A pergunta central que anima o pensamento liberal é: como as pessoas podem viver conjuntamente como livres e iguais? Essa pergunta vem sendo revigorada pelo surgimento do que podemos chamar de liberalismo neoclássico. Liberais neoclássicos, como David Schmidtz, Gerald Gaus, Charles Griswold, Jacob Levy, Matt Zwolinski, Will Wilkinson e nós, os autores, compartilham o compromisso dos liberais clássicos com as liberdades econômicas robustas e os direitos de propriedade, assim como o compromisso dos modernos ou “liberais elevados” com a justiça social. Na perspectiva liberal neoclássica, parte da justificação em favor de dada estrutura básica da sociedade é que esta produza condições nas quais os cidadãos possuam liberdades substanciais e possam, assim, defrontarem-se uns aos outros como livres e iguais. Se avalia a estrutura fundamental da sociedade por meio de tipos de resultados produzidos para os cidadãos. Liberais neoclássicos combinam um compromisso robusto com a justiça social — compromisso este tão robusto quanto aquele dos liberais elevados — bem como um compromisso com um conjunto mais abrangente de liberdades fundamentais do que aquele defendido pelos liberais elevados. O liberalismo neoclássico, portanto, alega ser a versão moralmente mais ambiciosa de liberalismo.
Para localizar o espaço conceitual distinto que vem sendo talhado pelos liberais neoclássicos, começaremos com um mapa do terreno ideológico. Primeiro, distinguiremos o liberalismo clássico (e libertarismo) do liberalismo elevado. Depois explicaremos como o liberalismo neoclássico surge em contraste a essas duas outras perspectivas.
Por “liberalismo clássico” entendemos uma ampla escola de pensamento que inclui Adam Smith, David Hume, F. A. Hayek e libertários como Robert Nozick (Schmidtz e Freiman, 2012). O liberalismo elevado, por outro lado, é o liberalismo de, e.g, T.H. Green, John Rawls, Ronald Dworkin, Samuel Freeman, Martha Nussbaum e Will Kymlicka (Wenar, 2012). Uma maneira de distinguir entre os tipos de liberalismo é a partir de suas diferentes concepções de liberdade econômica. Liberais clássicos afirmam o que chamamos de concepção espessa de liberdade econômica; liberais elevados, uma concepção estreita.
A maioria dos liberais concorda que algumas liberdades são mais importantes do que outras. Essas liberdades fundamentais merecem um forte grau de proteção política. Em suas listas de liberdades fundamentais, a maioria dos liberais incluem não apenas algumas liberdades políticas e civis, mas também algumas liberdades econômicas, como o direito à propriedade. Entretanto, liberais divergem quanto a amplitude das liberdades econômicas fundamentais. Liberais clássicos atribuem à liberdade econômica e às liberdades civis a mesma amplitude. Tal como o reconhecimento da liberdade religiosa requer a proteção ampla da atividade independente no domínio religioso, a liberdade econômica também requer a proteção da atividade independente no domínio econômico.
Uma ramificação importante dentro da tradição liberal ocorreu com o tratamento da liberdade econômica feito por Mill (Freeman 2011). Mill sugere que as liberdades econômicas devem ser tratadas de forma distinta das liberdades de pensamento, associação e religião. As decisões tomadas em relação ao trabalho e à propriedade não têm conexão intrínseca com a liberdade no sentido Milliano do termo. A atividade econômica não é uma expressão da liberdade e, por essa razão, direitos e poderes acerca da propriedade e do trabalho devem ser definidos, sobretudo, pelos ditames da utilidade. (Mill 2004, 209-223; Jacobson 2000, 293–295).
John Rawls igualmente adota uma plataforma de excepcionalismo econômico. Ele atribui às liberdades econômicas um baixo grau de proteção. Rawls afirma que os direitos econômicos de amplo escopo não são “necessários ao desenvolvimento e ao exercício dos poderes morais”.1 No que diz respeito à liberdade laboral, Rawls reconhece apenas o direito à escolha da própria ocupação profissional, mas não reconhece a liberdade ao empreendedorismo autônomo e/ou a de contratar outras pessoas para fins produtivos. Quanto a propriedade, Rawls reconhece apenas o direito fundamental à propriedade pessoal e exclui quaisquer direitos que protegem a propriedade com fins produtivos (propriedade agrícola familiar, negócios e outros “meios de produção”). Direitos à propriedade privada produtiva e aos contratos não são fundamentais e, assim, quaisquer leis que reconheçam tais direitos devem ser elaboradas a fim de alcançar a justiça distributiva. Essa concepção estreita da liberdade econômica é a marca da tradição dos liberais elevados (Gaus, 2012).
O “libertarismo” pertence à tradição do liberalismo clássico.2 Como liberais clássicos, os libertários defendem uma concepção espessa de liberdade econômica. Liberais clássicos tradicionais sustentam que as liberdades econômicas estão à par com as liberdades civis. Os libertários, porém, defendem que as liberdades econômicas constituem os direitos mais importantes; são talvez direitos morais absolutos. Alguns libertários acreditam que todos os direitos – como a liberdade de expressão, a liberdade de associação e a liberdade sexual — são meramente instâncias do direito à propriedade. Alguns libertários atribuem tamanho peso às liberdades econômicas a ponto de defender que o estado deve fazer valer qualquer contrato feito voluntariamente pelos cidadãos — até mesmo contratos de escravidão.
