Plotino foi o fundador do neoplatonismo, o movimento filosófico dominante no mundo greco-romano da Antiguidade tardia, e o pensador mais significativo desse movimento. Diz-se por vezes que foi o último grande filósofo pagão. Os seus escritos, as chamadas Enéadas, foram integralmente preservados. Apesar de ser um sério seguidor de Platão, revela também outras influências filosóficas, em particular de Aristóteles e do estoicismo. Plotino desenvolveu uma metafísica de causas inteligíveis do mundo sensível e da alma humana. A causa última de tudo é “o Uno” ou “o Bem”. É absolutamente simples e não pode ser apreendido pelo pensamento, nem se lhe pode atribuir qualquer determinação positiva. O Uno tem como actividade externa a mente universal ou “Intelecto”. Os pensamentos do Intelecto são as Formas platónicas, os paradigmas eternos e imutáveis, dos quais as coisas sensíveis são imagens imperfeitas. Pensar as Formas é a actividade interna do Intelecto. A sua actividade externa é um dos níveis da alma cósmica, que produz o domínio sensível e dá vida aos organismos corpóreos que nele existem. A alma é assim a causa inteligível mais inferior que está em contacto imediato com o domínio sensível. Contudo, Plotino insiste que, ao lidar com o sensível, a alma mantém o seu carácter inteligível; nomeadamente, não deixa de ser anespacial e imutável. Assim, Plotino é um ardente dualista quanto à natureza da alma e do corpo. Os seres humanos estão na fronteira entre domínios: por meio da sua vida corpórea, pertencem ao sensível, mas a alma humana tem as suas raízes no domínio inteligível. Plotino vê a filosofia como o veículo do regresso da alma às suas raízes inteligíveis. Apesar de se situar firmemente na tradição do racionalismo grego e de ser um filósofo com capacidades pouco habituais, Plotino integra em parte o espírito dos movimentos religiosos de salvação que são característicos do seu tempo.
Pela mão de Porfírio, que foi seu aluno e editor, temos um relato razoavelmente fidedigno da vida e obra de Plotino. Porfírio compôs uma biografia, Da Vida de Plotino e da Ordem dos Seus Livros, que serve de prefácio à sua edição póstuma dos escritos de Plotino. Quando tinha vinte anos, Plotino começou os seus estudos filosóficos em Alexandria, com um certo Amónio (amiúde chamado “Amónio Sacas” — não confundir com outro Amónio, que foi professor de Plutarco da Queroneia, nem com Amónio, filho de Hérmias) e com ele estudou durante vários anos. Depois de uma tentativa malograda de viajar para o Oriente para se familiarizar com a filosofia da Pérsia e da Índia, estabeleceu-se em Roma, com quarenta anos. Instituiu uma escola naquela cidade e aí permaneceu, saindo apenas aquando da sua doença terminal.
O acervo de escritos de Plotino que chegou até nós é dos maiores que temos de qualquer filósofo antigo — e temos provavelmente tudo o que escreveu. As suas obras são tratados, escritos em grego, que emergiram de discussões ocorridas na sua escola, e variam imensamente em dimensão e abrangência. Porfírio organizou tematicamente os tratados em seis “enéadas” — seis conjuntos de nove tratados. Para chegar a esta divisão, teve de dividir alguns tratados. Por convenção, as referências às Enéadas são dadas apenas em números: “V 3(49).2, 14–16”, por exemplo, quer dizer “5.ª Enéada, 3.º tratado (que é o número 49 na lista cronológica que Porfírio apresenta dos escritos de Plotino), Capítulo 2, linhas 14 a 16”.
O pensamento de Plotino emerge da tradição do chamado “platonismo médio”, que se desenvolveu durante os primeiros dois séculos depois de Cristo. Estes platónicos interpretavam Platão dogmaticamente; ou seja, ao arrepio dos cépticos académicos, consideravam que Platão sustentava perspectivas definidas. Os seus interesses situavam-se principalmente na metafísica e na psicologia, genericamente entendidas. Mas mesmo que mostrassem influências óbvias de outras escolas de pensamento — muitas noções aristotélicas e estóicas tinham passado a fazer parte da linguagem da própria filosofia —, no platonismo médio considerava-se que as verdades filosóficas fundamentais se encontravam em Platão. Plotino partilha estas características gerais.
