A evolução do direito internacional tem sido acelerada, nos últimos tempos, pela globalização, pelas relações intensas entre países e pelas políticas externas dos governos. Neste ensaio, abordam-se os novos desafios que se oferecem hoje ao direito internacional, nomeadamente os problemas relacionados com o estado-nação. Enquadra-se o desenvolvimento do direito penal internacional à luz de uma nova ética global e a legitimidade, ou não, de os estados oferecerem resistência à intervenção da sociedade internacional.
De há uns anos a esta parte, o “risco” passou da periferia para o centro da teoria social e não poderia deixar de influenciar o discurso jurídico. O conceito de “Risikogesellschaft” (sociedade de risco) foi introduzido por Ulrich Beck, em 1992, e retomado por outros autores (Lasch, Luhman, Giddens, etc.), mas no núcleo dessas teorizações todas está a ideia de que a incerteza e o risco marcam as nossas sociedades, com o surgimento de novos factores de imprevisibilidade a nível global. Chernobyl ou o Exxon Valdez fornecem evidência suficiente de que o indivíduo está à mercê de acontecimentos fortuitos que não controla, não prevê, não conhece e não pode influenciar.
A modernização implicou o incremento do risco, para o indivíduo e para o estado. Se no início da industrialização o risco era pessoal ou local, agora é impessoal e global. Ao mesmo tempo que a sociedade moderna se dota da vastidão do conhecimento técnico e científico, ela não escapa ao impacto de riscos múltiplos — dos sociais e políticos aos ambientais (como os motins urbanos de Paris, em 2005, que rapidamente alastraram aos países vizinhos, a contaminação da água dos rios internacionais, a guerra entre estados e as migrações de refugiados, as chuvas ácidas, a importação de alimentos transgénicos, etc.). São riscos que não conhecem nem as fronteiras nem os limites dos ordenamentos jurídicos estaduais.
Já alguém disse que o “estado tornou-se demasiado grande para os pequenos problemas e demasiado pequeno para os grandes problemas”. Esta frase condensa uma ideia importante para o nosso estudo: sozinho, o estado-nação soberano nada pode contra riscos transnacionais. O risco ambiental em termos globais é um bom exemplo desta circunstância. Ao degradarmos o nosso ambiente, estamos a prejudicar-nos a nós mas também a outros em outros locais do planeta — daí os esforços internacionais para controlar as emissões de gases poluentes, como o Protocolo de Quioto. O direito internacional não pode ser indiferente a esta problemática e o Ambiente está no topo da agenda de várias organizações internacionais, como a ONU. Porém, como nota Monteiro, os riscos ambientais são uma
“categoria de problemas cuja resolução é particularmente difícil no actual enquadramento de relações interestaduais: são questões em que o perigo não é imediato e, logo, os benefícios de qualquer esforço são diferidos muito para além do ciclo eleitoral”.1
Assim se explicam as queixas dos ambientalistas que acusam os Estados Unidos de porem egoisticamente o seu interesse industrial à frente do interesse ecológico global, recusando-se a adoptar um tratado internacional que procura impedir a redução das emissões de gases tóxicos para a atmosfera terrestre.
A emergência desta preocupação leva vários autores a considerarem que o estado de direito democrático não pode deixar de se mostrar empenhado na sustentabilidade ambiental e, na doutrina jurídico-constitucional, começa a divulgar-se a fórmula germânica de “estado de direito de ambiente” (Umweltrechsstaat). Rejeitando qualquer “fundamentalismo ambiental”, Canotilho defende que a classificação de um estado como “estado ambiental” implica a obrigatoriedade deste promover políticas públicas pautadas pela exigência da sustentabilidade ecológica e a adopção de comportamentos amigos do ambiente, em virtude da “responsabilidade dos poderes públicos perante as gerações futuras”.2 A ideia não é tão inesperada quanto possa parecer. Se a essência do constitucionalismo é a limitação do poder político, não é descabido que essa limitação inclua uma consideração ambiental em nome das condições de vida actuais e futuras.
