Em 1799, o primeiro presidente dos EUA, George Washington, adoeceu do que hoje se pensa ter sido uma infecção na epiglote de sua garganta, que se trata de uma infecção rara, porém séria, que pode levar ao bloqueio da passagem de ar e eventualmente à asfixia.1 Seu amigo e médico pessoal o atendeu, juntamente com dois médicos de consulta. Experimentaram remédios e cataplasmas, juntamente com cinco episódios separados de sangria que, somados, removeram mais de metade do sangue de Washington. Segundo uma fonte contemporânea, “os remédios adequados foram administrados, mas não produziram os efeitos de cura”.2 O ex-presidente morreu pouco depois. Desnecessário dizer, o tratamento ou não teve efeito ou na verdade acelerou a sua morte.
Os médicos de Washington eram profissionais respeitados e aplicaram os procedimentos médicos canónicos. Por que foram incapazes de ajudá-lo? Em termos simples, não puderam ajudá-lo porque não tinham ideia do que estavam fazendo. O corpo humano é um mecanismo extremamente complexo. Curá-lo exige geralmente uma compreensão detalhada e precisa desse mecanismo e da natureza da doença que o aflige — conhecimento que ninguém tinha naquela época. Sem essa compreensão, quase toda a intervenção significativa no corpo será prejudicial.
Os eleitores, ativistas e líderes políticos da atualidade estão na mesma situação em que se encontravam os médicos medievais. Sustentam teorias simples e pré-científicas sobre o funcionamento da sociedade e sobre as causas dos problemas sociais, das quais derivam vários remédios — e quase todos se revelam ineficazes ou prejudiciais. A sociedade é um mecanismo complexo cuja reparação, se for sequer possível, exigiria um tipo de compreensão precisa e detalhada que ninguém tem hoje. Por mais insatisfatório que possa parecer, o caminho mais sábio para os agentes políticos é, com frequência, simplesmente parar de tentar resolver os problemas da sociedade.
O meu objetivo no que se segue é explicar e defender esse ponto de vista. Nas seções seguintes, discuto a dimensão da nossa ignorância política, as razões para essa ignorância e as recomendações práticas que fluem de um reconhecimento de uma profunda e difusa ignorância humana acerca de questões sociais.
Vários observadores descobriram que os cidadãos das democracias modernas ignoram lamentavelmente a situação política das suas próprias sociedades. Nos Estados Unidos, onde há abundância de dados disponíveis, a maioria dos cidadãos não consegue sequer dizer o nome do seu congressista, quanto mais descrever seu histórico de votação. Muitos ignoram fatos institucionais básicos, como a duração do mandato dos legisladores.3 Michael Delli Carpini e Scott Keeter dão uma ideia do conhecimento político do público nos EUA:
O fato mais comumente conhecido sobre as opiniões de George [H. W.] Bush quando era presidente era que detestava brócolis. Durante a campanha presidencial de 1992, 89 % do público sabia que o vice-presidente Quayle detestava o personagem televisivo Murphy Brown, mas apenas 19 % conseguiria caracterizar a posição de Bill Clinton sobre o meio ambiente. Também durante essa campanha, 86 % do público sabia que o cachorro dos Bush se chamava Millie, mas apenas 15 % sabia que ambos os candidatos à presidência eram favoráveis à pena de morte. O juiz Warpner (anfitrião da série televisiva “The People’s Court”) foi identificado por mais pessoas do que os ministros de justiça Burger ou Rehnquist.4
Dados internacionais indicam que o conhecimento político dos americanos só está moderadamente abaixo da média mundial.5
Os eleitores têm frequentemente percepções equivocadas e absurdas de políticas atuais e recentes. Em uma pesquisa, foi pedido que americanos escolhessem dois dos maiores itens do orçamento federal da seguinte lista: previdência social, programas sociais, programas de saúde, juros da dívida, exército e ajuda estrangeira. A ajuda estrangeira (de longe a menor das categorias listadas) foi o item mais comumente escolhido.6 Em média, os americanos estimam que os gastos com ajuda estrangeira constituem um quarto do orçamento federal; o número correto é menos de um por cento.7
Nos EUA, era comum ouvir exaltações ou críticas direcionadas aos cortes drásticos que o presidente Reagan fez nos programas sociais nos anos 80. Esta medida estava entre as políticas mais famosas de Reagan — apesar do fato de as estatísticas publicamente disponíveis mostrarem que os gastos federais com os programas sociais aumentaram 40 % durante os anos de Reagan.8 De modo semelhante, a administração de George W. Bush tem sido comumente ridicularizada devido à sua suposta desregulação drástica, apesar de grandes aumentos nos gastos totais, em regulamentações, com funcionários dos organismos reguladores, e de todo o volume de regulamentações durante os anos de Bush.9