Diz-se por vezes que Plotino construiu um sistema que o próprio autor nunca revela integralmente de maneira organizada, e que esse sistema tem de ser inferido deste e daquele fragmento dos seus escritos. Outra ideia comum é que cada um dos seus tratados pressupõe todos os outros, e também o sistema completo. Estas afirmações têm que se lhe diga. Contudo, ainda que por detrás dos escritos de Plotino se encontre uma perspectiva mais organizada e abrangente do que parece à primeira vista, o seu espírito não é rígido como o de quem constrói sistemas. O seu génio filosófico consiste ao invés na excepcional sensibilidade e profundidade de pensamento com a qual enfrenta as dificuldades inerentes à tradição platónica.
Plotino trabalha com uma dicotomia fundamental entre o inteligível (to noēton) e o sensível (to aisthēton). O mundo inteligível é o domínio do real (no sentido de ter existência independente: é em virtude de si mesmo), e é imutável e anespacial. O mundo sensível, em contraste, é uma imagem irreal e mutável do inteligível, expresso na extensão espacial. No seio destes dois domínios há outras divisões, de modo que o resultado é uma ontologia hierárquica. No ápex da hierarquia está o Uno (também referido como o Bem) e depois, em ordem descendente, encontra-se o Intelecto e a Alma. Estes três níveis, o Uno, o Intelecto e a Alma, são amiúde denominados “hipóstases”, e é costume escrever os seus nomes com maiúsculas. As almas particulares — de pessoas e animais, e a alma do próprio mundo sensível — pertencem também à ordem inteligível, mas estão em contacto íntimo com o domínio sensível. A hierarquia continua no mundo sensível, onde os organismos, formas na matéria (ou seja, qualidades sensíveis), corpos inanimados e matéria constituem os estádios principais. Como é evidente devido à natureza anespacial do mundo inteligível, termos como “hierarquia”, “acima” e “abaixo”, neste contexto, não devem ser entendidos em termos espaciais, mas antes como indicações da sua prioridade ontológica.
O Uno, o Intelecto e a Alma, e também a matéria, com algumas ressalvas que depois explicaremos, são postulados explicativos do tipo a que os filósofos gregos chamavam “princípios” (archai). Plotino assume uma posição fortemente realista com respeito aos seus princípios: não só existem, como são mais reais, existem num sentido mais pleno, do que aquilo que com eles se pretende explicar. Os corpos inorgânicos, os organismos e as suas funções, assim como a consciência humana, são fenómenos a explicar em termos dos princípios.
Considerações como as que se seguem ajudam a explicar a pluralidade de estádios da hierarquia plotiniana. Depois de distinguir entre o que se pretende explicar e o princípio explicativo, surgem questões quanto ao próprio princípio: este poderá acabar por ter características que carecem de explicação. Será preciso então pressupor mais um princípio para explicar o primeiro. O processo de procurar mais princípios continua até chegar a um princípio que não carece de explicação, um princípio acerca do qual não se pode fazer mais perguntas. Para Plotino este princípio último é o Uno.
Plotino sustenta em geral que os próprios princípios têm de ter as características que esses princípios explicam. Por exemplo, a Alma, que é o princípio da vida, está em si viva. Além disso, os princípios têm idealmente estas características de uma tal maneira que é despropositado perguntar por que razão as têm. O princípio tem em si e por si o que as outras coisas têm como característica derivada e contingente, sendo por isso que exige explicação. Plotino exprime amiúde este ponto dizendo que um princípio é isto ou aquilo em si (en heautōi), ao passo que as outras coisas têm de maneira alheia (en allōi; “em outro”) essa mesma característica.
A unidade é um conceito central na doutrina de Plotino: cada estádio da hierarquia tem um tipo característico de unidade, sendo o Uno o princípio último absolutamente simples que é a causa de qualquer outra unidade que exista, e assim a causa de rigorosamente tudo o mais. Ser é ser uma coisa, estar unificado, e quanto mais unificada for uma coisa, mais é um ser. A característica mais marcante do mundo da experiência quotidiana é de facto a sua unidade como um todo e a unidade dos objectos individuais, especialmente das coisas vivas. A organização, regularidade e beleza que são evidentes no mundo da experiência quotidiana, de todos se podendo dizer que exprimem a sua unidade, não pode ser explicada em termos das suas partes constituintes. Estas últimas estão unificadas e a sua unidade é uma característica justaposta que tem de vir de outro lado. A unidade revelada no mundo sensível está longe de ser perfeita, do ponto de vista de Plotino, mas dá ao mundo sensível a realidade que tem. O mesmo se pode dizer das nossas experiências de nós próprios: a introspecção irá mostrar que a alma humana tem um tipo mais perfeito de unidade do que seja o que for que diga respeito ao corpo, apesar de mesmo a alma não ter unidade por si (IV 2(4).2; IV 7(2).6-7). Assim, o mundo da experiência quotidiana, tanto o mundo exterior como a nossa vida mental, aponta para lá de si, para um nível mais elevado de realidade, que é o seu princípio.