Mas esta sociedade de risco não enfrenta só problemas ambientais. Como explica Giddens com inexcedível clareza, o “risco” é aquilo que existe em situações de “perigo” (atravessar o Atlântico num barco a remos constitui um risco maior de naufrágio do que fazê-lo num moderno transatlântico). Ora, acontece que hoje enfrentamos perigos decorrentes de uma “incerteza fabricada” (produzida pela técnica e pela ciência modernas). Este autor fala do conjunto de altos riscos da modernidade: o crescimento do poder totalitário; o conflito nuclear ou a situação de guerra em larga escala; o colapso dos mecanismos de crescimento económico; e a degradação ou desastre ecológico.3
Para enfrentar esta grandeza de riscos, é desejável que os estados cooperem. A tendência actual demonstra que uma ordem internacional mais coordenada pode irromper na sociedade internacional, uma nova ordem necessariamente baseada no direito internacional. Não obstante, parece-nos que os primeiros autores que falaram da globalização, no princípio do século XIX, se precipitaram ao desejarem um “governo mundial”. Subestimaram a potência dos estados e da sua soberania. Esse futuro não se apresenta próximo nem sequer provável, a não ser que entendamos por “governo mundial” o estabelecimento em cooperação de políticas globais para fazer face aos novos desafios, por parte dos estados existentes, e não a formação de um super-estado ou de um estado à escala global. Desenvolveremos este ponto adiante.
É essencial notar, entretanto, que, neste contexto de uma pós-modernidade repleta de riscos, a “confiança” é essencial. O facto de lidarmos com instituições e indivíduos que não conhecemos, a falta de informação completa sobre todas as ocorrências potenciais, a consciência de que a acção humana e as instituições sociais têm uma acção com consequências, a existência de ambientes de risco obrigam-nos a ter confiança nas garantias simbólicas (por exemplo, no dinheiro, nos pagamentos internacionais, nos contratos internacionais) e nos sistemas periciais (por exemplo, na medicina, na justiça e, logo, no direito internacional). Sem eles, a vida seria insuportavelmente perigosa.
Assim, podemos definir a confiança como “a segurança na credibilidade de uma pessoa ou na fiabilidade de um sistema”4 (por exemplo, no chamado “sistema das Nações Unidas” ou no “equilíbrio nuclear” da guerra-fria). Logo, perigo e confiança inter-relacionam-se, servindo a confiança para reduzir os riscos a que determinadas actividades podem conduzir (por exemplo, ao exigir uma garantia bancária, uma empresa pode celebrar um negócio internacional tornando-o num risco aceitável). O direito internacional surge, portanto, como uma maneira de assegurar a confiança, de reduzir o perigo num contexto global de elevado risco e de uma grande incerteza fabricada.
A Paz de Vestefália, de 1648 (celebrada pelos Tratados de Osnabrück e Münster, ditos de Vestefália), inaugurou o paradigma do moderno estado-nação, ao pôr fim ao sacro império romano-germânico e ao poder do papado, naquilo que se auto-intitulava Res Publica Christianna. Não inteiramente sem razão, alguns vêem nesses documentos a primeira Carta Constitucional da Europa: em primeiro lugar, legitimaram juridicamente o novo mapa político do Velho Continente; em segundo lugar, lançaram as pedras do que seria o direito público europeu, ao estabelecerem os princípios da soberania e da igualdade dos estados nas relações internacionais — princípios que se mantêm até hoje. Assim, opinam N'Guyen Dinh et al., “juridicamente, os Tratados de Vestefália podem ser considerados o ponto de partida de toda a evolução do direito internacional contemporâneo”.5
Daí para cá, esse modelo, de génese europeia, domina a organização das comunidades políticas em todo o mundo, como nota Miranda:
“Hoje, sem qualquer eurocentrismo, determinante é a influência das formas europeias de estado, a qual se prende com a estrutura da comunidade internacional. A comunidade internacional de estados radica no sistema europeu de estados, que (como se vai ver) se formou a partir do século XVII, e pertencem-lhe estados com as características do moderno estado europeu”.6
A figura histórica do estado-nação resistiu à “teoria comunista”, que preconizava a sua abolição final, ao princípio da autodeterminação dos povos (que acabaram por reivindicar a constituição de novos estados) e ao surgimento de uma plétora de novos estados soberanos.7 É por este motivo que Dinh et al. assinalam a persistência daquilo a que chamam “o interestatismo”, ou seja, os estados como actores principais das relações internacionais, mesmo após a Revolução Francesa de 1789 (que pôs fim à ordem antiga do ancien régime) e até à actualidade.