Felizmente, em algumas áreas da teoria social é possível achar entre os especialistas um consenso claro e relevante quanto a políticas públicas. Infelizmente, esse consenso é a mais das vezes vigorosamente desafiado tanto por líderes políticos quanto pelo público em geral. Mencionarei aqui dois exemplos. O primeiro é o protecionismo. Esta é uma política pela qual os governos tentam proteger as indústrias nacionais ao criar barreiras para a importação, normalmente na forma de tarifas aduaneiras ou de cotas de importação. Medidas destas são frequentemente populares entre os líderes políticos e entre o público em geral — e não apenas entre os membros das indústrias protegidas, mas até mesmo entre os consumidores que são prejudicados pelas barreiras à importação. Não podemos discutir os argumentos acerca do livre comércio e do protecionismo aqui; recorrerei apenas ao apelo à autoridade. A vasta maioria dos economistas — pessoas cuja profissão é estudar esses tipos de coisas — se opõe ao protecionismo e acredita que prejudica a economia doméstica.10 Como diz Paul Krugman, economista vencedor do prêmio Nobel e colunista do The New York Times: “se houvesse um Credo do Economista, certamente conteria as afirmações “entendo o princípio da vantagem comparativa” e “advogo o livre comércio””.11
Na minha experiência, observações desse tipo são ridicularizadas por ideólogos contrários ao livre comércio extremamente confiantes, que, sem qualquer senso de ironia, rotulam quem apoia o livre comércio de “fundamentalista do mercado”, atribuindo essencialmente o consenso dos especialistas a uma ideologia de direita na qual os economistas são induzidos.12 Isso torna difícil entender por que até mesmo economistas de esquerda como Paul Krugman, famoso por advogar a gestão governamental da economia,13 fazem parte do consenso. Quando os especialistas de lados opostos do espectro político convergem para uma dada posição, contradizendo a opinião convencional, quem tem mais probabilidades de ser vítima de tendenciosismos cognitivos: a comunidade de especialistas ou as massas deseducadas?
Um segundo exemplo é oferecido pela questão do terrorismo, que se agigantou muito no discurso político americano nos últimos anos. Uma simples questão factual é particularmente interessante: quais são os motivos da maioria dos terroristas? Especialistas cuja carreira é centrada no estudo do terrorismo concordam geralmente que o terrorismo funciona como retaliação por políticas governamentais específicas, especialmente em resposta a ocupações militares estrangeiras em terras que os terroristas valorizam.14 Assim, na sua fátua contra os Estados Unidos, Osama bin Laden escreve:
O povo do Islã acordou e percebeu que é o principal alvo da agressão da aliança dos Cruzados-Sionistas. [...] A última e maior dessas agressões [...] é a ocupação da terra dos dois Lugares Sagrados [Arábia Saudita] [...] pelo exército dos Cruzados americanos e seus aliados.15
Os líderes políticos dos países sujeitos a ataques terroristas, no entanto, normalmente atribuem a culpa dos ataques a um choque irreconciliável de valores, à virtude moral do seu próprio país e ao puro mal dos terroristas. Assim, pouco depois dos trágicos ataques terroristas de 11/09/2001, o presidente americano George W. Bush explicou o evento da seguinte maneira:
Eles odeiam as nossas liberdades: a nossa liberdade religiosa, a nossa liberdade de expressão, as nossas liberdades de voto e de nos associarmos entre nós e de discordarmos. [...] Esses terroristas matam não apenas para acabar com vidas, mas para romper e acabar com um modo de vida. [...] Esta é uma luta civilizacional. Esta é uma luta de todos os que acreditam no progresso e no pluralismo, na tolerância e na liberdade.16
O presidente americano seguinte, Barack Obama, atribuiria os ataques à escassez de emoções e valores:
Nem pretendo entender o resoluto niilismo que levou os terroristas naquele dia e que ainda guia os seus semelhantes. Meus poderes de empatia [...] não conseguem penetrar os olhares vazios daqueles que matariam inocentes com uma satisfação abstrata e serena.17
Assim, a explicação preferida da razão pela qual o seu próprio país seria atacado é que o inimigo ou não tem valores ou tem valores fundamentalmente maus. A natureza conveniente dessas explicações é tão evidente quanto são infelizes as implicações dessa atitude em relação às expectativas de resolver pacificamente os conflitos internacionais.