Este processo ascendente, partindo dos fenómenos quotidianos, apoia-se obviamente na dialéctica de Platão, tal como é descrita, por exemplo, no Banquete e na República. Nas Enéadas há muitos casos deste modo de proceder; o mais famoso é o primeiro tratado de Plotino, Da Beleza (I.6911)), que parte do discurso de Diotima no Banquete. Este tratado foi influente na arte, em especial no Renascimento. Como seria de esperar, a ascensão que parte da beleza das coisas corpóreas para chegar à Beleza em si é interpretada em termos da hierarquia plotiniana e da doutrina geral da ascensão intelectual. Porém, há um desvio notável em relação à perspectiva sobre as artes que Platão exprime na República, pois para Plotino a arte não imita a natureza: antes opera em paralelo à natureza (I 6.3; V 8(31).1). Assim, o artista usa o mundo inteligível directamente e dá-lhe expressão no mundo sensível.
Ignorando para já os estádios intermédios, a auto-suficiência dos princípios com respeito às características que esses princípios explicam, juntamente com a tese de que tudo o mais que existe pressupõe a unidade, leva ao princípio mais elevado, ao Uno, que é a um tempo absolutamente simples e único (V 4(7).1). A doutrina do Uno, ainda que entrevista pela tradição anterior a Plotino, é provavelmente a sua inovação mais significativa. Alguns dos seus predecessores do platonismo médio acreditavam num primeiro princípio simples mas, como Aristóteles, pensavam que este princípio simples era algum tipo de intelecto. Em contraste, do ponto de vista de Plotino, o Intelecto acarreta pluralidade: há pluralidade no pensamento, porque há pelo menos uma distinção conceptual entre o pensamento e o seu objecto, e, em qualquer caso, há diversidade no que se pensa (veja-se, por exemplo, V 3(49).10).
O Uno é único e não inclui diversidade nem limite. Daqui segue-se que não se pode dar qualquer caracterização positiva do Uno. Não pode ser apreendido pelo pensamento, nem conhecido na sua verdadeira natureza, dado que qualquer pensamento do Uno o distorce, na medida em que o pensamento está condenado a ser compósito (V 5(32).6; VI 9(9).4). Seria até inapropriado dizer do Uno que é, ou que é uno, na medida em que essas expressões indicam algo unificado, e não a natureza absolutamente simples que dá unidade a tudo o que tem unidade (VI 9.5). Contudo, é possível abordá-lo e até ficar em sintonia com ele, numa espécie de união que não é cognitiva, uma “visão” que resiste a toda a descrição (VI 9.8-11). É em resultado desta doutrina de uma união com o princípio último, uma união que transcende a conceptualização, que se considera que Plotino era um místico. Sem querer negar a importância desta união com o Uno, é preciso dizer que não desempenha um papel proeminente nos seus escritos. Apesar da sua inefabilidade, Plotino consegue dizer muito sobre o Uno. Contudo, isto não é uma inconsistência: a inefabilidade do Uno é a tese de que não podemos predicar-lhe seja o que for, dado que qualquer predicação iria implicar que o Uno é compósito. Isto não quer dizer que não podemos falar das suas relações com as outras coisas e, em geral, do seu papel na ontologia.
Ainda que na tradição de Plotino existam precedentes de um princípio formal supremo, a maior parte dos seus predecessores postulavam, além do Uno, outros princípios últimos. Em Plotino, tudo deriva do Uno, ainda que os níveis mais inferiores da hierarquia funcionem de facto como princípios da multiplicidade. Neste sentido, Plotino é um monista ardente.
O Intelecto divino, o estádio depois do Uno, é também o domínio das Formas (platónicas) e do ser real ou primeiro. A identificação do domínio das Formas com o ser primeiro é directa: por definição, cada Forma é eminentemente e por si aquilo que provoca nos outros. Mas este ser primeiro é também o Intelecto universal: as Formas existem como pensamentos do Intelecto; pensar nelas é o autopensamento do Intelecto, e o seu conhecimento delas é autoconhecimento (veja-se em especial V 5, V 8(31) e V 3). Dos vários argumentos que Plotino oferece a favor da tese de que as Formas são internas ao Intelecto, o mais interessante filosoficamente é que se as Formas estivessem fora do Intelecto, o conhecimento delas teria de ser adquirido; mas as Formas são os padrões de juízo, e se o Intelecto não tiver já estes padrões, não terá os meios necessários para reconhecer a impressão de cada Forma como uma impressão dessa Forma. Assim, se o Intelecto não contiver essencialmente as Formas como pensamentos seus, o seu conhecimento delas torna-se problemático: uma conclusão inaceitável, dado que se aceita que o Intelecto universal divino tem conhecimento supremo. A identificação de Plotino do ser primeiro com um Intelecto divino implica que há um nível de realidade onde o conhecer e o ser, a epistemologia e a ontologia, coincidem. Plotino considera que isto é uma condição necessária da possibilidade do conhecimento.