A questão central é saber hoje se esse modelo de interestatismo ou interestadualismo terá chegado ao fim. A definição clássica atribui ao estado o monopólio da coercibilidade, isto é, a faculdade exclusiva de recorrer à força física para impor as condutas que decreta. Hoje, pergunta-se se, ao contrário, o estado se encontrará destituído de poderes, se a sua capacidade instrumental se encontrará comprometida pelos novos tempos. Por um lado, é dada como certa a perda definitiva de controlo governamental da economia; por outro, já não é capaz de controlar, através de leis nacionais, o fluxo transfronteiriço de pessoas, da informação, dos capitais, etc.; por fim, a disseminação das armas de destruição maciça por todo o planeta torna vulneráveis os mais fortes e obriga a um “equilíbrio pelo terror” global. Como explica Castells,
“passa a existir uma complexa rede de diferentes níveis de poder de destruição, em que as forças se controlam mutuamente mediante acordos ad hoc e processos negociados de desarmamento e de desistência do desenvolvimento de programas nucleares. Numa rede como esta, nenhum estado-nação, nem mesmo os Estados Unidos, é inteiramente livre, pois um erro de cálculo ou um excesso na demonstração da superioridade bélica pode desencadear uma hecatombe nuclear ou bacteriológica local”.8
Ou seja, por força das contingências, não haverá um domínio “imperial” dos EUA, de que falámos antes.
Ora, se o estado actual dispõe de tão pouca liberdade própria para actuar sozinho e se, aparentemente, é tão impotente face às novas ameaças globais, importa perguntar: o modelo estadual de organização das comunidades políticas ainda fará sentido? A imbricação de estados estará a dar lugar a um novo ente político nascente? Estará já a surgir algo para ocupar o seu lugar?
Para explicar a perplexidade que o assunto suscita, Marques Guedes constrói a metáfora das “cascatas de poder”.9 Em tempos, Lucas Pires falara do fenómeno do “transbordo de poder” das capitais europeias para Bruxelas, para se referir à deslocação “para cima”, para um nível supra-estadual do exercício do poder soberano. Ora, se é certo que assim acontece, também é inquestionável que o sucesso da integração europeia passa — e passará crescentemente — pelo princípio da subsidiariedade, pela aproximação do poder político às necessidades do cidadão, a um nível necessariamente nacional ou até local. É nesse sentido que o poder político escorre como a água de uma cascata, do topo para a base:
“Muitas são as forças que empurram “para cima”. Mas, paradoxalmente, é por outro lado também verdade que há forças que “puxam para baixo”, que exigem mais transparência, mais vezes, perante mais gente, e relativamente a mais coisas. À ampliação ascendente, soma-se assim uma nova subsidiariedade: as melhores (no sentido de as mais legítimas e as mais acatadas) decisões são aquelas em que maior inclusividade seja conseguida; mas, em paralelo, parecem ser também aquelas que sejam tomadas mais perto do utente final”.10
Portanto, ao mesmo tempo que vinte cinco Constituições nacionais autorizam, sob condições, a transferência parcial de poder para a U.E., também é verdadeiro que algum desse poder é “devolvido”, em obediência ao princípio da subsidiariedade e por necessidade prática da governação.11 Ou, como afirma Canotilho, “O estado irá continuar um herói local. Sou defensor de alguma cidadania de proximidade. É o estado que tem de desenvolver o ensino, a cultura e a educação”.12
Pensamos que é prematuro assinar a declaração de óbito do estado-nação. Apesar de todos os sintomas aparentes de doença grave, o estado demonstra ainda ser o último refúgio dos cidadãos, maxime em situações de excepção (que obriguem, por exemplo, à declaração do estado de sítio ou de calamidade). Só o estado pode aproximar-se dessa maneira do cidadão. É para o estado soberano — e não para as organizações internacionais nem para os blocos regionais — que os cidadãos se viram em busca de segurança. Como refere Rogeiro,
“Os atentados de 11 de Setembro de 2001 e o tom apocalíptico de ameaça global à “modernidade” levaram muitos analistas a considerar que, em casos de emergência acentuada ou “queda grave” (o que a doutrina alemã já chamou, em tempos, Ernstfall), o estado é ainda a última razão de protecção, regulamentação e segurança, pelo menos enquanto nele se concentrar o núcleo da repressão organizada”.13
A imbricação dos estados em redes internacionais ou globais é uma realidade — voltaremos ao assunto adiante. Apesar disso, o estado sobrevive, profundamente reconfigurado e ainda em transformação. Resta indagar que futuro é este que já vislumbramos no horizonte...
Defendemos anteriormente que o estado ainda tem um papel a desempenhar e que é prematuro declará-lo falido. Decorre logicamente desta posição adoptada que o modelo actual do interestatismo (ou interestadualismo) não está ultrapassado, apesar das vicissitudes por que tem passado. Analisá-las-emos.
Do que ficou dito atrás, fica claro que a nova ordem mundial é caracterizada pela complexidade e que atravessa um momento de transformação profunda das suas estruturas (maxime os estados). Essa reconfiguração provoca uma tensão entre a soberania estadual e a dinâmica da globalização, o que é mais óbvio no sistema económico e no sistema jurídico-normativo (com as normas europeias, no caso especial da U.E., e com os conflitos que elas causam a nível nacional). Será que, com a implosão da URSS e com o fim da guerra-fria, a nova ordem unipolar deu origem a uma era imperial dos EUA e a uma pax americana?