Os casos do protecionismo e do terrorismo são apenas duas ilustrações de um problema geral. Até mesmo quando os especialistas sabem a resposta para uma questão política, esse conhecimento não ajudará a sociedade se — como tantas vezes ocorre — as pessoas leigas e os líderes políticos teimam em ignorar o que os especialistas sabem.
À luz da ignorância de líderes políticos típicos e de membros do público geral, podemos nos sentir tentados pela ideia de governo dos especialistas, como na República de Platão.18 Infelizmente, quando o assunto é a teoria social descritiva, nem mesmo o conhecimento dos especialistas chega a ser impressionante, como foi recentemente demonstrado pelo psicólogo social Philip Tetlock. Tetlock conduziu um estudo de quinze anos de duração em que coletava dezenas de milhares de previsões de centenas de especialistas políticos acerca de assuntos relativos às suas áreas de especialização (por exemplo, se a economia entraria em recessão, se a União Soviética sobreviveria, quem venceria a próxima eleição presidencial e assim por diante). Grosso modo, Tetlock descobriu que os melhores especialistas tiveram uma performance apenas ligeiramente maior que o acaso na previsão de resultados. Quando requisitados a atribuir probabilidades às suas previsões, os especialistas se mostraram exageradamente confiantes de modo sistemático; por exemplo, eventos previstos com 100 % de segurança aconteciam menos de 80 % das vezes.19
A tarefa em que os especialistas se saíram bem foi a racionalização das suas falhas. Tetlock apresenta algumas defesas de sistemas de crença comumente oferecidas pelos especialistas para separar as suas crenças centrais da desconfirmação das previsões fracassadas. Os especialistas alegaram frequentemente que as suas crenças subjacentes não haviam sido desconfirmadas porque as suas previsões quase se revelaram verdadeiras; porque a previsão teria falhado por puro azar; porque estariam apenas fora de tempo (o evento previsto ainda ocorreria no futuro); porque uma política não produziu os efeitos antecipados devido a ter sido mal executada, e assim por diante. Tetlock observou que nunca alguém tentou explicar as suas previsões bem-sucedidas de maneiras análogas. Ninguém disse que uma previsão bem-sucedida não sustentou as suas crenças subjacentes porque a previsão quase falhou, porque se revelou verdadeira por pura sorte ou porque uma política produziu os efeitos esperados devido apenas a uma má execução.
Tetlock só pôde estudar a precisão de certos tipos de previsões — aquelas que seriam definitivamente determinadas num período de tempo fixo. Por exemplo, é possível testar de modo objetivo a confiabilidade dos especialistas em previsões sobre o resultado das próximas eleições. Há várias outras crenças que não poderiam ser testadas. Não podemos testar previsões com períodos de tempo indefinidos ou extremamente longos, como “o mundo um dia ficará sem petróleo” ou “a União Europeia irá entrar em colapso dentro de 200 anos”. Não podemos testar previsões vagas ou subjetivas, como “o próximo presidente será pior que o atual”. Não podemos testar afirmações que fazem referência a eventos inobserváveis, como na afirmação de que “o estímulo econômico fará a recessão ser mais longa do que seria sem ele”. E é difícil determinar várias outras afirmações por diversos motivos, como a afirmação de que “a Segunda Guerra Mundial foi causada principalmente pelo ressentimento com o Tratado de Versalhes” ou a afirmação de que “uma sociedade anarco-sindicalista seria superior a qualquer sociedade governamental”.