O libertarismo de esquerda é uma versão de libertarismo que se afasta da versão padrão no modo que compreende o conceito de apropriação original (Vallentyne, 2012). De acordo com a versão padrão, os recursos naturais são, inicialmente, propriedade de ninguém. Em contrapartida, os libertários de esquerda sustentam que o mundo, ou ao menos o valor econômico dos recursos do mundo, já é inicialmente possuído conjuntamente por todos. Libertários de esquerda, diferentemente dos liberais neoclássicos, não endossam uma concepção de justiça social. Eles sustentam uma concepção espessa de liberdade econômica como requisito da autopropriedade, e não como requisito da justiça social.3
A figura 1 abaixo ilustra o espaço conceitual ocupado pela tradição liberal neoclássica, mapeando-a em oposição às perspectivas liberais rivais:
Defende a justiça social na avaliação da estrutura básica? | |||
Sim | Não | ||
Entendimento da liberdade econômica |
Espessa | Liberalismo neoclássico | Liberalismo tradicional clássico Libertarismo comum Libertarismo de esquerda |
Estreita | Liberalismo elevado | Liberalismo civil4 |
Fig. 1: variações do liberalismo
Note que a fig. 1 distingue as perspectivas liberais umas das outras, mas não as distingue das tradições não-liberais.5 Por exemplo, o socialismo Marxista defende a justiça social e uma concepção fina de liberdade econômica, mas não está em lugar algum da tabela. Algumas teorias conservadoras sustentam uma concepção espessa de liberdade econômica e rejeitam a justiça social, mas também não são exibidas em qualquer lugar da tabela.
Distinguimos o liberalismo clássico do elevado a partir da maneira como tratam a liberdade econômica – se endossam uma concepção espessa ou estreita de liberdades econômicas fundamentais. Por outro lado, Samuel Freeman distingue essas duas escolas não por seus compromissos morais substanciais, mas por seus fundamentos justificadores. Freeman afirma que a maior parte dos liberais clássicos dá ênfase às liberdades privadas econômicas por acreditar que tais liberdades conduzem à felicidade geral. Liberais elevados, Freeman argumenta, não dão ênfase às liberdades econômicas do capitalismo, porque se preocupam em respeitar os cidadãos como livres e iguais. Portanto, Freeman, seguindo Rawls, chama o liberalismo clássico de “liberalismo da felicidade” e o liberalismo elevado de “liberalismo da liberdade” (Freeman 2007, 45). Liberais elevados se comprometem com a igualdade substancial, a liberdade substancial e a justiça social; liberais clássicos se preocupam apenas com a igualdade formal e a liberdade negativa.
Isso talvez distinga com precisão o liberalismo elevado de muitas formas tradicionais de liberalismo clássico. Entretanto, essa maneira de distinguir as tradições clássica e elevada do liberalismo encerram justamente às questões que os liberais neoclássicos pretendem suscitar. Devem as defesas das liberdades econômicas espessas se apoiar apenas na eficiência, felicidade e autopropriedade? Será que respeitamos integralmente as pessoas como agentes autônomos livres e iguais ao restringir as suas liberdades econômicas individuais? É a defesa do valor intrínseco da liberdade econômica compatível com o compromisso baseado na justiça de se fazer avançar o interesse dos pobres? Pode uma concepção espessa de liberdade econômica ser uma exigência da justiça social?
Nos debates com os liberais clássicos, os liberais elevados acreditam ocupar o plano moral mais elevado. O termo “liberal elevado” sugere a satisfação ou culminação de um movimento. Liberais elevados descrevem seu ideal de igualdade substantiva — com sua manifesta preocupação com o bem-estar material dos pobres — como um avanço evolutivo em relação aos ideais meramente formais defendidos pelos liberais clássicos (Nagel 2003, 63). Para liberais clássicos e libertários, essa sugestão de supremacia evolutiva é suspeita. Seja qual for a preocupação que os liberais elevados demonstram pelo bem-estar material dos cidadãos, eles propõem limitar a liberdade de todos os cidadãos em uma de suas facetas tradicionalmente considerada como uma das mais importantes: a atividade independente e a tomada de decisão no que diz respeito aos aspectos econômicos da vida individual.
Dada a importância que os liberais elevados atribuem à redução do âmbito e do peso concedidos à liberdade econômica, o fato de as suas defesas dessa redução tenderem a ser superficiais e desprovidas de argumentos causa surpresa. Mill diz que os direitos à propriedade não protegem a individualidade porque o comércio é um ato social (Mill 1978, 94). Porém, a expressão e a associação não possuem natureza menos social. Rawls, como vimos, simplesmente afirma que os cidadãos não necessitam de liberdades econômicas espessas para desenvolverem os seus poderes morais. Contudo, os poderes morais dos cidadãos incluem a capacidade de desenvolver e adotar um projeto de vida para si próprios. O argumento de Rawls em favor da importância da liberdade ocupacional parece também favorecer uma ampla liberdade de trabalho. Afinal de contas, uma pessoa se define não apenas pela profissão que escolhe, mas também pelos termos que aceita em troca de seu trabalho, pelo número de horas que decide dedicar-se ao trabalho, e muito mais. Assim, razões para proteger a propriedade pessoal também parecem aplicar-se a muitas outras formas de propriedade produtiva (Nickel 2000). Alguns liberais elevados procuram justificar o excepcionalismo econômico argumentando que os direitos de propriedade são noções socialmente elaboradas (Murphy e Nagel 2002). Eles afirmam que a organização e a extensão dos títulos de propriedade que observamos na sociedade são possíveis apenas em virtude de estruturas sociais. Dizem que as crenças “libertárias cotidianas” – que os direitos à propriedade são capazes de restringir as atividades do estado e que tais direitos têm uma força moral independente e anterior ao estado — são confusas. Ainda assim, liberais superiores defendem que muitos direitos fundamentais dependentes de elaboração social — tal como o direito de não ser assassinado — têm força moral anterior ao estado (G. Brennan 2005). E mesmo se for verdade que as pessoas não possam possuir e desfrutar de grande parte de seus direitos de propriedade num estado de natureza Hobbesiano, elas também não poderiam exercer e desfrutar de muitas outras liberdades fundamentais. Na falta de uma distinção mais persuasiva entre direitos de propriedade e esses outros direitos, o tratamento diferenciado conferido aos direitos de propriedade pelos liberais elevados parece ser injustificado.
Liberais neoclássicos se aliam aos liberais tradicionais clássicos e libertários em seu ceticismo quanto a plataforma de excepcionalismo econômico dos liberais elevados. Entretanto, os liberais neoclássicos oferecem argumentos positivos em favor da liberdade econômica espessa que os distingue tanto dos liberais tradicionais quanto dos libertários.