Como se mencionou, o Intelecto caracteriza-se por uma unidade maior do que o mundo sensível. Isto deve-se em primeiro lugar ao facto de o Intelecto não ser espacial nem temporal, e por isso não estar sujeito à dispersão própria do espaço e do tempo. Em segundo lugar, as relações entre as partes e o todo, no Intelecto, são tais que não só o todo, que é mais do que a soma das suas partes, inclui as partes, como o todo está também implícito em cada uma das partes (veja-se, por exemplo, VI 2(43).20). Em terceiro lugar, não há qualquer distinção real entre sujeito e atributo ao nível do Intelecto. Ao invés, Plotino postula a substância intelectual e a sua actividade (energeia), que é idêntica à substância. Grande parte desta doutrina sobre as relações entre itens ao nível do Intelecto funda-se em interpretações e sugestões dos diálogos tardios de Platão. Plotino considera que as “cinco categorias maiores” do Sofista — ser, identidade, diferença, movimento e repouso — são os géneros mais elevados da sua ontologia. Cada um deles é distinto, mas apesar disso pressupõe os outros, nos quais se entrelaça. Em conjunto, constituem o Intelecto ou a substância inteligível. As Formas particulares são geradas a partir deles.
A integridade do Intelecto implica que o seu pensamento é diferente do pensamento discursivo comum: o Intelecto apreende os seus objectos e todas as suas relações numa intuição atemporal do todo, sem usar inferências nem palavras; os veículos do seu pensamento são as próprias coisas, os protótipos e causas das quais todas as outras coisas, sejam elas fenómenos naturais ou modos diminuídos de pensamento humano, são manifestações inferiores.
A Alma é o nível abaixo do Intelecto. Devido à multiplicidade das suas funções, a Alma é em alguns aspectos a mais complexa das hipóstases plotinianas, e conceptualmente a menos unificada. As fontes históricas da noção de Alma de Plotino são sobretudo os diálogos de Platão, principalmente o Timeu, mas a psicologia de Plotino revela também fortes influências aristotélicas e estóicas.
Plotino faz certas distinções no seio do domínio psíquico. Há a hipóstase da Alma, que continua no domínio inteligível, e há a Alma do Mundo e as almas dos indivíduos, estando estas duas últimas ao mesmo nível (IV 3(27).1-8). Nestes dois últimos tipos de alma, Plotino distingue ainda entre uma alma superior e outra inferior, correspondendo à distinção entre a alma que opera directamente por meio de um corpo, e uma alma que não o faz (isto coincide com a distinção entre a alma racional e a não-racional). A Alma é o nível inteligível responsável pelo mundo sensível. A alma inferior, por vezes referida como “natureza” (physis), produz a própria matéria, os corpos inorgânicos e os seres vivos comuns, incluindo o próprio cosmos sensível que, segundo Plotino, é um organismo supremo (IV 4(28).33).
Plotino sustenta que todas as almas são uma só, que todas as almas são idênticas à Alma da hipóstase (o que implica que são idênticas entre si). Os neoplatónicos depois de Porfírio rejeitaram esta doutrina, mas Plotino sustentava-a sem tergiversar e dava-lhe muita importância (IV 9(8); VI 4 (22).4; IV 3.1-8). A doutrina parece decorrer da combinação das duas doutrinas plotinianas que acabámos de mencionar: a pertença da Alma ao domínio inteligível (ou ao domínio do verdadeiro ser) e a integridade desse domínio.
Como se mencionou, o Intelecto está fora do espaço e do tempo. Em Da Eternidade e do Tempo, Plotino formula as suas perspectivas sobre o tempo. O tratado inclui críticas interessantes e poderosas das perspectivas de Aristóteles, dos estóicos e dos epicuristas. Como acontece amiúde, as perspectivas do próprio Plotino constituem um desenvolvimento do Timeu de Platão. Plotino define a eternidade como “a vida que pertence àquilo que existe e que está sendo, todo junto e inteiro, completamente sem extensão, nem intervalo” (III 7 (45). 3, 36-8), e define o tempo como “a vida da alma no movimento de passagem de um modo da vida para outro” (III 7.11, 43-5). Assim, o tempo situa-se ao nível da Alma como a “imagem da eternidade”. Isto significa que a Alma, ao produzir o mundo sensível, desenrola em estádios sucessivos o que no nível acima está presente todo junto e sem intervalo temporal.