Será que os especialistas têm crenças altamente confiáveis acerca desses assuntos não-testáveis? Não há razão para pensá-lo. Tipicamente, se uma pessoa mostra que não é confiável sempre que as suas afirmações são testadas, é razoável presumir que também não é confiável quanto às afirmações que não foram testadas. No mínimo, parece mais difícil acertar nas afirmações não-testáveis, devido a muitos elementos subjetivos e à dificuldade de aprender a ajustar o próprio juízo com o passar do tempo. Portanto, os especialistas provavelmente são ainda menos confiáveis quando se trata de assuntos que não podem ser testados.
O último tipo de conhecimento de que precisamos para tomar decisões políticas está ao alcance dos filósofos, nomeadamente, o conhecimento valorativo. Este tipo de conhecimento também é difícil de testar; de fato, talvez seja impossível, em princípio, testá-lo. (Obviamente, não me refiro a testar se alguma política produz resultados desejados, mas antes testar se um dado resultado conta como bom, justo ou algo do tipo.) Quão confiáveis somos acerca de tais questões?
Não há uma teoria geralmente aceita — seja entre pessoas comuns ou entre especialistas — para qualquer uma das categorias valorativas centrais das filosofias moral ou política. Não há qualquer teoria geralmente aceita sobre o bom, o correto, a justiça, a autoridade, os direitos humanos, a igualdade ou a liberdade. Assim, apesar de os filósofos concordarem geralmente que há algum sentido em que a igualdade é um valor político importante, não conseguem concordar acerca do que isso quer dizer. Significaria tal coisa que um sistema social deve esforçar-se para igualar riqueza e oportunidades? Ou significaria apenas que um sistema social deveria dar igual consideração aos interesses de cada pessoa? Ou que deveria reconhecer os mesmos direitos a todos? Do mesmo modo, apesar de todos concordarem que a sociedade deve procurar a justiça, não conseguimos concordar acerca de questões básicas, tais como se a justiça exige ou não a retribuição por um mal feito por alguém e se exige ou não dar prioridade aos membros com menos vantagens na sociedade. A maioria dos filósofos subscreve a noção de direitos humanos, enquanto a teoria moral mais sistemática e proeminente, o utilitarismo, rejeita essa ideia. Entre quem acredita em direitos, há discordâncias fundamentais acerca de quais são os direitos que existem e quem os tem. A simples prevalência de discordância na filosofia política prova que os seres humanos — até mesmo os especialistas mais educados, inteligentes e epistemicamente bem posicionados — são muito pouco confiáveis em relação à filosofia política.
Podemos nos sentir tentados a argumentar que, enquanto outras pessoas não são confiáveis acerca de questões valorativas, nós próprios temos os valores corretos. Podemos fortalecer essa ideia com argumentos filosóficos — exatamente os tipos de argumentos que os filósofos apresentam em livros e artigos nas revistas de ética e de filosofia política. Obviamente, não posso refutar esse tipo de afirmação, pois fazê-lo exigiria uma série de artigos filosóficos refutando quase todos os argumentos na bibliografia sobre ética e filosofia política. Ainda assim, gostaria de sugerir que devemos desconfiar muito de qualquer tentativa de nos tratarmos a nós mesmos como especiais com base apenas nos tipos de argumentos que normalmente aparecem na bibliografia filosófica e que convencem apenas uma minoria de especialistas. Alguém pode dizer, por exemplo, que as suas próprias perspectivas políticas são mais confiáveis do que o normal porque seriam subscritas pelas partes deliberando sob um “véu de ignorância” (para invocar uma metodologia rawlsiana).20 Isso seria apelar a uma forma de argumento que apenas alguns especialistas acham convincente, e outros especialistas poderiam apelar a outras formas de argumento que levam a conclusões divergentes. Se não temos qualquer razão independente para esperar que o nosso próprio juízo filosófico seja superior ao dos especialistas (por exemplo, se não somos claramente mais inteligentes, mais bem informados ou mais racionais que os outros), então devemos presumir que nós próprios estamos sujeitos aos mesmos fatores, sejam eles quais forem, que tornam os outros pouco confiáveis na área da filosofia política.