Considere os libertários. Na interpretação ortodoxa de Nozick, ele fundamenta essa concepção de propriedade no conceito de autopropriedade. Direitos de propriedade surgem como uma relação entre as pessoas e os objetos no mundo, pelo processo por meio do qual autoproprietários misturam o seu trabalho com as coisas não possuídas. Direitos de propriedade são anteriores ao estado em um forte grau. O estado existe para proteger os direitos pré-existentes e é, portanto, restringido por esses direitos.6
Em vez de começar pela ideia de autopropriedade, alguns liberais neoclássicos procuram fundamentar os direitos de propriedade (e outras liberdades econômicas) nas mesmas ideias morais sustentadas pelos liberais elevados (Gaus 2007; Tomasi 2012a). Por exemplo, alguns liberais neoclássicos concentram-se no ideal moral de cidadãos que vivem em conjunto como agentes responsáveis e autores de suas próprias vidas. Essa abordagem deve mais a Kant do que a Locke. Por meio dela, liberais neoclássicos podem defender um vasto grau de liberdade individual acerca de questões econômicas pelas mesmas razões que defendem liberdades gerais acerca de questões religiosas e associativas: uma concepção espessa de liberdade econômica é uma condição necessária para que uma pessoa seja, de modo responsável, a autora de sua própria vida. A frequência com que os direitos de propriedade são relações entre pessoas e objetos é menor do que a frequência em que são relações entre pessoas enquanto agentes morais.7 Os direitos surgem como um reconhecimento social de que honrar a capacidade dos cidadãos serem os autores de suas próprias vidas exige o respeito à capacidade de os indivíduos fazerem escolhas privadas relativas a questões econômicas. Restringir a capacidade de se fazer escolhas econômicas ou, o que é pior, tratar as atividades econômicas meramente como meios para fins sociais, violaria a dignidade das pessoas e seria uma forma injusta de tratá-las. Embora reconhecíveis sem a existência do estado, os direitos amplos à liberdade econômica, são ratificados e tornados plenamente vinculantes pela comunidade política. Nessa perspectiva, as exigências da liberdade econômica ajudam a definir os contornos e os limites do estado, mesmo sem serem radicalmente anteriores a ele.
Essa abordagem da liberdade econômica ajuda a destacar outra importante diferença entre a visão neoclássica e a liberal tradicional. Enquanto liberais clássicos como F.A. Hayek e Milton Friedman defendiam uma rede de segurança social, suas defesas parecem ad hoc dadas as suas fortes asserções em favor da santidade dos direitos de propriedade.8 Por outro lado, liberais neoclássicos defendem aquilo que podemos chamar de uma razão “completamente principialista” em favor de uma rede de segurança social. Uma razão em favor de uma dada política pública é “completamente principialista” se o mesmo raciocínio que favorece as características mais amplas de uma dada perspectiva também favorece a política pública em questão. De acordo com a abordagem neoclássica descrita acima, o estatuto dos cidadãos como agentes responsáveis e autores de sua própria vida pode ser ameaçado por condições de extrema necessidade. O estado neoclássico deve ter o poder de definir e interpretar o conjunto de direitos fundamentais a fim proteger o estatuto moral das pessoas como autoras de suas próprias vidas. Portanto, ao contrário de muitos liberais clássicos tradicionais, os liberais neoclássicos podem defender uma rede de segurança social de maneira completamente principialista. Os mesmos fundamentos que os liberais neoclássicos utilizam para justificar a rede de segurança social também explicam as suas críticas às inúmeras invasões na liberdade econômica defendidas pelos liberais elevados. Sem aquelas garantias constitucionais que têm a função de proteger a tomada de decisão econômica independente, as pessoas se tornam inaptas a exercer integralmente os seus poderes morais de serem os autores de suas próprias vidas. Por todas essas razões, liberais neoclássicos defendem a importância da liberdade econômica e assim rejeitam a plataforma de excepcionalismo econômico dos liberais elevados.
Os Liberais elevados julgam que se situam em um plano moral superior no debate com os liberais clássicos. Eles acreditam que, ao limitar a liberdade econômica dos cidadãos, eles possibilitam que o estado promova as exigências distributivas da justiça social. Aqui, mais uma vez, o liberalismo neoclássico perturba os antigos termos do debate.
Frequentemente equiparamos a liberdade com a ausência de restrições, barreiras ou interferências. Por exemplo, uma pessoa possui liberdade de expressão quando ninguém a impede de falar o que bem entende. Chamemos essa ideia de liberdade negativa (Pettit, 2012).
Os marxistas se queixam de que as liberdades negativas têm pouco valor por si próprias. Eles afirmam que a liberdade é valiosa apenas quando as pessoas têm os meios financeiros e sociais para exercê-la. Ninguém interfere na vida do sem-teto, mas ele não é livre em qualquer sentido real. Assim, alguns marxistas dizem que a liberdade genuína é o poder efetivo, capacidade ou habilidade de fazer o que se tem vontade. Chame essa concepção de liberdade de liberdade positiva. Por exemplo, um pássaro tem a liberdade positiva de voar, mas os seres humanos não a têm.
Liberais elevados concordam com os marxistas que, na ausência de recursos adequados, os cidadãos seriam incapazes de considerar as suas liberdades negativas como algo digno de valor. Todos, ricos e pobres, têm a liberdade negativa de comprar um iate, mas apenas os ricos podem exercer ou desfrutar dessa liberdade. Os liberais elevados concluem que, para garantir que as pessoas desfrutem de suas liberdades e que tenham liberdade positiva, é preciso que os cidadãos tenham salvaguardas legais que assegurem o fornecimento de recursos adequados.
Em resposta à crítica marxista, liberais clássicos tradicionalmente argumentaram que a liberdade negativa exaure o conceito de liberdade. Qualquer outro uso do termo “liberdade” é confuso e ilegítimo. Eles batem na mesa e insistem que liberdade é liberdade, e não poder. Isaiah Berlin e F. A. Hayek acreditavam que a identificação da liberdade positiva como uma espécie genuína de liberdade permitiria automaticamente um estado de bem-estar social extenso, uma democracia social (possivelmente intrusiva) ou até mesmo o socialismo, porque tais regimes oferecem garantias legais de que os cidadãos desfrutem de liberdade positiva (Berlin 2000; Hayek 1960, 16–19). Marxistas e liberais elevados obviamente concordam que qualquer pessoa que acredite na importância da liberdade positiva se compromete com alguma forma de estrutura básica social-democrata ou socialista.