Defendemos que não. O poder político tem horror ao vazio e, quando um poder desvanece, outro surge em seu lugar. O mundo pós-guerra-fria organizou-se rapidamente em blocos regionais (políticos, económicos, mais do que militares). São exemplo disso a ASEAN, o MERCOSUL, a NAFTA... Todos eles rejeitam que, em nome do bloco, possa ser afastada a supremacia da soberania estadual (à excepção do caso especialíssimo da U.E.). Assim, o nosso ponto é este: mais do que substituir os estados, estes blocos adicionam-se-lhes no xadrez internacional.
Aliás, o papel insubstituível dos estados na criação das novas entidades supranacionais é mais um argumento a favor deste ponto de vista. E não deixa de ser verdade que esses blocos só sobrevivem enquanto os estados mantiverem essa vontade colectiva — foi por isso que tanto se discutiu, a propósito da rejeição dinamarquesa das alterações ao Tratado Europeu, a inexistência de uma cláusula de recesso, de “opting out”. Essa vontade estadual de construção europeia ou de integração mundial (com a OMC, por exemplo) e, consequentemente, de transferência parcial de soberania não pode deixar de representar uma contradição. Sousa Santos assinala esse facto na pluralidade de discursos sobre a globalização:
“Se, para uns, o estado é uma entidade obsoleta e em vias de extinção ou, em qualquer caso, muito fragilizada na sua capacidade para organizar e regular a vida social, para outros o estado continua a ser a entidade política central, não só porque a erosão da soberania é muito selectiva, como, sobretudo, porque a própria institucionalidade da globalização — das agências financeiras multilaterais à desregulação da economia — é criada pelos estados nacionais”.14
Por outro lado, surgem novos estados nascidos de uma série de contextos diferentes: a implosão da URSS (com a independência das antigas repúblicas soviéticas), a secessão por motivos étnicos (como a “Revolução de Veludo” da antiga Checoslováquia), os territórios internacionalizados (como Macau e Hong-Kong, integrados num estado-nação mas com competência e subjectividade internacionais), etc. Todos estes novos entes políticos aspiram à condição de actores de pleno direito na arquitectura do novo sistema internacional, disputando o mesmo estatuto que os estados já existentes.
O mesmo se passa com as ONG, que se tornam sujeitos de direito internacional. É provável que esta tendência das últimas décadas se acentue. As ONG passarão a desempenhar tarefas tradicionalmente atribuídas aos governos (como a ajuda às populações) e terão competências acrescidas celebradas em contratos internacionais entre ONG e com os estados, à imagem dos tratados. Não é irrealista considerar que hoje determinadas ONG já desempenham um papel mais relevante na sociedade internacional que muitos estados (nomeadamente, na ajuda humanitária, na luta pelos direitos humanos, nas causas ambientais, etc.).
A par desta proliferação de sujeitos internacionais, é de prever a tendência de as grandes potências se relacionarem à margem do resto da sociedade internacional, decidindo as suas políticas em “directórios”. O G8 é um exemplo disso (tal como as suas conhecidas variações: G5, G7, etc.). Será que estes “clubes restritos” terão sucesso?
A prática já vem de longe. Alguns autores vêem neles um “governo de facto das grandes potências”:
“Desde o princípio do século XIX, os acontecimentos abriram caminho ao exercício dessa acção colectiva das grandes potências. Esta, depois de ter revestido a forma efémera do Directório europeu, prosseguiu ao longo do século sob a forma do Concerto europeu. O século XX continuou e acentuou esta tendência”.15
Contudo, os directórios enfrentam, cada vez mais, problemas de legitimidade — basta ver a contestação popular às cimeiras económicas do G8, do FMI, do Banco Mundial, etc. Será crescentemente difícil para os governos nacionais deixarem de ouvir o ruído provocado pelos movimentos contestatários. O movimento anti-globalização ATTAC emerge deste sentimento popular, tal como a reivindicação da Taxa Tobin.