Não nego que tenhamos algum conhecimento político importante. Penso que sabemos que a escravidão é injusta, que a democracia é superior à ditadura, que a tortura é quase sempre errada e que os mercados livres funcionam melhor do que o planejamento socialista. Cada uma dessas coisas é um pedaço extremamente importante de conhecimento; saber cada uma dessas coisas fez os seres humanos ficar em situação muito melhor hoje em dia do que estavam. O ponto é apenas que o nosso conhecimento político é bastante limitado. Há uma grande diversidade de coisas que não sabemos, mas as pessoas agem frequentemente como se soubessem. As pessoas defendem frequentemente uma política de modo agressivo ao mesmo tempo em que não têm conhecimento da bibliografia sobre o assunto. Prevemos frequentemente e com muita confiança o futuro, ou votamos na base das nossas previsões, em áreas em que o futuro é na verdade imprevisível. Defendemos posições ideológicas com afirmações valorativas vagas e controversas. Os especialistas, os líderes políticos e os leigos sabem algo sobre política, mas nem de longe o que pensam saber.
Como podemos reconhecer o conhecimento político genuíno? Não posso oferecer uma resposta precisa ou completa a essa pergunta. Ainda assim, podemos identificar algumas tendências gerais. O conhecimento político genuíno tende a ser:
Considere agora a afirmação de que a democracia é melhor que a ditadura. Tal afirmação se sai razoavelmente bem com respeito à lista anterior. Praticamente todos os especialistas em teoria política a aceitam. É sustentada por uma boa quantidade de experiência tanto com democracias como com ditaduras.21 E há poucas ou nenhumas provas contrárias. Admitidamente, a afirmação se sai um pouco mal em relação a alguns itens: trata-se de uma afirmação razoavelmente ideológica, forte e geral. Como este caso ilustra, o conhecimento genuíno nem sempre exibe todas as características especificas; mesmo assim, há uma certa tendência para encontrar cada uma dessas características em um caso genuíno de conhecimento.
Na maior parte do tempo, as pessoas são instrumentalmente racionais. Ou seja, fazem apenas aquelas escolhas para as quais os benefícios excedem os custos (segundo os seus próprios valores e estimativas probabilísticas). Portanto, é de esperar que as pessoas estejam politicamente bem informadas somente se os benefícios do conhecimento político superarem os custos.
Os benefícios do conhecimento político são duvidosos. Para a esmagadora maioria dos indivíduos, o conhecimento político não faz qualquer diferença prática na condução de suas vidas, dado que a probabilidade de causarem alguma mudança nas políticas públicas é aproximadamente zero. Só quem atribui valor intrínseco ao conhecimento pode esperar alguma recompensa ao procurar conhecimento político.
Os custos do conhecimento político, entretanto, podem ser gigantescos, a começar pelos custos de gastar tempo e esforço. É preciso pesquisar sobre os agentes do governo, ler sobre os seus históricos de votação, sobre os projetos de lei em que votaram e ler fatos e argumentos de fundo sobre diversas questões políticas individuais. Na maioria dos casos, ficar informado sobre questões individuais requer a leitura difícil e entediante de bibliografia acadêmica. Se alguém gastasse cada momento acordado em pesquisas dessas, poderia então ficar bem informado sobre a maioria das questões importantes.
Há um segundo custo menos tangível. A aquisição dos itens mais importantes do conhecimento político — como saber se as leis do controle de armas são boas, se a pena de morte é justa ou se o estímulo fiscal ajuda a economia — exige que se cultive cuidadosamente hábitos de racionalidade epistêmica. Devemos trabalhar para identificar e superar os nossos próprios tendenciosismos. Devemos procurar informação e argumentos contrários às opiniões que já temos e esforçar-nos para ouvir esses argumentos de espírito aberto. A racionalidade exige frequentemente que admitamos que as nossas próprias opiniões anteriores estavam erradas ou que simplesmente não sabemos as respostas de perguntas importantes. Quem estiver comprometido com a racionalidade terá os seus desejos frequentemente frustrados, visto que não se pode simplesmente acreditar naquilo que se quer acreditar.