Surgem algumas dificuldades precisamente devido à relação próxima da Alma com o sensível. Em primeiro lugar, como consegue a Alma causar, administrar e dar alma ao mundo sensível extenso sem com isso passar a partilhar a sua natureza extensa? Como pode a Alma operar em diferentes partes da extensão sem ser ela própria divisível em partes espacialmente distintas? Se ficar dividida, perde o seu estatuto inteligível, ou corre seriamente o risco de perdê-lo. Esta dificuldade avoluma-se porque, segundo uma opinião comum e profundamente arraigada, a Alma está presente nos corpos que têm alma. Plotino ficou profundamente perturbado com estes e outros quebra-cabeças que dizem respeito à relação da Alma com o domínio sensível — a prova disso é que voltou repetidamente a estas questões. Apesar de várias tentativas audaciosas, é duvidoso que tenha conseguido encontrar uma explicação satisfatória.
Uma solução que Plotino sugere frequentemente, e que defende, sobretudo com base em factos sobre a unidade da consciência na sensação, é que a Alma está presente como um todo em cada ponto do corpo que infunde. Deste modo, pode estar em diferentes lugares sem estar dividida. Estar presente como um todo em diferentes partes do espaço mostra que tem um estatuto ontológico diferente dos corpos que têm partes espaciais numericamente distintas (veja-se, por exemplo, IV 2 (4).2). Outra explicação, contudo, declara que a Alma não está de modo algum presente no corpo, mas antes o inverso — o corpo está presente na Alma. O corpo está na Alma do mesmo modo que se pode dizer que os corpos estão à luz ou no calor: com isso, ficam iluminados ou quentes sem (do ponto de vista de Plotino) dividir de modo algum, ou afectar, a fonte de luz ou de calor. Do mesmo modo, os corpos tornam-se infundidos de alma, vivos, em virtude da presença da Alma. Estas ideias são exploradas em VI 4 (22) e 5 (23) (que constituem um único tratado), que inclui aquela que é talvez a explicação mais subtil de Plotino da relação entre o sensível e o inteligível. Plotino tenta explicar aqui a presença aparente do inteligível no sensível em termos de ter efeitos no sensível sem estar aí localmente presente.
Na base da hierarquia plotiniana está a matéria. A matéria plotiniana é como o Uno, no sentido em que não permite qualquer caracterização positiva, mas por razões exactamente opostas. O Uno é, poder-se-ia dizer, tão pleno, tão perfeito, que ilude qualquer descrição positiva. A matéria, pelo contrário, é-o devido à sua total privação, ou falta de ser: é simples potencialidade. No sistema de Plotino, a matéria é o receptáculo de formas corpóreas imanentes, como cores, formas e dimensões. Os objectos físicos, os corpos, são compósitos de matéria e dessas formas imanentes (VI 3(44).15). A própria matéria não está sujeita à mudança, mas está subjacente à mudança: à medida que as Formas vão e vêm, a matéria continua sem ser afectada (III 6(26)). Por isso, é imperceptível, mas a razão convence-nos da sua existência como um substrato de formas caracterizado em exclusivo negativamente. Dado tratar-se do que está subjacente às formas dos corpos, poderia ser tentador identificar a matéria com o espaço ou com a massa. Mas Plotino rejeita esta ideia, sustentando que a tridimensionalidade do espaço pressupõe determinação local e que a massa contém forma, ao passo que a matéria é totalmente indeterminada e sem forma (II 4(12).8-12). Contudo, a matéria é o princípio da extensão espacial, dado que a dispersão própria do espaço se deve à matéria. A matéria é um princípio explicativo, no sentido de ser necessário para explicar a pluralidade, apesar de não ser um princípio do ser, no sentido de Plotino.
No tratado I 8(51), Plotino discute detidamente questões relacionadas com o mal, um tópico que surge também em muitos outros tratados. O mundo inteligível é perfeito e totalmente auto-suficiente. Apesar de o mundo sensível não o ser, é um reflexo do mundo inteligível e não contém coisa alguma que não tenha as suas origens neste mundo. Por isso, é enigmático como pode surgir o mal. Plotino defende que o mal como tal existe, e identifica-o com a matéria, entendida como a ausência de toda a forma, ou o não-ser. Isto é o mal absoluto. As outras coisas são males relativamente, na medida em que participam da matéria.