Dito isto, estamos agora em condições de sustentar a nossa tese de que a nova ordem mundial é caracterizada por três elementos: a complexidade política, a pluralidade de actores e a multidimensionalidade. Sem que, deste novo panorama, faça parte o fim do interestatismo…
Estando debaixo de fogo de muitos dos seus críticos, o estado contemporâneo vê-se forçado a redefinir as suas áreas de actuação, retirando-se de algumas tarefas e elegendo outras como prioritárias. Uma delas é a política pública relativa ao crime e às sanções penais. Loader e Sparks consideram que “o “estado mínimo” do neoliberalismo é também um estado penal, em modos mais intensos e políticos do que os “regimes estatais” predecessores do período pós-guerra”.16
O crime transfronteiriço sempre existiu (a pirataria marítima, o contrabando, etc.), tal como o crime organizado. O que hoje é novo é que o crime assumiu contornos de sofisticação inimagináveis há pouco tempo e internacionalizou-se: o “polvo” do crime organizado estendeu os seus tentáculos para longe do alcance das jurisdições nacionais, passando a haver novos delinquentes e novas formas de delinquir. Raufer e Quéré consideram que a globalização do crime ocorreu mais rapidamente que a da economia legítima. Devido a legislações heterogéneas, a uma grande variedade de procedimentos, os estados nada puderam fazer para impedir que a economia ilegal infiltrasse e pilhasse a economia legal. Estes dois autores reclamam um “novo realismo criminal” de maneira a descobrir modos de fazer face aos novos desafios, nestes termos:
“Contra os preconceitos académicos, o moralismo mediático, as renitências políticas, é mais do que nunca preciso observar, descrever, decifrar. Como diz Philipe Dufour, “a tarefa do realista é pensar uma situação inédita” — aqui, uma situação criminal inédita: a muito perigosa — e bem-sucedida — mundialização do crime”.17
Podemos observar, pelo menos, seis áreas de actuação do crime organizado: o narcotráfico, os crimes financeiros, o tráfico de seres humanos, a ajuda à imigração ilegal, os crimes tecnológicos e o tráfico diverso.18 Todas estas formas de criminalidade envolvem ou podem envolver um elemento internacional em maior ou menor grau.
O fenómeno criminoso transnacional assume a dimensão de uma economia global do crime. Para Castells, não restam dúvidas de que a “indústria da droga” representa um segmento considerável, e dos mais dinâmicos, das economias latino-americanas, orientada para a exportação e dotada de competitividade, com cinco características: orienta-se para a procura e a exportação; a indústria é internacionalizada, com uma rigorosa divisão da mão-de-obra entre os diferentes locais do processo produtivo; o componente essencial desta indústria é o sistema de lavagem de dinheiro; o nível extraordinário de violência assegura o cumprimento das transacções; e corrompe e infiltra o meio institucional, em todas as etapas do processo.19
A literatura sobre o crime organizado internacional é inabarcável. A maioria dos autores reconhece o uso extensivo que este faz das novas tecnologias (os vírus informáticos, o “phishing”, a pornografia e a pedofilia na internet, as burlas informáticas, os ataques de “hackers”, etc.). De tal maneira assim é que se fala hoje numa nova categoria de criminalidade: o cibercrime. Carrapiço afirma, porém, que não devemos cair no pessimismo de crer que não existe nenhuma forma eficiente de combater esta criminalidade. As autoridades têm uma grande capacidade reactiva, desenvolvendo sistemas mais avançados de cada vez que acontece um ataque (o problema é que esta acção reactiva é, naturalmente, sempre posterior ao crime, não sendo capaz de o evitar). Por outro lado, vários países têm desenvolvido em conjunto estratégias internacionais (por exemplo, a Convenção Internacional Contra o Cibercrime, do Conselho da Europa, de 23 de Novembro de 2001, assinada por 23 estados).20
A resposta a esta nova situação poderá ser, a nível nacional, o aprofundar do princípio da punibilidade das pessoas colectivas e, a nível internacional, a cooperação na elaboração de políticas criminais à escala global, propõe Fernandes.21 A presença das empresas no mundo do crime internacional é indisputável e prevemos que se caminhe no caminho da responsabilidade penal das pessoas colectivas (como se sabe, a regra é a da responsabilidade singular, mas o art. 11.º do nosso Código Penal parece deixar aberta outra hipótese: “Salvo disposição em contrário, só as pessoas singulares são susceptíveis de responsabilidade criminal”). No caso dos crimes ambientais, a importância de poder punir empresas industriais parece tão evidente que dispensa explicações elaboradas.
A necessidade de cooperação internacional justifica-se pelo facto de haver uma tamanha diversidade entre leis e procedimentos de estados diferentes, em relação a crime organizado à escala global, que trava o combate a esse crime; por nem a Interpol (que é um sistema de troca de informações) nem o Tribunal Penal Internacional (que é competente apenas para julgar crimes de genocídio, contra a humanidade, de guerra e de agressão)22 poderem responder adequadamente ao crime transnacional; e por a resposta actual ainda se basear no paradigma do estado-nação soberano.