Tudo isto leva ao seguinte raciocínio básico:
Naturalmente, isso simplifica bastante o assunto. Às vezes as pessoas são instrumentalmente irracionais; algumas pessoas podem atribuir valor intrínseco elevado ao conhecimento político; e poucos (como os políticos importantes e os ricos que financiam as campanhas eleitorais) têm probabilidades reais de alterar políticas públicas. Apesar dessas exceções, penso que o raciocínio anterior ilumina os baixos níveis de conhecimento político que encontramos no público.22
E que dizer dos líderes políticos e financiadores de campanhas eleitorais que, como sugeri, realmente podem influenciar a política pública? Têm eles fortes incentivos para adquirir conhecimento político? Sim e não. Têm fortes incentivos para descobrir quais são as políticas que é do seu interesse promover. Um político pode ter bons motivos para descobrir quais são as posições mais populares entre o seu eleitorado e entre os financiadores das campanhas eleitorais. Mas isso é muito diferente de descobrir quais são as políticas realmente melhores. Suponha-se, por exemplo, que as restrições à imigração são injustas e prejudicam a economia nacional, mas que essa é uma medida apoiada pela maioria dos eleitores.23 Um político que se esforça para repelir as restrições à imigração pode, se for bem-sucedido, esperar um ligeiro aumento na prosperidade do seu país, bem como um mundo mais justo — mas talvez pague o preço de perder o emprego. Votar para repelir as restrições à imigração tem pouquíssimas hipóteses de compensar em termos de interesse próprio. Ciente disso, um político tem pouco incentivo para descobrir se as restrições à imigração são afinal injustas ou prejudiciais.
Quem tem opiniões políticas fortes, incluindo eleitores, ativistas, intelectuais, comentaristas e líderes políticos, tipicamente vêem-se a si mesmos como pessoas que trabalham por uma causa admirável — justiça social, o bem-estar da sociedade, virtude moral e assim por diante. Isso aplica-se a todas as pessoas de todo espectro do mundo político, sejam conservadores ou progressistas, socialistas ou anarquistas. Suspeito, contudo, que se trate de uma ilusão conveniente. Pouquíssimas pessoas se importam tanto com a justiça social, com o bem da sociedade e outras coisas dessas. Quase todo mundo se importa um pouco com essas coisas, e algumas pessoas se preocupam consideravelmente com elas. Mas a maioria dos que consideram que os seus motivos mais profundos são ideais superiores não têm tais motivos.
Essa afirmação pode parecer surpreendente. Como poderíamos explicar a existência de pessoas que dedicam as suas vidas a servir o público? Ou a existência dos ativistas que gastam grande parte do seu tempo enviando mensagens de promoção de uma causa, organizando protestos e assim por diante? Sugiro que a motivação desses indivíduos não é primordialmente um ideal nobre, mas antes por uma vontade de se verem a si mesmos como se estivessem trabalhando por um ideal nobre — a motivação não é, por exemplo, um desejo de justiça, mas antes o desejo de se verem a si próprios como pessoas que promovem a justiça. Esses dois desejos potenciais estão intimamente relacionados, e à primeira vista alguém pode pensar que são praticamente indistinguíveis: se quero ver-me a mim mesmo como alguém que trabalha pela justiça, o que tenho a fazer é trabalhar pela justiça; mas isso é exatamente o mesmo que farei se eu quiser simplesmente a justiça .
Mas há pelo menos uma maneira de distinguir o desejo de X que uma pessoa tem do desejo de se ver a si mesma como alguém que promove X, que é olhar para os seus esforços para descobrir o que promove X. A ideia básica aqui é que para satisfazer o desejo de se ver a si mesmo como alguém que promove X basta fazer algo que a pessoa acredita que promoverá X, ao passo que o desejo por X só será satisfeito se X for promovido com sucesso. Assim, só a pessoa que procura o próprio X precisa de crenças rigorosas sobre o que promove X; quem deseja meramente a sensação de promover X precisa de crenças fortes (pois assim terá uma forte sensação de estar promovendo X), mas não necessariamente verdadeiras sobre o tema.