Na exposição anterior dos princípios plotinianos fez-se menção às relações entre as hipóstases. Contudo, falta ainda abordar este tópico em geral. Plotino herda de Platão duas maneiras de descrever a relação: a linguagem da participação, e a linguagem do modelo (paradeigma), imitação e imagem (eikōn, eidōlon). Um nível inferior participa num superior, e assim passa a ter o carácter deste último, ou imita o superior, obtendo-se assim o mesmo efeito. Estas duas maneiras de descrever a relação vêem-na do ponto de vista do efeito. Plotino e os outros neoplatónicos têm além delas maneiras de descrever a relação em termos da agência causal do nível superior. É a isto que se chama comummente “emanação”, ainda que a linguagem de Plotino seja aqui muito variável, usando amiúde simplesmente expressões como “fazer” (poiein) e “proceder” (proienai) para falar da actividade de um domínio superior. Usa também com frequência as analogias do Sol e da luz que este irradia, do fogo e do calor, e coisas semelhantes, para ilustrar como uma hipóstase superior gera uma inferior, e usa ocasionalmente as metáforas que têm origem na linguagem sobre a água (por exemplo, “fluir”). Plotino está perfeitamente ciente de se tratar de metáforas que é imperativo não entender demasiado literalmente. O termo “emanação” poderá ser enganador na medida em que sugere que a causa se espalha por si. Plotino, pelo contrário, sustenta firmemente que a causa permanece sempre sem ser afectada e nada perde ao dar seja o que for.
Em Plotino há por vezes uma distinção explícita e amiúde implícita entre “actividade (energeia) interna” e “externa” (veja-se, por exemplo, V 3.12; V 4(7).2). Esta distinção atravessa todas as causas plotinianas até à Alma e é crucial para ter uma compreensão da causalidade no seu sistema. Tendo em mente o que se disse sobre a identidade entre uma substância e a sua actividade, a actividade interna será o mesmo que a coisa em si. Em termos da analogia da luz, a actividade interna é análoga à fonte da luz, seja isso o que for, considerada em si e como fonte de luz, que é a sua actividade. A actividade externa é esta mesma entidade considerada como algo que opera noutra coisa, sendo a causa da claridade na parede, por exemplo.
A matéria é ainda mais complicada: não só há um processo a partir da causa, mas também uma reversão (epistrophē) do que é produzido, na direcção da sua fonte, sem a qual a actividade externa fica incompleta. Dado não haver qualquer princípio material preexistente, um recipiente da forma, o que ganha forma tem de vir da causa que dá forma. Assim, o aspecto expansivo de um dado nível da hierarquia funciona como um princípio material do nível inferior, sendo o aspecto regressivo o que dá forma a esse princípio material. Assim, a reversão é equivalente à imitação. O produto é uma imagem ou expressão do original, um efeito, que contudo não está separado da sua causa, porque o efeito depende da actividade da causa.
À excepção da actividade interna do Uno, toda a actividade é uma forma de pensamento ou contemplação (theōria) (III 8(30)). (Mesmo a actividade do Uno é ao que parece uma espécie de actividade mental, ainda que não seja “pensamento”; veja-se, por exemplo, V 4(7).2; VI 8(39).16.) Isto aplica-se também à actividade da fase inferior da Alma-Mundo, a natureza, que cria as formas sensíveis na matéria: toda a acção (praxis) e produção (poiēsis) têm a contemplação como finalidade; a produção é o resultado de pensamento fraco ou imperfeito. Podemos visualizar o sistema como uma hierarquia onde cada estrato tem uma actividade externa que, ao tentar apreender em pensamento a sua fonte, cria uma imagem dela, mostrando-a mais “desdobrada”, menos unificada. De modo que há um sentido em que os mesmos itens existem em todos os níveis: o Uno é tudo o que há, mas de uma maneira de tal modo unificada que não se encontra aí quaisquer distinções. Do mesmo modo, o Intelecto e a Alma, e por último o mundo físico, contêm tudo o que há. Só nos níveis mais inferiores de todos, os níveis da matéria e das formas sensíveis imanentes, não há geração, o que é outra maneira de dizer que chegámos ao fundo.