O liberalismo neoclássico sustenta que todos os lados desse debate estão enganados. Os liberais clássicos estão enganados por rejeitar a liberdade positiva como uma espécie genuína de liberdade. Liberais clássicos, marxistas e liberais elevados estão enganados por acreditar que um compromisso com a liberdade positiva implica um compromisso com um estado social extenso, uma democracia social ou uma economia socialista.
O liberalismo neoclássico, tal como o marxismo, concorda que os cidadãos devem possuir meios eficazes para exercitar as suas escolhas, viver como bem entenderem (desde que não violem os direitos dos outros cidadãos) e assim levar a cabo as suas concepções de vida boa. Liberais neoclássicos concordam com os liberais elevados no que diz respeito à ideia de que os cidadãos devem possuir os meios eficazes para se encarar como livres e iguais.
Liberais neoclássicos argumentam que a liberdade negativa importa em parte porque, historicamente, proteger as liberdades negativas têm sido e continuará sendo o meio mais importante e eficiente de promover a liberdade positiva (Schmidtz e Brennan 2010; Brennan e Schmidtz 2010). Graças ao crescimento econômico, cultural e científico, um cidadão comum das nações ocidentais desfruta hoje de muito mais liberdade positiva do que um rei medieval. Esse crescimento não ocorreu porque um governo declarou ou garantiu legalmente que isso teria de ocorrer. Ele ocorreu porque os países ocidentais adotaram instituições básicas que funcionam; instituições que, ao longo do tempo, deram aos cidadãos os incentivos e os meios de promover a liberdade positiva por meio do comércio, atividades literárias, da ciência e das inovações culturais (Rosenberg e Birdzell 1986; North e Thomas 1976; Cameron e Neal 2003; Maddison 2007). Na prática, a promoção da liberdade positiva não ocorre às custas da liberdade negativa, como Berlin temia. Ao invés, promove-se a liberdade positiva ao se respeitar a liberdade negativa.
Será que desejamos que o governo garanta legalmente que todos os cidadãos desfrutem de liberdade positiva? Isso depende do que acontece quando o governo garante coisas por meios legais. Há uma diferença entre garantir no sentido de tornar algo inevitável (tal como um economista quando diz que a escassez será garantida se fixarmos o preço do leite em um centavo) versus garantir enquanto emitir uma declaração legal de que o governo pretende alcançar um resultado.
Obviamente, garantir algo no último sentido não é garantia alguma. (O estatuto “No Child Left Behind” garantia legalmente que nenhuma criança seria deixada para trás, mas ainda assim algumas crianças foram deixadas para trás). Se quisermos saber se o governo deve ou não fornecer garantias legais, precisamos saber o quão bem essas garantias funcionarão. Se dermos ao governo o poder de promover algum bem valioso, não há garantia de que o governo irá usar este poder competentemente (sendo assim bem-sucedido na promoção desse fim). Também não há garantias de que os agentes públicos irão fazer uso de seu poder para os fins pretendidos e não para um dado interesse privado. De acordo com os liberais neoclássicos, as garantias legais são instrumentos que devem ser avaliadas contextualmente, de acordo com a sua eficácia na promoção da justiça social. Um compromisso com um dado resultado substancial não automaticamente compromete alguém com quaisquer instrumentos legais.
Liberais neoclássicos alegam que os liberais clássicos não têm boas razões para rejeitar a liberdade positiva. A real oposição dos liberais era ao socialismo, e não à liberdade positiva. Hayek rejeitava o socialismo em parte porque acreditava que essa forma de governo tenderia à tirania. O argumento central de Hayek contra o socialismo é o de que o socialismo não tornaria as pessoas mais ricas, felizes, saudáveis e em melhores condições de viver segundo as suas próprias concepções de vida boa. Embora Hayek pensasse que é um equívoco confundir poder com liberdade positiva, o ponto central de sua obra é o seguinte: dada a falibilidade humana, se nos preocuparmos com a liberdade positiva, deveríamos preferir as instituições liberais clássicas a outras alternativas viáveis.
Liberais neoclássicos aceitam a liberdade positiva. Eles sustentam que é importante que os cidadãos estejam na posição de efetivamente usar e desfrutar de sua liberdade. Comparados aos liberais elevados, os liberais neoclássicos adotam uma postura cética a respeito da real capacidade dos estados de bem-estar social, das democracias sociais e especialmente do socialismo liberal de promover a liberdade positiva.9 Liberais neoclássicos argumentam que, historicamente, o melhor meio de promover a liberdade positiva tem sido a proteção da liberdade negativa. Eles tendem a argumentar que se os direitos políticos, civis e econômicos dos cidadãos forem protegidos, haverá progresso científico, cultural e econômico com o passar do tempo, o que irá beneficiar e promover a liberdade positiva de todos (Schmidtz e Brennan 2010, 30–207; Brennan e Schmidtz 2010). Proteger a liberdade negativa não torna tal progresso inevitável; porém nada é capaz de fazê-lo.
O igualitarismo material é a doutrina segundo a qual todos os membros da sociedade devem possuir aproximadamente a mesma renda ou riqueza. Liberais elevados têm reconhecido os perigos do igualitarismo material — especialmente o de que ele é suscetível à “objeção do nivelamento para baixo” ou o de que ele poderia conduzir à valorização da inveja, que um sentimento moralmente questionável.10 À luz desses temores, os liberais elevados tornaram-se céticos quanto ao igualitarismo, e a maior parte deles insiste que não é igualitarista per se. Entretanto, eles continuam a admitir serem atraídos pelo igualitarismo material, especificamente em razão de tenderem a considerar o igualitarismo material como o patamar moral a partir do qual quaisquer desvios devem ser justificados.