Assim, supondo que as pessoas forem instrumentalmente racionais, podemos fazer a seguinte previsão teórica. Se as pessoas estão buscando ideais nobres como a justiça ou o bem da sociedade, então trabalharão arduamente na investigação do que de fato promove esses ideais e procurarão informações que corrijam quaisquer erros nas suas suposições sobre o que promove os seus ideais, dado que as crenças equivocadas nesses assuntos poderiam levar todos seus esforços a serem desperdiçados. Se, por outro lado, as pessoas procuram a mera sensação de promover ideais nobres, então terão pouco cuidado na adoção de crenças sobre o que promove seus ideais e evitarão colher informações que possam enfraquecê-las. Adotarão hábitos que as conduzirão à posse de crenças fortes e muito difíceis de reverter.
Qual destas hipóteses corresponde melhor às nossas observações? Me parece que a maioria das pessoas que fazem um grande esforço para promover causas políticas faz muito pouco esforço na tentativa de se certificar que as suas crenças são corretas. Tendem a manter crenças muito fortes que têm muita relutância em reconsiderar. Quando lhes apresentamos novas informações que entram em conflito com as suas crenças existentes, é muito mais provável que reajam com raiva, como se estivesse a ser atacado, do que com gratidão. Estas são impressões admitidamente casuísticas. Mas acredito sinceramente que a minha experiência aqui é tão comum que poucas pessoas disputariam estas observações. Assim, as provas sugerem que a motivação das pessoas politicamente comprometidas é sobretudo o desejo de sentir que estão promovendo ideais políticos e não tanto o desejo dos próprios ideais.
Há outra razão pela qual os seres humanos são terríveis na solução de questões políticas: é que é muito mais difícil compreendê-las do que parece. Isso é verdadeiro em quase todos os campos de investigação, embora alguns (não incluindo política) tenham desenvolvido normas que permitem raciocinar de modo confiável.
Seja-me permitido oferecer alguns exemplos. Da Grécia Antiga até à Idade Média, a perspectiva aceita na ciência (ou naquilo que à época passava por ciência) era que o mundo físico era composto por quatro elementos: terra, ar, fogo e água. A teoria médica aceita era que as doenças eram causadas pelo desequilíbrio entre os quatro fluidos corporais, nomeadamente, a bile negra, a bile amarela, o sangue e a fleuma. Por exemplo, a febre seria causada pelo excesso de sangue, que, consequentemente, precisaria ser tratada sangrando o paciente. As teorias cosmológicas antiga e medieval localizavam a Terra no centro, com o Sol e os planetas a orbitando. As estrelas fixas eram pontos de luz numa ampla concha esférica englobando o Sol, a Terra e os planetas.
Hoje sabemos que todas essas teorias estão completamente erradas, não chegando nem sequer perto da verdade. Ainda assim, todas foram amplamente aceitas pelos especialistas durante séculos. Esses são apenas alguns exemplos; um estudioso da história das ideias encontrará muitos outros. Durante a história da humanidade, a esmagadora maioria das teorias que criámos para explicar o mundo revelaram-se mais tarde falsas.24
Isto pode parecer intrigante à primeira vista. Não é surpreendente que às vezes estejamos errados; não podemos esperar a infalibilidade. Mas a menos que estejamos ativamente tentando chegar a falsidades, como é possível ser capaz de evitar alcançar a verdade tão sistematicamente?
Há uma explicação filosófica básica que começa com o fato de o número de teorias possíveis sobre qualquer dado fenômeno ser enorme, senão infinito. Entre elas, todas são falsas menos uma. Assim, dada apenas a informação de que T é uma teoria, a probabilidade de T ser correta é aproximadamente zero. Apesar disso, é frequente que os pensadores ingênuos não se dêem conta disto porque é normalmente reduzido o número de teorias em que um ser humano típico consegue pensar para explicar um dado fenômeno (e que lhe parecerão plausíveis). Não se trata de consideramos a verdade, rejeitando-a de seguida. Na esmagadora maioria dos casos, quando começamos a pensar sobre como explicar um determinado fenômeno, a verdade nem sequer está entre as opções consideradas. Os gregos antigos, por exemplo, não rejeitavam a teoria da mecânica quântica; simplesmente não a consideraram, e nem poderiam tê-lo feito.
