os diálogos do período intermédio, como A República, que expõem doutrinas metafísicas, políticas e psicológicas. São estas doutrinas que é mais comum associar a Platão e que são conhecidas como “platónicas”.
- Os diálogos tardios, como O Sofista, que reavaliam e modificam as doutrinas do período intermédio.
Mesmo nos dois últimos períodos, os diálogos diferem significativamente em método e doutrina. Por isso, não é fácil extrair das obras de Platão um conjunto único e coeso de doutrinas. (O neoplatónico Olimpiodoro diz que Platão sonhou que se tornara um cisne que voa de árvore em árvore, iludindo as flechas dos caçadores. Isto significa que Platão ilude os intérpretes, e que as suas obras têm de ser “entendidas em muitos sentidos, tanto fisicamente como ética, teológica e literalmente”). Mas é tentador supor que Platão tinha uma perspectiva coerente sobre as questões levantadas e sobre as doutrinas expostas pelas suas personagens, ou é pelo menos mais tentador do que supor que Shakespeare tinha uma doutrina coerente que se possa extrair das intervenções das suas personagens. Muitos intérpretes tentaram extrair um sistema de Platão, nomeadamente Hegel que, considerando que a forma do diálogo não era essencial (ao contrário de Schleiermacher), lhe atribuía um sistema tripartido constituído por dialéctica, filosofia da natureza e filosofia do espírito. A maior parte dos autores que se têm considerado “platónicos” é devido à adesão a doutrinas supostamente platónicas, e não devido aos seus métodos, nem à forma do diálogo. Mas diferentes pensadores dão destaque a diferentes aspectos do seu legado.
O platonismo como tradição divide-se em seis grandes períodos: 1) A Academia Antiga; 2) A Academia Helenística (a “Academia Média” e a “Nova Academia”); 3) O neoplatonismo antigo; 4) O platonismo medieval; 5) O Renascimento; 6) O período moderno.
- Depois da morte de Platão, o seu sobrinho Espeusipo (405–335 a. C.) tornou-se director da Academia, e o seu sucessor em 339 foi Xenócrates (396–314 a. C.). (A razão que terá provavelmente levado o mais destacado aluno de Platão a não ser o seu sucessor é que Aristóteles não podia ter propriedades naquela cidade, por não ser um cidadão de Atenas, e não, como sugere Anscombe, devido à sua heterossexualidade.) Continuaram a trabalhar, à semelhança do trabalho tardio de Platão, sobre metafísica, lógica e matemática.
- Arcesilau, o sexto director da Academia, defendeu o cepticismo e usou-o especialmente contra o estoicismo. Carnéades continuou e alargou esta abordagem. O cepticismo académico sublinhava a sua continuidade com os primeiros diálogos aporéticos, e persistiu durante dois séculos. O Contra Academicos (386 d. C.) de Agostinho opõe-se ao cepticismo que conhecia do Academica de Cícero, mas tentou reconciliá-lo com o neoplatonismo que aprendera com Plotino, defendendo que a Academia tinha uma doutrina secreta que não revelava a estranhos. Com Antíoco de Ascalão (c. 130–68 a. C.), a Academia abandonou o cepticismo e adoptou uma síntese de platonismo, estoicismo e aristotelismo.
- Antíoco preparou o terreno para o chamado “platonismo médio”, representado, entre outros, pelo anticristão Celso (segunda metade do século II d. C.). No século II, Numénio de Apameia tentou eliminar do platonismo acréscimos posteriores, e considerava que o resultado era o mesmo que o pitagorismo. Porém, os maiores platónicos do período médio estavam em Alexandria: Filo (c. 25 a. C.–50 d. C.), que combinou o platonismo com o judaísmo, Clemente (c. 150–215 d. C.) e, mais tarde, Orígenes (184–254) que, como Plotino, foi aluno de Amónio Sacas (c. 175–242), que é geralmente considerado o fundador do neoplatonismo. (A distinção entre o platonismo médio e o neoplatonismo não é, contudo, nítida: a partir do século I a. C., o platonismo transformou-se num sistema metafísico ou teológico que incluía, por exemplo, Ideias como pensamentos no espírito de Deus, o ideal da assimilação por Deus, e intermediários sobrenaturais entre os homens e Deus; o elemento aporético de Platão foi ignorado.) Os alexandrinos tornaram-se cristãos, e inclinavam-se menos para a teurgia do que os atenienses pagãos. Plotino, o maior dos neoplatónicos, não foi membro da Academia, nem um seguidor de Porfírio (c. 232–304), o autor de uma introdução (Isagoge) às Categorias de Aristóteles, que na tradução latina de Boécio se tornou uma obra medieval canónica, nem Iâmblico (m. c. 330). Iâmblico foi responsável por muitos dos conceitos, especialmente as tríades, que surgem em Proclo. A Academia foi encerrada por Justiniano em 529 d. C. (ao passo que a escola alexandrina sobreviveu à conquista árabe de 641), mas por meio das obras de Agostinho (Plotino) e de Pseudo-Dionísio, o Areopagita (Proclo), o neoplatonismo entrou no mundo cristão medieval.