Liberais neoclássicos são claros quanto a sua rejeição igualitarismo material. Na perspectiva neoclássica, o igualitarismo material não é, por si próprio, atraente do ponto de vista moral. Imagine duas sociedades, A e B. Em ambas as sociedades, as liberdades civis, econômicos e políticas são completamente protegidas, todos se beneficiam da justa igualdade de oportunidades, todos têm o suficiente e todos possuem um nível alto de bem-estar. Entretanto, B é mais igualitária que A em sua distribuição de bens fundamentais. Muitos liberais elevados poderiam considerar que, em princípio, isso é uma razão para favorecer B em detrimento de A, mas os liberais neoclássicos não pensam assim (Schmidtz 2006a, 114–119; Schmidtz 2006b). Poderíamos dizer que os liberais neoclássicos acreditam que não há um resíduo moral em benefício do igualitarismo material: este não é (normalmente11) um patamar a partir do qual desvios devem ser justificados, nem é moralmente desejável mantendo-se todo o resto igual. Em vez disso, os liberais neoclássicos vêm o igualitarismo material como um tema secundário.
Um igualitarista material poderia dizer: “algumas pessoas são ricas e outras são pobres, portanto deveríamos tentar ser mais iguais”. O liberal neoclássico afirmaria: “o problema não é que algumas pessoas têm mais do que as outras, mas sim que há pessoas que não têm o suficiente. Os pobres do terceiro mundo morrem de fome, não de desigualdade.” Liberais neoclássicos não são igualitaristas materiais, ao invés disso eles são bem-estaristas, suficientaristas ou prioritaristas (Arnerson, 2012 e Anderson, 2012).
O bem-estarismo é a tese segundo a qual parte do que justifica as instituições sociais é a promoção do bem-estar da maioria das pessoas. Por exemplo, David Schmidtz argumenta que, prima facie, as instituições sociais são boas quando promovem o bem-estar da maioria dos membros da sociedade sem com isso explorarem os membros cujo bem-estar não se promove (Schmidtz 1995, 158–16612). (Os liberais neoclássicos acrescentariam que se é ou não verdade que ao nos comprometermos com o bem-estarismo nos comprometemos com o estado de bem-estar social depende em parte do grau em que um estado de bem-estar social é bem-sucedido em promover o bem-estar em relação às alternativas.
O suficientarismo é a tese segundo a qual todas as pessoas devem possuir o suficiente para viver de maneira minimamente decente. Liberais neoclássicos defendem instituições democráticas de mercado em parte porque acreditam que essas instituições tenderão a satisfazer esta condição de adequação material. O prioritarismo é a doutrina segundo a qual, ao propormos mudanças nas nossas instituições, somos, considerando todos os fatores, obrigados a dar mais consideração aos membros menos favorecidos do que aos mais favorecidos da sociedade.
O liberalismo neoclássico sustenta que o bem-estarismo, o suficientarismo e o prioritarismo capturam completamente a força moral do igualitarismo. Se os objetivos do bem-estarismo, do suficientarismo e do prioritarismo forem atingidos, então o igualitarismo não tem qualquer característica adicional que seja atrativa do ponto de vista da justiça social. Os liberais neoclássicos concordam que uma sociedade justa e equânime dá a cada um a sua parte nessa sociedade. Uma sociedade justa possui instituições que asseguram, tanto quanto possível, que todos possuam recursos necessários para serem livres. (Lembre-se que garantir um resultado significa encontrar instituições que produzam esse resultado, e não necessariamente emitir uma garantia legal desse resultado). Não obstante, o objetivo da sociedade é melhorar a condição de todos, e não tornar todos iguais. De acordo com esse ponto de vista, o igualitarismo material, na melhor das hipóteses, é importante apenas quando é libertador ou tende a tornar a vida das pessoas melhor.
Alguns (embora nem todos) liberais elevados e outros filósofos argumentam que a igualdade de recursos é necessária para garantir que todos tenham as mesmas oportunidades de exercer influência política (Rawls 2001, 139; Christiano 1996). Eles têm a preocupação de que recursos desiguais levarão os ricos a apoderar-se demasiadamente do poder político. Liberais elevados alegam que para garantir que todos os cidadãos desfrutem do justo valor das suas liberdades políticas, todos os cidadãos devem possuir aproximadamente os mesmos recursos. Chame isso de argumento da liberdade política em favor do igualitarismo material.
Gerald Gaus objeta que o argumento da liberdade política em favor do igualitarismo material pressupõe teses empíricas, teses estas que os liberais elevados não corroboraram com indícios empíricos. Além disso, tal como Gaus argumenta, os indícios empíricos existentes na verdade acabam dando razões contrárias ao argumento (Gaus 2010). Ao fazer uso de várias fontes de dados e classificações de desigualdade material, desigualdade política, abertura política e participação política, Gaus argumenta que não há correlação entre igualitarismo material e o baixo valor da liberdade política.13
Liberais elevados têm a esperança de prevenir a dominação quando dão ao corpo político poder para criar programas que tenham a finalidade de igualar a posse dos cidadãos. Mas essa solução expõe ela mesma os cidadãos aos perigos da dominação política.14 Os liberais neoclássicos compartilham a preocupação dos liberais elevados de que os cidadãos sejam protegidos da dominação política. Como matéria de desenho constitucional, liberais neoclássicos retiram muitos assuntos econômicos divisivos da pauta legislativa e assim tornam a compra do poder menos atrativa. Podemos dizer que essa perspectiva do liberalismo neoclássico é ex ante; enquanto a dos liberais superiores é ex post.15
Liberais clássicos e neoclássicos acreditam que muitos dos objetivos sociais são mais bem alcançados de modo indireto e especialmente por meio de ordens espontâneas (Schmidtz e Brennan 2010; Hayek 1960; Hayek 1973; Hayek 1976). Um mercado comercial é um paradigma de ordem espontânea. A produção dos bens comerciais mais usuais — um mero lápis — exige a mobilização de um sistema incrivelmente complexo de atores: silvicultores, mineradores, marinheiros, metalúrgicos, químicos, coladores, contadores e muitos mais. Literalmente “nenhuma pessoa na face desta terra” sabe como é feito um lápis a partir do zero, e ainda assim lápis são produzidos (Read 1958). O mercado mobiliza um exército de pessoas que produzem lápis, mas ninguém desempenha o papel de general. O sistema cooperativo que produz lápis é produto da ação humana, mas não do planejamento humano. A maioria das pessoas envolvidas na produção de lápis não têm a menor ideia de que estão aí envolvidas.