Concordamos com este autor quando diz que “o crime moveu-se da esfera local para a transnacional ou global e é necessário acompanhá-lo nessa viagem”.23 Porém, parece-nos exagerado pretender uma “política criminal global”, como parece que este autor preferiria. Consideramos também irrealista pretender que o Tribunal Penal Internacional, ou outra instância criada para o efeito, tenha competência sobre crimes de delito comum. A nosso ver, a solução passará pela cooperação internacional e pela harmonização de legislações, sobretudo no direito penal económico. Certo é que o actual direito penal internacional está preocupado com os delitos de natureza mais grave. Nem se compreenderia que fosse de outra sorte. Não se vê que os direitos nacionais abram mão das suas prerrogativas e da sua jurisdição territorial nem se vê que isso fosse do interesse da justiça.
Aliás, um dos textos internacionais a considerar neste aspecto, a Convenção das Nações Unidas Contra o Crime Organizado Transnacional, deixa claro o primado da soberania estadual e do direito interno. No seu Artigo 4.º, n.º 1, diz-se que os estados cumprirão as suas obrigações “no respeito pelos princípios da igualdade soberana e da integridade territorial dos estados, bem como pelo princípio da não-ingerência nos assuntos internos de outros estados”. O n.º 2 do mesmo Artigo estabelece que
“o disposto na presente Convenção não autoriza qualquer estado-membro a exercer, no território de outro estado, jurisdição ou funções que o direito interno desse estado reserve exclusivamente às suas autoridades”.24
O direito internacional actual está a evoluir no sentido de uma sociedade global preocupada com os direitos humanos e esta evolução ergue limites à soberania das justiças nacionais dos estados. As construções jurídicas em torno dos crimes de guerra, de genocídio e contra a humanidade mostram que a concepção da soberania estadual está em evolução. Explicaremos esta tese.
A criação do TPI é um marco importantíssimo no desenvolvimento do direito internacional público. Pela primeira vez, existe uma instância criminal internacional permanente, que persegue o desiderato de uma jurisdição universal, e que dispõe de um “código penal” e de um “código processual penal” simplificados, na forma de uma lista de crimes definidos e do procedimento a adoptar para os julgar. Ainda nem todos os estados aceitam a jurisdição do TPI. Por enquanto, prevalece a regra da jurisdição facultativa nos Tribunais Internacionais, embora possa ser obrigatória através da cláusula facultativa de jurisdição obrigatória. Prevemos que o futuro traga a criação de mais tribunais especializados ou ad hoc e que a jurisdição obrigatória se vá tornando a regra — e não uma excepção.
O primeiro desafio à soberania estadual em matéria de jurisdição penal foi a dos julgamentos de Nuremberga e de Tóquio, instituídos pelos Aliados. A principal acusação que se lhes faz é a de terem realizado a “justiça dos vencedores”, aplicando retroactivamente a lei e sentenciando arguidos por crimes que não o eram à luz dos respectivos ordenamentos internos. Contestamos este entendimento. Não é por acaso que nunca foi encontrada nenhuma ordem escrita a determinar o extermínio dos judeus e de outros detidos nos campos de concentração nazis. Os dirigentes do Reich sabiam bem que esse genocídio era chocante para a consciência dos homens da altura e não foi inocentemente que ocultaram o extermínio. Por outro lado, certamente não havia nenhuma lei alemã a punir o crime de homicídio de cidadãos alemães à excepção dos que fossem de origem judaica.
De qualquer modo, a Carta do Tribunal Militar de Nuremberga tornava-o competente para julgar crimes de guerra, contra a paz e contra a humanidade — e isto independentemente de serem, ou não, crimes à luz da lei do país onde tivessem sido cometidos (Art. 6.º da Carta do Tribunal Militar Internacional). Ora, esta instância é, de certa maneira, a primeira concretização da jurisdição universal. Esta consiste na ideia de que há crimes tão chocantes para a consciência das pessoas de bem que os seus perpetradores não devem obter refúgio em nenhum país nem em nenhuma lei nacional.
