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Crítica
25 de Março de 2006   Filosofia política

O problema da justificação do estado

Jean Hampton
Tradução e adaptação de Vítor João Oliveira

Pensa por momentos na tua própria sujeição política. Estás continuamente a ser sujeito a regras de que não és o autor — designadas por “leis” — que te governam não apenas a ti mas aos outros, que impõe, por exemplo, a velocidade a que deves andar na auto-estrada, o comportamento que deves ter em público, que tipo de acções para com os outros são permissíveis, que objectos contam como “teus” ou “deles”, e assim sucessivamente. Estas regras são impostas por determinadas pessoas que seguem as directivas daqueles que as criaram definindo também punições para o caso de não serem cumpridas. Sabes ainda que se não obedeceres a estas regras, é bastante provável que sofras consequências indesejáveis, que podem ir de pequenas multas à prisão e até (em certas sociedades) à morte.

A sensação que tens quando és governado é a de que não és subjugado nem coagido. Se não aprovamos que um homem aponte uma arma à tua cabeça e que exige que lhe dês o teu dinheiro, então por que havemos de aprovar que qualquer grupo ameace recorrer a multas, ou à prisão, ou à pena de morte para que te comportes de uma certa forma, ou para que lhe dês o teu dinheiro (a que chamam “impostos”) ou para que lutes em guerras que eles provocaram? Será esta sujeição realmente permissível de um ponto de vista moral, especialmente porque os seres humanos precisam de liberdade para se aperfeiçoarem?

Para responder a esta questão é necessário pensar sobre a diferença daquilo que intuitivamente nos aparece como “boas” ou “más” formas de controle. O controle de um pai sobre o seu filho de dois anos é normalmente visto não só como permissível mas como moralmente necessário. O controle exercido por um homem armado sobre a vítima que raptou é normalmente visto como altamente censurável. Este tipo de controle é considerado moralmente injustificado — representa a violação dos “direitos” da pessoa coagida. O outro é visto como moralmente justificado porque não é apenas consistente com os direitos da criança, como até os torna possíveis. Mas o que distingue então entre formas correctas e incorrectas de controle sobre os seres humanos? E se o controle político é fundamentalmente diferente do controle dos pais por que razão deve contar como um exemplo de “bom” controle em vez de “mau” controle?

Dizemos intuitivamente que as boas formas de controle derivam de um certo tipo de autoridade que o controlador correctamente exerce sobre a pessoa que controla. Podemos estar a falar da autoridade do pai sobre a criança ou da autoridade do professor sobre os estudantes na sala de aula ou da autoridade do sacerdote sobre os membros da sua congregação. Podemos dizer que o controle correcto de uma pessoa sobre outras em certas áreas decorre da autoridade dessas pessoas nessas áreas. Mas de onde vem essa autoridade? Será que os governantes numa sociedade política a têm? E se a têm, que tipo de autoridade será?

O que quer que seja, não é o mesmo que o poder (absoluto). A autoridade decorre da legitimidade que se possui para governar, e o simples poder não garante esta legitimidade. Há uma máxima bastante popular entre os tiranos que diz “o poder faz o direito”. […] Mas a maior parte das pessoas, particularmente aquelas que sofreram o infortúnio de estar sujeitas ao poder dos tiranos, condenaram e rejeitaram esta máxima, afirmando que há uma diferença imensa entre um governante que tem autoridade para governar e um poderoso barão corrupto que, com os seus capangas, controla as pessoas através do medo e do terror de uma forma que eles desprezam. Diz-se que os governantes têm não apenas o poder para fazer leis e para as fazer cumprir, mas a legitimidade para o fazer. E quando o fazem, diz-se que têm autoridade política.

Relacionada com esta legitimidade está a obrigação de as pessoas obedecerem à autoridade do governante. Se sou súbdito de um governo ao qual reconheço autoridade, então não devo apenas obedecer ao estado porque receio ser sancionado se não o fizer e receio ser apanhado, mas também (e mais fundamentalmente) porque acredito que o devo fazer: “Devo fazer isto porque é a lei”, penso para mim. E sendo uma lei coloca-me sob uma obrigação, independentemente do seu conteúdo ou directiva. Não posso odiar ou gostar do que me mandam fazer, pois desde que essa ordem derive de uma autoridade política legítima, acredito que tenho a obrigação de a cumprir. Essa obrigação suplanta todo o tipo de razões que eu possa ter contra a obediência a ordens directas (ainda que possamos pensar que não suplanta todas as razões — por exemplo, pode não suplantar as razões baseadas em certos princípios morais que possam parecer mais importantes do que a obrigação política, como afirmam os defensores da desobediência civil).

Em síntese, podemos definir a autoridade política seguindo a sugestão de um filósofo recente, a saber:

A pessoa X tem autoridade política sobre a pessoa Y se, e só se, do facto X de exigir que Y realize um dada acção p dá a Y uma razão para fazer p, independentemente do que p seja, em que esta razão supera todas (ou quase todas) as razões que Y possa ter para não realizar p. (Joseph Raz, The Authority of Law, 1979)

Mas de onde deriva esta autoridade? Responder a esta questão implica compreender o tipo de autoridade que têm os governantes. Seguramente têm autoridade para fazer leis e para as fazer cumprir, mas em que áreas podem estas leis vigorar? Podem vigorar em todas as dimensões da vida humana? Ou há limites e constrangimentos quanto à amplitude do controle que têm sobre nós? E será que essa autoridade está sujeita a algum tipo de constrangimento moral? Quer dizer, devem as regras que criaram ter um (certo) conteúdo moral para que possam ser consideradas legítimas por nós? Ou estamos sujeitos a essas regras independentemente do seu conteúdo apenas em virtude de terem emanado de pessoas que têm autoridade sobre nós? Historicamente, os filósofos políticos dividiram-se quanto às respostas a estas questões: […] alguns, como Thomas Hobbes no Leviatã (1651) defenderam que a autoridade política é ilimitada na sua aplicação (alargando-se a todas os domínios da vida humana) e substancialmente não limitada. Outros, como John Locke em Dois Tratados sobre o Governo (1689), defenderam que a autoridade política é consideravelmente limitada — no conteúdo e na aplicação. No entanto, independentemente do modo como se gera esta controvérsia, note-se que mesmo o mais ardente defensor da ideia de que a autoridade política é limitada deve ainda assim aceitar que é um tipo substancial de autoridade, que envolve, entre outras coisas, autoridade sobre a vida e a morte daqueles que lhe estão sujeitos. Este poder é óbvio no contexto da punição, mas mesmo em sociedades que baniram a pena de morte, o controle do estado sobre a vida expressa-se no seu direito para conduzir a guerra e no seu direito para usar diversos meios mortais para perseguir aqueles que infringem as leis. Se a autoridade política envolve tanto controle, como pode ser legítima?

Alguns pensadores, conhecidos como “anarquistas”, concluíram que isto não é defensável e criticaram os filósofos que tomaram como segura a ideia de que a dominação política é uma forma de dominação especial moralmente justificada. Estes anarquistas insistiram que a única forma de associação humana moralmente defensável é aquela em que nenhumas pessoas ou instituições dão ordens suportadas pelo uso da força.

Jean Hampton
Political Philosophy, de Jean Hampton (Oxford: Westview Press, 1997), pp. 3–6.
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ISSN 1749-8457