Há muito os liberais clássicos têm sido defensores entusiásticos do mercado em razão da sua capacidade produtiva. Recentemente, pensadores progressistas da esquerda têm expressado uma grande abertura à sociedade de mercado. Como Jeremy Waldron coloca: “ninguém hoje em dia imagina com seriedade uma economia tanto em nível nacional ou internacional em que a propriedade privada e mercados não têm papel fundamental” (Waldron 2011). Mesmo quando aceitam o papel dos mercados, entretanto, muitos liberais elevados continuam sendo “capitalistas relutantes” (Dworkin 1985, 196).
Alguns liberais elevados adotam uma postura cética quanto aos mercados não por pensarem que os mercados são meios ineficientes de alcançarem os fins desejados, mas porque pensam que os mercados são a maneira errada de alcançar tais fins. Liberais elevados afirmam que não basta a ocorrência de bons resultados. Tais resultados devem ocorrer intencionalmente, como uma expressão da nossa vontade enquanto grupo que partilha um objetivo. Mercados, tanto na perspectiva de seus defensores como na de seus oponentes, são paradigmaticamente ambientes onde nenhuma pessoa ou grupo de pessoas detêm o controle deliberado sobre os resultados. Por exemplo, F.A.Hayek afirma que os mercados são um tipo de ordenação humana que produz resultados, mas sem que qualquer ato de vontade humana seja direcionado à produção desses resultados. Dessa forma, Hayek diz que não é correto afirmar que os mercados servem a um fim ou propósito específico. (Hayek 1976, 14–15).
Liberais neoclássicos, entretanto, não precisam aceitar a afirmação feita por Hayek de que falta propósito aos mercados. Os seres humanos criam os mercados e, especialmente, criam as instituições de fundo que sustentam e tornam apto o bom funcionamento dos mercados. Por exemplo, as pessoas podem criar instituições (por meio da deliberação política) como o estado de direito, o livre acesso a tribunais e um sistema adequado de direitos de propriedade baseadas na expectativa de que o mercado irá alcançar a justiça social uma vez que essas instituições estejam operantes. Nesse caso, uma ordem deliberada cria e/ou sustenta uma ordem não-deliberada, espontânea e emergente com o propósito de se fazer justiça social. De fato, os liberais neoclássicos pensam que os mercados são um método moralmente superior de construção social. Para eles, as liberdades econômicas privadas são vistas como direitos liberais fundamentais, como precondições essenciais para o exercício e desenvolvimento dos poderes morais dos cidadãos liberais. Liberais neoclássicos, portanto, adotam o capitalismo não de maneira relutante, mas com entusiasmo moral.
A oposição à justiça social tem figurado há um bom tempo como uma premissa do liberalismo clássico e da tradição libertária (Hume 1983, 27-29). F.A. Hayek argumenta que “justiça” se aplica apenas àqueles resultados intencionais da vontade humana. Uma sociedade livre, entretanto, é uma ordem espontânea e não um artefato: as distribuições globais têm origem como um produto da ação humana, mas não do planejamento humano. Nozick rejeita a abordagem “redistributivista” da justiça por completo: “Há um distribuidor ou uma distribuição de títulos de propriedade tanto quanto há um distribuidor de parceiros numa sociedade em que as pessoas escolhem livremente com quem irão se casar”.
Ainda assim, encontramos alguns ingredientes de justiça social nas ideias de muitos liberais clássicos. A crítica de Adam Smith ao mercantilismo é fundada na preocupação com os trabalhadores pobres. Smith não mensura a riqueza das nações de acordo com o produto agregado destas, mas em termos das oportunidades substanciais de sucesso disponíveis a todos (Veja Smith 1983, 567; Smith 1982a, 83, 343; Smith 1982b, 91). Liberais clássicos recentes, como Richard Epstein e Milton Friedman, também concedem várias limitações à liberdade estritamente econômica como resposta à demandas sociais: o financiamento público destinado ao benefício de órfãos, sem-teto e desempregados são alguns dos exemplos. A captação de recursos suplementares destinados ao estabelecimento de educação universal de qualidade é mais um exemplo entre vários outros.
Até mesmo a atitude de Hayek perante a justiça social é ambígua. Hayek afirma que as diferenças entre a sua perspectiva e a de Rawls acerca da justiça são “mais de caráter verbal do que substancial” (Hayek 1976, xiii). Hayek diz existir “um problema genuíno de justiça que se conecta com o desenho das instituições políticas”.(Hayek 1976, 100). Ao mesmo tempo em que lamenta o fato de Rawls usar o termo “justiça social” para tal problema, Hayek declara não discordar fundamentalmente da ideia de Rawls segundo a qual a justiça poderia servir como um padrão (procedimentalmente independente) de avaliação das instituições mais fundamentais de uma sociedade (ibid).
O liberalismo neoclássico surge contra esse pano de fundo. Liberais neoclássicos procuram fornecer uma explicação filosoficamente rigorosa da plataforma liberal tradicional: liberdade econômica ampla para todos, governo limitado, um leque de serviços sociais básicos financiados por impostos e uma preocupação fundamental com o bem-estar material dos pobres. Liberais neoclássicos abraçam a justiça social, enxergando-a como um padrão que os permite clarificar e capturar os ideais morais que por muito tempo sustentaram o liberalismo clássico.
Ao mesmo tempo em que se comprometem com uma concepção espessa de liberdade econômica, os liberais neoclássicos endossam a justiça social (ou questões correlatas). Por exemplo, com base em muitas das premissas econômicas de Rawls, Jason Brennan sugere que as sociedades fundadas no mercado têm mais chances de alcançar a justiça social do que aqueles regimes preferidos por Rawls (tal como o socialismo liberal, especialmente em sua formulação avessa ao crescimento econômico). Para Brennan, entretanto, isso não é uma reductio ou um insulto. A preocupação de Brennan surge do problema de como melhor defender (e concretizar) os valores que compartilha com os liberais elevados. E assim, “liberais igualitários modernos frequentemente identificam de maneira correta os elementos de uma sociedade florescente: o fim ou minimização da dominação, da pobreza e das necessidades médicas, bem como expansão da educação, das oportunidades, da paz e autonomia política plena” (J. Brennan 2007, 288).