A mesma ideia estava presente na Convenção Contra a Tortura, de 1984, que foi o argumento jurídico invocado pela Câmara dos Lordes britânica, na sua primeira sentença, a autorizar a extradição para Espanha de Pinochet (uma vez que o Chile havia ratificado essa convenção). O julgamento de Eichmann em Jerusalém é um precedente importante a reter: Israel raptou-o da Argentina, julgou-o e sentenciou-o à morte. O estado israelita não se apresentou como representante legal das vítimas, mas invocou a jurisdição universal sobre crimes de guerra. E, na sociedade internacional da época, como na de hoje, não se contesta que Israel tivesse o direito de punir crimes praticados na Alemanha nazi. Outro precedente importante é a extradição, em 2003, de Ricardo Cavallo do México para Espanha, acusado de crimes durante a ditadura militar argentina — o Supremo mexicano considerou que se aplicava aqui a jurisdição universal.
Em 2001, um grupo de jus-internacionalistas, reunidos na Universidade de Princeton, formulou os “Princípios de Princeton sobre Jurisdição Universal”. Estas ideias defendiam que qualquer país deveria julgar crimes de guerra, independentemente do local onde tivessem ocorrido, da nacionalidade dos arguidos ou das vítimas, e das jurisdições de outros estados. Se isto tivesse sido posto em prática, estabelecer-se-ia uma verdadeira jurisdição universal em matéria penal para os crimes mais graves.
No essencial, os catorze Princípios de Princeton procuram sustentar que qualquer responsável político está sujeito a uma acusação, não podendo eximir-se com o argumento de que agira na sua qualidade de chefe de estado ou outra; que a acusação por estes crimes não conhece limites; que as “amnistias em branco” devem ser evitadas por não permitirem a responsabilização dos culpados; que um estado deve recusar a extradição se o suspeito puder enfrentar a pena de morte, uma pena desumana ou um processo não equitativo.25
Porém, a jurisdição universal suscita mais problemas do que respostas. Ela poderia levar estados a prender e julgar nacionais de outros estados por crimes internacionais falsamente cometidos. Na Europa, apenas a Bélgica adoptou esta jurisdição universal, mas rapidamente a aboliu, quando as autoridades de vários países (israelitas, norte-americanos, etc.) deixaram de se deslocar à Bélgica, com receio do alcance desta lei.
Um tribunal internacional eficaz, como o TPI, poderá tornar desnecessária a defesa de uma jurisdição universal. A prisão e o julgamento de Milosevic mostra que a Europa desperta para a ideia de que a soberania nacional não deve oferecer protecção a culpados de crimes tão graves. Simultaneamente, a fuga de Karadzic, ainda a monte, mostra que a justiça internacional do TPI e dos tribunais ad hoc ainda não estão a funcionar em pleno.
Por motivos éticos e jus-internacionalistas, não podemos senão defender a experiência do TPI. Pela primeira vez na história do mundo, existe uma instância a funcionar permanentemente, que aplica a lei penal internacional. Os relatos recentes e a investigação do Conselho da Europa sobre as prisões clandestinas na Europa para onde os EUA alegadamente enviam suspeitos de terrorismo, presumivelmente para serem torturados, não podem deixar de merecer o mais veemente repúdio.
À maior parte das consciências, não repudiará que, se existe a punição do genocídio, também deverá evitar-se que ele ocorra. A intervenção internacional tem um longo lastro filosófico, de Kant a Stuart Mill ou a Walzer. Propositadamente, abstemo-nos aqui de trilhar esse caminho. O nosso propósito é demonstrar que a passividade da sociedade internacional não é tolerável, por motivos ético-jurídicos, e que existe um “dever de ingerência”.
Partindo da premissa da necessidade de intervenção da sociedade internacional para evitar que ocorra um genocídio, defrontamo-nos com duas questões: Quem deverá decidir essa intervenção? Que critérios deverão ser usados para decidir essa intervenção?
Em 2000, a Comissão Internacional para a Intervenção e Soberania do Estado, formada por iniciativa do Canadá, propôs dois critérios: 1. A perda de vidas em larga escala, em resultado da acção ou da falta de acção de um estado; 2. A “limpeza étnica” em larga escala, real ou potencial. A Comissão declarou não só o direito de intervenção, mas também a responsabilidade internacional de proteger os seres humanos. Foi à luz deste princípio que ocorreu a intervenção internacional em Timor-Leste, na sequência da onda de violência após o referendo sobre a independência.
Mas em que circunstâncias intervir? Singer defende que, só por si, a violação interna dos direitos humanos, por reprovável que seja, não constitui uma ameaça à paz internacional. A existência de governos não democráticos parece fornecer um pretexto fácil para intervenções motivadas por outras razões (o caso do Iraque parece oferecer alguma evidência neste sentido). Este autor apenas dá crédito à ideia de que os direitos de jurisdição nacional não recobrem a prática de crimes de genocídios e similares...26 no seguimento, aliás, do que temos vindo a defender neste ensaio.