- O platonismo persistiu nas três esferas principais do mundo medieval: Islão, Bizâncio e o Ocidente latino. O impacto do platonismo nos árabes, devido aos seus interesses predominantemente científicos, foi inferior ao de Aristóteles. Mas Alfarábi foi influenciado não apenas pelo estado ideal da República de Platão, mas também pelo inteiramente apolítico Plotino. O seu seguidor Avicena desenvolveu ainda mais o neoplatonismo. Em Bizâncio, os diálogos de Platão continuaram a ser lidos, e o reacender do platonismo levado a cabo por Michael Psellos (1018–1078/1096) preparou o terreno para os defensores posteriores de Platão contra Aristóteles: Basílio Bessarion (1403–1072) e Jorge Gemisto Pletão (c. 1355–1450). Difundiram o platonismo em Itália, e Pletão foi a inspiração de Cosme de Médici para fundar uma nova Academia platónica em Florença, em 1459. Foi dirigida por Marsílio Ficino (1433–1499) e atraiu refugiados gregos de Constantinopla, que com eles trouxeram textos platónicos até então desconhecidos. Funcionou até 1521. No Ocidente, as obras filosóficas originalmente disponíveis eram platónicas: o Timeu de Platão, Boécio, Apuleio (o autor de obras sobre Sócrates e Platão, assim como de O Asno de Ouro), e Agostinho. Mais tarde, João Escoto Erígena (c. 810–877) traduziu Dionísio. (Que Os Nomes de Deus e outros tratados não eram obra do ateniense convertido por São Paulo era algo que Lorenzo Valla (1405–1457) suspeitava e que foi por fim estabelecido por Erasmo. Anteriormente, era muito comum pensar que platónicos como Proclo tinham roubado as suas ideias.) Mas chegados ao século XII, apesar de haver mais traduções de Platão e Proclo, Aristóteles eclipsou o platonismo.
- No Renascimento, Platão tornou-se um foco de rebelião contra a escolástica, e sentiu-se a necessidade de um contacto directo com os seus textos. Ainda que não imediatamente, isto acabou por tender a comprometer a interpretação neoplatónica de Platão, até então inquestionada. Petrarca (1304–1374), apesar de não saber grego, defendeu Platão, “o príncipe da filosofia”, contra Aristóteles. Ficino traduziu Platão, Plotino e Hermes Trismegisto (o suposto autor de um corpo de primeiros escritos pós-cristãos, que Ficino atribuía a um padre egípcio e que era uma das fontes do platonismo). Ficino apresentou uma defesa constante da doutrina de Platão da imortalidade da alma, e considerava-o o precursor do cristianismo, numa tradição de “filosofia pia” que ia de Zaratustra a Nicolau de Cusa. Pico della Mirandola foi também influenciado, entre outros, por Platão, e estava associado à Academia de Ficino. O platonismo migrou para a Inglaterra pela mão de Erasmo e Tomás Moro (1478–1535), entre outros, dando origem aos platónicos de Cambridge que, como Coleridge observou, bem poderiam chamar-se “plotinianos de Cambridge”, dado que tinham reverência por Plotino e não duvidavam da sua interpretação de Platão.