David Schmidtz está entre os mais destacados defensores contemporâneos do governo limitado e da ampla liberdade econômica. Schmidtz concorda com as ideias centrais da concepção de justiça de Rawls. Entre elas está a ideia segundo a qual as instituições sociais devem beneficiar a todas as classes de contribuintes, incluindo os menos favorecidos. Schmidtz afirma que o “ponto mais central e mais iluminantemente inegável de Rawls é o de que uma sociedade livre não é um jogo de soma zero.” Trata-se de uma “empreitada cooperativa mutuamente vantajosa” (Schmidtz 2006a, 196). Na visão de Schmidtz, uma das principais maneiras de decidir entre concepções de justiça rivais, assim como entre concepções rivais acerca da moralidade social de forma mais ampla, seria questionar como essas concepções facilitariam que as pessoas vivessem vidas boas em condições de paz, prosperidade e oportunidade. (Schmidtz 2006a, 9–12; Schmidtz 1995, 155-211). Schmidtz denomina a justiça como equidade como “uma visão de grandiosidade” e incita os leitores a focarem positivamente nos insights da abordagem de Rawls (Schmidtz 2006a, 195-6).16
O trabalho de Gerald Gaus se preocupa primariamente com o que é necessário para que instituições e princípios sejam publicamente justificados. Em virtude da existência de um desacordo razoável acerca do que é o bem-estar humano e sobre as metas que um governo deve adotar a fim de promover o bem-estar, Gaus rejeita o apelo direto ao bem-estar como justificação pública de princípios de justiça ou de instituições sociais (Gaus 1998). Ainda assim, Gaus assegura que para um conjunto de instituições, incluindo direitos de propriedades, seja publicamente justificado, faz-se necessário que todos aqueles indivíduos vinculados pelas normas tenham alguma participação nelas. Gaus argumenta que o direito à propriedade passa nesse teste (Gaus 2010). Simultaneamente, para Gaus, é essa preocupação pela justificação publica — e não a eficiência ou a benevolência — que justifica o mínimo social. (Gaus 2010, 237; Gaus 1999, 117–196)
John Tomasi (2012a) propõe uma visão híbrida do que denomina ‘democracia de mercado’. A democracia de mercado combina o compromisso liberal clássico com a liberdade econômica com o compromisso dos liberais elevados com a partição justa. Ao invés de fundamentar a liberdade econômica no princípio da eficiência, auto-propriedade, ou liberdade, a democracia de mercado defende uma liberdade econômica ampla como requisito da legitimidade democrática. Se for verdade que os cidadãos devem ser capazes de endossar as regras mais fundamentais que governam as suas vidas políticas, então certos direitos e liberdades que os permitam desenvolver os seus horizontes avaliativos devem ser protegidos. As liberdades econômicas espessas permitem que os cidadãos desenvolvam de modo mais completo os poderes morais que possuem enquanto autores de suas próprias vidas (Tomasi 2012b). O ideal de ser autor de sua própria vida também leva a democracia de mercado a defender uma concepção prioritarista de justiça distributiva. Diferentemente das tradições clássicas do liberalismo clássico, a democracia de mercado tem uma postura entusiasta acerca de teorias ideais. A democracia de mercado identifica um vasto conjunto de tipos idealizados de regimes baseados no mercado — notadamente o regime chamado ‘governo democraticamente limitado’ — que realiza a justiça social. A democracia de mercado desafia a afirmação liberal elevada acerca da superioridade evolutiva. Comparada às visões tradicionais dos liberais elevados, a democracia de mercado, argumenta Tomasi, oferece uma realização mais plena do compromisso liberal de tratar os cidadãos como agentes que se auto governam, livres e iguais. Liberalismo neoclássico é, portanto, a forma superior do liberalismo.
Muitos liberais elevados pensam que os filósofos políticos que estudam as instituições devem fazer uso do que Rawls chamava de ‘teoria ideal’17 (Rawls 2001, 135-40). A melhor maneira de caracterizar a teoria ideal é objeto de controvérsia (Swift e Stemplowska, 2012). Não obstante, de acordo com uma interpretação proeminente, a teoria ideal é aquela que se preocupa em indagar quais instituições melhor realizariam a justiça sob as seguintes quatro condições:
Tipicamente, os liberais clássicos têm receio em relação às teorias ideais. (E.g, Schmidtz 1995, 183). Eles defendem que dado que as três primeiras condições da teoria ideal não são realistas, a teoria ideal não fornece qualquer orientação moral. Não faz sentido perguntar o que a cozinha da Utopia irá servir no jantar.
Entretanto, muitos liberais elevados afirmam que a rejeição da teoria ideal pelos liberais clássicos é equivocada. Filósofos políticos se preocupam em identificar e caracterizar os regimes políticos justos. O objetivo da filosofia política é descrever como uma sociedade deve funcionar, e não como ela de fato funciona. Os filósofos, portanto, têm a permissão de imaginar sociedades nas quais ninguém é um carona ou leva vantagem das instituições sociais (Rawls 2001, 137). Elaborando a ideia de Rawls de “utopia realista”, David Estlund argumenta que o domínio apropriado do pensamento normativo acerca da política encontra-se entre o que Estlund chama “realismo complacente” e “utopismo moral” (Estlund 2008, 258-275). A perspectiva do realismo complacente concede mais do que deveria ao modo como as coisas de fato são; já a perspectiva do utopismo moral indaga por coisas que estão fora do domínio do que é possível. Mesmo se as condições da teoria ideal forem inatingíveis devido às limitações morais e cognitivas dos seres humanos, isso não faz com que as instituições selecionadas ao nível ideal de teorização sejam intrinsecamente menos desejáveis. Como G.A Cohen afirmou, uvas não se tornam menos deliciosas porque estão fora do alcance. (Cohen 1995, 256).