À luz disto, deverá intervir-se na China por causa do Tibete? Ou na Rússia por causa da Chechénia? Em termos práticos, dificilmente se perspectiva que essa intervenção fizesse mais bem que mal à paz e à segurança internacionais. Singer avança uma proposta:
“é certo fazer-se o que terá melhores consequências, e este critério diz-nos que não devemos intervir quando os custos da intervenção serão provavelmente maiores do que os benefícios alcançados”.27
À primeira vista, parecerá um critério com dois pesos e duas medidas, mas trata-se, na realidade, de uma proposta consequencialista, ou seja, devemos antecipar as consequências da acção para avaliarmos da sua bondade.
E quem deve decidir essa intervenção? Este autor reitera, com razão, que a ONU não é um modelo de democracia, ao instituir o veto dos membros permanentes do Conselho de Segurança (hoje, claramente sem relação com o equilíbrio de forças mundiais), mas, inexplicavelmente, critica a intervenção deste órgão da ONU:
“O Conselho de Segurança tem um mandato ilimitado para interferir sempre que considere adequado. No direito internacional, não há qualquer fundamento para a atribuição de tais poderes ao Conselho de Segurança”.28
Aqui, divergimos frontalmente. À luz da Carta das Nações Unidas, esse direito assiste a este órgão (Art. 24.º sobre as funções e poderes do C.S., 39.º, 42.º e seg. sobre a acção em caso de ameaça à paz, ruptura da paz e acto de agressão). É de sublinhar que a Carta das Nações Unidas não foi imposta aos estados; eles aderiram-lhe livremente. Aliás, sendo de acesso livre (a sistemas democráticos ou não), a ONU tem constituído o único fórum onde estados desavindos se têm encontrado. E, com todas as críticas que justificadamente há a fazer ao C.S., é justo dizer que da acção dele não tem resultado ameaça para a paz no mundo. A prová-lo, existe o caso timorense. Quando muito, poderíamos criticar a ausência de acção em determinadas ocasiões.
Os juristas desde sempre têm defendido a existência de direitos no plano internacional ditos “inalienáveis”, “inerentes” ou “fundamentais”. Porém, foi preciso esperar até à segunda metade do século XX para que um corpo de “jus cogens” encontrasse consagração, primeiro na Comissão de Direito Internacional da ONU e depois na Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados.
A principal característica das regras de “jus cogens” é a sua não-derrogabilidade: só podem ser afastadas pela formação de uma nova regra consuetudinária subsequente, e não por tratado ou pela vontade dos estados.29 A doutrina é fértil em justificar a existência deste corpo de direitos, mas não a explicitar concretamente quais são. Parece que, em termos práticos, um estado que invocar uma regra de “jus cogens” enfrentará o ónus da sua prova. Brownlie refere que, entre os menos controversos, estarão a proibição do uso da força, do genocídio, dos crimes contra a humanidade, do comércio de escravos, de pirataria, da discriminação racial e, provavelmente, a autodeterminação e a soberania permanente sobre os recursos naturais.30
A expansão deste corpo de direitos é indissociável do progresso da Democracia e do estado de direito constitucional. A última vaga do Constitucionalismo ocorreu aquando da independência das antigas Repúblicas soviéticas e da democratização dos países da Europa de Leste. Também é acertado lembrar que, se se dotam de uma constituição, nem todos os estados se tornam verdadeiramente estados de direito democrático.
Já aludimos anteriormente ao facto de que o estado constitucional é uma invenção europeia. Em que medida estaremos a exportar ou a impor valores ocidentais? Canotilho responde que “o estado de direito transporta princípios e valores materiais razoáveis para uma ordem humana de justiça e paz”31. Noutro lugar, este autor explica que este é um problema que se põe hoje a nível global:
“Os direitos humanos são indissociáveis das comunidades de pertença (religiosas, culturais, étnicas, geográficas). Precisamente por isso, os debates dos direitos humanos ultrapassam a titularidade das pessoas para se converterem em desafios interculturais de direitos humanos de pessoas comunitariamente inseridas”.32
Acompanhamos Canotilho quando prevê que a luta pelo reconhecimento dos direitos humanos (e do estado constitucional de direito, acrescentamos nós, necessariamente) originará um fundamento ético-jurídico contrário à sua relativização.
Assim, concluímos que o desafio global que o direito internacional hoje enfrenta, nesta era de risco e de globalização, é o de construir, sobre os alicerces da soberania nacional e dos direitos dos estados, uma nova ética global, assente nos direitos humanos, no estado de direito constitucional e no direito penal internacional. Este é um horizonte que já desponta: a do direito internacional como nova ética da globalização.