- No tempo de Ficino, a única rival da interpretação neoplatónica de Platão era a tradição persistente, ainda que por vezes velada, segundo a qual Platão perfilhava o cepticismo da Nova Academia. Esta perspectiva, apoiada pela autoridade de Cícero, ganhou nova vida em finais do século XV: entre os seus partidários encontrava-se o reformador luterano Filipe Melâncton (1497–1560) e o céptico francês Michel de Montaigne (1533–1592). Mas uma terceira perspectiva começou então a ganhar forma, nomeadamente que Platão tinha uma doutrina positiva, diferente do neoplatonismo, e que isto se discernia nos textos originais. Esta perspectiva era atraente para os protestantes, que deploravam a influência neoplatónica no cristianismo, mas que consideravam muita vezes que o próprio Platão era mais tolerável. Um dos seus pioneiros foi João Serrano (Ioannes Serranus) (1540–1598), um huguenote calvinista que, na famosa edição de 1578 de Henri Estienne da obra de Platão, contribuiu com uma tradução latina e uma introdução. O seu partidário mais distinto era Leibniz, que em várias ocasiões lamentou a tendência para ler os comentadores, em vez de Platão: só conseguimos recuperar doutrinas valiosas como a teoria das Ideias e da reminiscência se eliminarmos o invólucro neoplatónico. Esta perspectiva foi confirmada pela história da filosofia, que surgiu, especialmente na Alemanha, como uma disciplina distinta, a par da teologia e da própria filosofia: Jakob Brucker (1696–1770), Dietrich Tiedemann (1748–1803), Wilhelm Tennemann (1761–1819) e Hegel, sejam quais forem as imperfeições das suas próprias tentativas para reconstruir as doutrinas de Platão, conseguiram demolir a interpretação neoplatónica. (Como Friedrich Schleiermacher (1768–1834), Hegel rejeitava a perspectiva de Tennemann — que ainda tem defensores — de que Platão tinha um sistema “esotérico” que não pôs por escrito.) A descoberta do “verdadeiro” Platão pôs também fim ao platonismo como doutrina abrangente, distinta e credível, em parte porque não é plausível ler os diálogos como se advogassem um credo definido, e em parte porque eram habitualmente interpretados como uma apresentação de uma versão rudimentar de uma filosofia moderna mais desenvolvida, como o kantismo (Tennemann) ou o hegelianismo (Hegel), acreditando o intérprete mais nessa versão do que em Platão.
Contudo, Platão constitui um ingrediente, amiúde essencial, em grande parte da filosofia ocidental subsequente. Galileu, por exemplo, era um platónico, não no sentido de subscrever as teorias matemáticas do Timeu, mas porque distinguia entre as aparências da natureza e a sua verdadeira estrutura matemática, sendo esta última o objecto do verdadeiro conhecimento. Ideias quase platónicas desempenham um papel importante em Kant e Schelling. Em Schopenhauer, com a excepção da música, as Ideias são o que a arte retrata, e (ao arrepio das intenções do próprio Platão), Platão tem frequentemente prestado assistência tanto a artistas como aos filósofos da arte. Além disso, mesmo nos tempos modernos, considera-se amiúde que Platão contém em embrião toda a filosofia ocidental; de modo que qualquer filósofo sério tem de tê-lo em conta, seja como aliado, seja como oponente. J. F. Ferrier (1808–1864) afirmou que “toda a verdade filosófica é Platão correctamente discernido; todo o erro filosófico é Platão mal entendido”, e Whitehead considerava que a filosofia posterior era uma série de notas de rodapé a Platão. Nietzsche via Platão a esta luz (e.g., “o cristianismo é platonismo para o povo”), mas dado rejeitar a pretensão de Platão a um discernimento aperspectívico do verdadeiro ser, considerava o seu próprio pensamento um “platonismo invertido”. Para Heidegger, Platão deu início ao declínio da verdade, passando da “desocultação” para a “correcção”, fazendo assim emergir a metafísica e o humanismo que afectava toda a filosofia posterior, incluindo a de Nietzsche. Deu também aulas sobre O Sofista de Platão, em 1924/25, para preparar o seu reactivamento da “questão do ser”. Jaspers interpretou Platão em termos do seu próprio pensamento, e considerava-o o “representante da filosofia em geral”, um pensador em aberto mais preocupado com a prática da filosofia como forma de vida do que com a defesa de doutrinas específicas. (Em contraste, O Ser e o Nada de Sartre, só refere de passagem O Sofista de Platão; mas o seu conto dos primeiros tempos, Er, O Arménio, inspira-se no mito de Er de A República.) Apesar de o platonismo como doutrina abrangente ter deixado de ser uma opção viva, os filósofos modernos, incluindo filósofos analíticos como Ryle, desenvolveram amiúde as suas próprias ideias, e os seus poderes de argumentação e interpretação, em interacção com Platão.
M. J. Inwood
Oxford Companion to Philosophy, ed. Ted Honderich (Oxford University Press, 1995), pp. 723–725.
Bibliografia
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- C. M. Woodhouse, Gemistos Plethon: The Last of the Hellenes (Oxford, 1986).
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