Os liberais neoclássicos indagam: e se aplicarmos esse mesmo modelo às formas institucionais clássicas liberais? Muitas das preocupações a respeito do capitalismo desapareceriam sob circunstâncias ideais, assim como as preocupações relativas à democracia desaparecem sob circunstâncias ideais. Afinal de contas, os liberais neoclássicos elegem a justiça social como padrão último de avaliação de instituições sociais. Os liberais neoclássicos, portanto, defendem arranjos institucionais capitalistas como exigências da justiça social. Se os liberais neoclássicos buscam a satisfação da justiça social ao entusiasticamente defenderem as formas institucionais capitalistas e se essas formas capitalistas são capazes de satisfazer os mesmos padrões teórico-ideais de viabilidade que os liberais elevados empregam quando avaliam as suas formas institucionais preferidas, então as entusiásticas instituições capitalistas dos liberais neoclássicos satisfazem os requerimentos teorético-ideais da justiça social.18 Tais instituições capitalistas, portanto, devem ser reconhecidas como socialmente justas ou — como alguns liberais neoclássicos argumentam — como mais socialmente justas do que as instituições favorecidas pelos liberais elevados tradicionais.
Note que a postulação da justiça social pelos liberais neoclássicos, especialmente quando combinadas com a aceitação das formas teóricas ideais de análise institucional, perturba os tradicionais argumentos dos liberais elevados contra o capitalismo laissez-faire ou o “sistema de liberdade natural”. Por exemplo, um argumento comum contra o regime capitalista é que os regimes capitalistas permitem o surgimento de desigualdades injustas na ausência das inúmeras garantias institucionais dos regimes liberais de esquerda. Rawls, por exemplo, pensa que o capitalismo laissez-faire é injusto em razão de este “proteger apenas a igualdade formal” e “visar a eficiência econômica e o crescimento, sendo restrito apenas por um mínimo social bastante baixo” (Rawls 2001, 137).
Qualquer que tenha sido a força dessa objeção contra as tradicionais defesas do liberalismo, ela se torna ambígua quando direcionada ao liberalismo neoclássico. Liberais neoclássicos, afinal de contas, podem igualmente aceitar muitas das ambições morais defendidas pelos liberais elevados. Portanto, moralmente falando, os liberais neoclássicos “permitem” apenas aquelas distribuições que satisfazem algum padrão produzido externamente, tal como os liberais elevados. Obviamente que, no que diz respeito às questões empíricas e práticas, qualquer regime pode falhar em fomentar as condições sociais que têm o propósito de fomentar (e a presença ou ausência de “garantias” institucionais formais não altera esse efeito prático) (Schmidtz 1997). De fato, neste aspecto prático, alguns liberais neoclássicos argumentam que os regimes liberais elevados, tal como o socialismo de mercado, historicamente “permitiu” maiores injustiças — mais notadamente com respeito às liberdades civis favorecidas por todos os liberais — do que os regimes mais entusiasticamente capitalistas (Gaus 2010, 251–258, 274–275). Porém, o ponto mais importante é o moral. Se a democracia de proprietários e o socialismo liberal constituem “utopias realistas” então também o são as formas de laissez-faire defendidas por liberais neoclássicos. Na verdade,se comparadas aos regimes defendidos pelos liberais elevados, as instituições entusiasticamente capitalistas defendidas pelos liberais neoclássicos são simultaneamente mais utópicas e mais realistas.
Há algumas décadas, os acadêmicos liberais elevados poderiam cumprir o seu dever de dar aos alunos a chance de refletir acerca de alternativas teóricas pró-mercado ao incluírem uma unidade sobre Nozick nas suas ementas. Afinal, o libertarismo era amplamente aceito como a vanguarda da exposição do liberalismo pró-mercado. O surgimento do liberalismo neoclássico mudou esse estado de coisas. Diferentemente do libertarismo tradicional, liberais neoclássicos não montaram acampamento do outro lado do rio conceitual em que os liberais elevados só podem se aproximar ao abandonarem as suas instituições sociais preferidas. Ao invés disso, os próprios liberais neoclássicos cruzaram o rio. Eles buscam engajar-se com os liberais elevados em debates fundacionais com base em premissas moralmente compartilhadas.
As apostas são altas. É o liberalismo a doutrina do poder limitado do governo e da ampla liberdade econômica individual, ou uma doutrina que convida o expansivo envolvimento do governo na vida cotidiana dos cidadãos, notadamente em assuntos econômicos? Para decidir essa disputa, liberais neoclássicos não pedem aos liberais elevados que abandonem as suas próprias premissas e convertam-se àquelas de seus rivais políticos. Pelo contrário: os liberais neoclássicos convidam os liberais elevados a se juntarem a eles para um exame mais profundo do significado e da natureza das premissas que ambos compartilham.
Como vimos, há três questões filosóficas relevantes que podem serem clarificadas por meio da discussão entre liberais neoclássicos e liberais elevados. Primeiro, liberais elevados tendem a acreditar que a igualdade material e social são importantes por si próprias, ao passo que os liberais neoclássicos são mais propensos a acreditar que a igualdade é uma distração para os fins genuínos da justiça social. Segundo, muitos liberais elevados consideram as liberdades políticas como especialmente importantes e, portanto, acreditam que é um imperativo moral ter uma democracia participativa forte com um amplo escopo de poder. Alguns liberais neoclássicos veem essa posição como uma contaminação proveniente de Rousseau (ou como o que Benjamin Constant chamava de “a liberdade dos antigos”) ao invés de uma parte genuína da teoria liberal (Brennan 2007, 288-9). Terceiro, liberais neoclássicos defendem que as liberdades econômicas têm o mesmo peso e escopo das liberdades civis, enquanto liberais superiores defendem uma plataforma de excepcionalismo econômico. O que ocasiona essas tendências divergentes em cada um desses casos? Qual compromisso moral profundo (subterrâneo) leva os liberais elevados a responderem para uma dada direção e liberais neoclássicos para outra? Qual maneira de decidir essa disputa pode melhor satisfazer os compromissos comuns entre os liberais de respeitar os cidadãos enquanto agentes livres, iguais e autônomos? Essas são as questões que os liberais neoclássicos têm colocado na agenda filosófica.
Jason Brennan e John Tomasi