Plotino escreveu alguns tratados sobre temas filosóficos técnicos, como a potencialidade e a actualidade (II 5(25)), e a substância e a qualidade (II 6(17)). Pode-se dizer também que o tratado sobre a matéria (II 4 (12)) pertence a este grupo. O mais extenso desses tratados, contudo, é o VI 1(42)-3(44), a que Porfírio deu o título “Dos Tipos de Ser”. Em VI 1, Plotino discute criticamente as Categorias de Aristóteles, que considera versar sobre os géneros de ser, e discute também, menos detidamente, as chamadas “categorias estóicas”. Em VI 2, Plotino apresenta a sua própria abordagem dos géneros do ser inteligível, que do seu ponto de vista é o único ser real, e em VI 3 oferece uma versão revista das categorias de Aristóteles como explicação das coisas sensíveis. As críticas de Plotino à doutrina das categorias de Aristóteles têm como o pressuposto a ideia de que a doutrina é acerca dos géneros do ser. Os seus pontos críticos principais são os seguintes:
Uma característica da psicologia de Plotino que vale a pena mencionar é o uso que faz da maquinaria aristotélica para defender o que é manifestamente um dualismo platónico. Por exemplo, Plotino usa muito mais as distinções aristotélicas entre alma racional, perceptiva e vegetativa do que a tripartição da República de Platão. Usa as noções aristotélicas de potência (dynamis) e acto (energeia), e a percepção sensorial é descrita em grande parte em termos aristotélicos como a recepção da forma (eidos) do objecto percepcionado. Contudo, nunca segue Aristóteles servilmente, e o leitor deve estar preparado para encontrar modificações mesmo nos casos em que Plotino parece mais aristotélico.
Plotino identifica os seres humanos com a sua alma mais elevada, a razão. A alma, sendo essencialmente membro do domínio inteligível, difere do corpo e sobrevive-lhe. Tem um homólogo no Intelecto, que Plotino por vezes descreve como o verdadeiro ser humano e o verdadeiro eu. Em resultado da comunhão com o corpo e, por meio dele, com o mundo sensível, podemos também identificar-nos com o corpo e o sensível. Assim, os seres humanos estão na fronteira de dois mundos, o sensível e o inteligível, e podem inclinar-se para um ou para o outro, e identificar-se com um ou com o outro. Para quem escolhe a vida inteligível, a filosofia (a dialéctica) é o instrumento de purificação e ascensão. Como fizemos notar, contudo, é possível ascender para lá do nível da filosofia, e chegar a uma reunião mística com a fonte de tudo, o Uno. Em contraste com os neoplatónicos posteriores a Porfírio, que mantinham a teurgia como alternativa, Plotino mantém-se firmemente do lado do racionalismo clássico grego, sustentando que a formação filosófica e a contemplação são os meios que nos permitem ascender ao domínio inteligível.
O tratamento que Plotino propõe da percepção sensorial é um exemplo interessante de como consegue ser original, ao mesmo tempo que se apoia na tradição. A percepção sensorial é o reconhecimento da alma de algo no mundo sensível externo. A alma, só por si, só conhece inteligíveis, e não sensíveis. Para conhecer um objecto físico externo, tem de se apropriar dele de algum modo. Por outro lado, a actuação de um nível inferior num superior é em geral excluída, e uma afectação da alma é impossível, porque esta não está sujeita à mudança. Plotino propõe como solução que o que é afectado do exterior é um órgão dos sentidos dotado de alma, e não a alma em si. A afectação do órgão dos sentidos não é, contudo, a percepção em si, mas antes algo como uma mera sensação pré-conceptual. A percepção propriamente dita pertence à alma. É um juízo (krisis) ou recepção da forma do objecto externo, sem a sua matéria. Este juízo não constitui uma mudança genuína na alma, pois trata-se de pôr em acto uma potência já presente. Ao formular este problema, o dualismo de Plotino torna-se mais nítido, e em alguns aspectos mais próximo do dualismo cartesiano do que aquele que encontramos em Platão ou em qualquer pensador antigo anterior. Plotino contrasta a percepção sensorial como forma de cognição com o pensamento do Intelecto, que é o paradigma e fonte de todas as outras formas de cognição. A percepção sensorial é de facto um modo do pensamento, mas é obscura. Isto porque os sentidos não apreendem as “coisas em si”, os pensamentos ao nível do Intelecto, mas antes meras imagens. Dado serem imagens, não revelam também os fundamentos do seu ser, nem as conexões necessárias.
Como a exposição anterior poderá sugerir, Plotino vê o objectivo da vida humana na libertação da alma face ao corpo e aos cuidados com o domínio sensível, identificando-se com o mundo inteligível imutável. Esta é, em resumo, a doutrina de Platão nos diálogos do período intermédio. Contudo, há em Plotino elaborações que vale a pena fazer notar. Platão sustenta que a capacidade da alma para conhecer as Formas mostra a sua afinidade com elas (Fédon 79c–e). Plotino concorda, e apresenta uma doutrina sobre a natureza desta afinidade, que em Platão não ficou clara. Pois, como vimos, todo o domínio das Formas é para Plotino o pensamento do Intelecto. A alma humana tem um homólogo no Intelecto, uma mente parcial que de facto é o verdadeiro eu, sendo aquilo do qual a alma depende. Isto tem duas consequências interessantes para a doutrina da ascensão espiritual:
As perspectivas de Plotino sobre os tópicos de ética da Grécia clássica, como as virtudes e a felicidade, são determinadas pela sua posição geral de que a vida intelectual é a verdadeira vida e o objectivo apropriado dos seres humanos. Plotino dedica um tratado, I 2(19), às virtudes. A sugestão no Teeteto (176a–b) de Platão de que as virtudes nos assimilam ao divino é central para a maneira como Plotino as vê, e serve de ponto de partida. A questão que se levanta é como reconciliar esta doutrina com a doutrina das quatro virtudes cardinais da República. Plotino distingue entre as virtudes políticas, as virtudes purgativas e os paradigmas das virtudes ao nível do Intelecto. Estas formam uma hierarquia de virtudes. A função das virtudes políticas (o grau mais baixo) é pôr ordem nos desejos. Não é claro, contudo, como se pode dizer que estas nos assimilam a deus (o Intelecto), pois o divino não tem desejos que tenham de ser postos em ordem, e por isso não pode ter virtudes políticas. A resposta de Plotino é que apesar de deus não ter virtudes políticas, há em deus algo que responde a essas virtudes, e do qual estas derivam. Além disso, a semelhança que se encontra entre uma imagem e o original não é recíproca. Assim, as virtudes políticas podem ser imagens de algo que pertence ao divino, sem que o divino tenha virtudes políticas.
Há dois tratados sobre a felicidade ou bem-estar: I 4(46) e I 5(36). No primeiro, Plotino baseia a sua própria posição nas doutrinas platónicas e aristotélicas, criticando os epicuristas e os estóicos. Rejeita a perspectiva de que a felicidade consiste no prazer, numa sensação de um género particular: podemos ser felizes sem estarmos cientes disso. Rejeita também a abordagem estóica da felicidade como vida racional. A sua posição é que a felicidade se aplica à vida em si, e não a um certo género de vida. Há uma vida supremamente perfeita e auto-suficiente, que é a do Intelecto, da qual todos os outros géneros de vida dependem. A felicidade diz respeito sobretudo a esta vida perfeita que não precisa de qualquer bem externo. Dado que todos os outros tipos de vida são reflexos desta, todas as coisas vivas são capazes de pelo menos reflectir a felicidade de acordo com o tipo de vida que têm. Os seres humanos são capazes, contudo, de atingir o tipo perfeito de vida, a do Intelecto. No segundo tratado, Plotino sustenta, como os estóicos, que nenhum dos chamados “males externos” pode privar uma pessoa feliz da sua felicidade e que nenhum dos chamados “bens” que dizem respeito ao mundo sensível são necessários para a felicidade humana. Em I 5, Plotino defende que a duração da vida de uma pessoa não é relevante para a felicidade. Isto porque a felicidade, consistindo na vida boa, é a vida do Intelecto, e esta vida não está dispersa no tempo, mas antes na eternidade, ou seja, fora do tempo.
Plotino é um dos mais influentes filósofos antigos. Delineou os contornos da tradição neoplatónica pagã posterior, incluindo pensadores como Porfírio e Proclo, e deixou traços claros em pensadores cristãos como Gregório de Níssa, Agostinho e Boécio. Dado que todos estes autores foram extremamente influentes, Plotino teve um grande impacto indirecto. Desempenhou claramente um papel significativo na preparação da teologia filosófica medieval. Um extracto forjado das Enéadas era conhecido no mundo islâmico como Teologia de Aristóteles. A suposta origem aristotélica deste texto ajudou a fazer a fusão de aristotelismo e neoplatonismo que caracteriza grande parte da filosofia árabe. O neoplatonismo foi reavivado na Europa durante o Renascimento. Uma tradução latina das Enéadas, de Marsílio Ficino, surgiu originalmente em 1492, e foi amplamente distribuída. Plotino exerceu uma influência directa considerável em muitos intelectuais dos séculos XVI e XVII. Apesar de a popularidade do neoplatonismo e de Plotino ter recuado no século XVII, muitos pensadores individuais desde então leram e foram influenciados por Plotino — por exemplo, Berkeley, Schelling e Bergson.