Essa é uma razão básica pela qual não somos confiáveis. Outro fator é o fenômeno generalizado do tendenciosismo da confirmação: quando pensamos sobre uma hipótese, a nossa tendência natural é procurar provas que a corroboram, e não procurar maneiras de falsificá-la.25 Uma teoria que comece parecendo ligeiramente plausível pode vir a parecer cada vez mais incontestável conforme coletamos provas que a apoiam e negligenciamos as que a contrariam. Quando acrescentamos o fato de na maioria das questões teóricas as pessoas terem mais motivações para descobrir uma crença à qual se agarrar do que para descobrir a verdade, as probabilidades de se alcançar crenças errôneas são muito elevadas.
Felizmente, a ciência moderna tem desenvolvido técnicas para melhorar significativamente a nossa confiabilidade. Agora testamos hipóteses experimentalmente, fazendo esforços explícitos e sérios de falsificação. Mas quando se trata de ideologia política, nenhuma dessas técnicas foi desenvolvida. O mundo político parece frequentemente imune ao raciocínio científico, e por isso a nossa teorização política é quase tão pouco confiável quanto o eram todas as teorizações antes do advento da ciência moderna.
Por que não podemos aplicar os métodos que têm sido tão bem-sucedidos na ciência natural às questões políticas? Algumas das questões para as quais precisamos de respostas parecem não ser empíricas em princípio. Por exemplo, por meio de qual experimento podemos testar se a justiça exige que a sociedade redistribua a riqueza dos ricos pelos pobres? Outras questões são difíceis de serem investigadas devido à inexistência de experimentos controlados. Se queremos testar se o estímulo fiscal soluciona a recessão, não podemos preparar duas sociedades idênticas com recessões idênticas e então promover um estímulo fiscal em uma enquanto a outra não recebe estímulo algum. E nem podemos pegar uma grande coleção de sociedades em recessão e aleatoriamente determinar que metade receba estímulo fiscal e a outra metade não. Os cientistas sociais não têm o poder de fazer experimentos com as sociedades como os cientistas naturais fazem com objetos inanimados em seus laboratórios. Por fim, os fenômenos sociais são muitíssimo mais complexos do que os estudados pelos físicos e químicos. As sociedades contêm milhares ou milhões de indivíduos humanos interagindo uns com os outros em uma diversidade de maneiras complexas. E cada um desses seres humanos é ele próprio uma entidade extremamente complexa, muito mais complexa do que um objeto inanimado típico.
Como exemplo da relativa maleabilidade do comportamento inanimado, Johannes Kepler, no século XVII, ao examinar dados sobre a posição dos planetas no céu noturno, foi capaz de chegar por indução a três leis matemáticas simples sobre as órbitas dos planetas:
Por que não descobrimos, de modo parecido, as leis matemáticas elementares do comportamento humano? Provavelmente porque não há tais leis. As generalizações sobre o comportamento humano quase sempre têm cláusulas ceteris paribus. Quase qualquer fator que influencia o nosso comportamento pode ser ampliado ou moderado por diversos outros fatores. Quando tratamos do comportamento de uma sociedade inteira, as coisas são muito mais complicadas. Se houver leis da evolução social, são sem dúvida incrivelmente complexas.
Poderíamos ter a esperança de que os teorizadores sociais que fazem previsões equivocadas fossem devidamente castigados pela realidade e, por isso, que corrigiriam as suas teorias subjacentes. Mas, como Tetlock descobriu, isso raramente ocorre; a maioria dos especialistas prefere procurar explicações sobre os seus erros que preservem as suas crenças teóricas. Podemos ser tentados a considerar que essas explicações são meras racionalizações. O problema é que normalmente não podemos provar, em qualquer dado caso, que a explicação não está na verdade correta. Pode ser realmente verdadeiro que uma previsão quase se tornou realidade, e que a teoria subjacente do especialista ainda é basicamente correta apesar da previsão errada. Uma falha de um certa política em produzir os resultados esperados pode realmente se dever à má execução ou ao puro azar. No mundo social, nada do que acontece fornece um teste ideal para a teoria seja de quem for. Portanto, é difícil provar que um dado ideólogo está realmente sendo irracional ao se recusar a rever as suas crenças; se trata com frequência de um juízo pessoal.
Se, como sugeri, o conhecimento político é muito limitado e os agentes políticos raramente são sobretudo motivados por ideais políticos, o que devemos fazer? Pode parecer que nenhuma recomendação política pode ser derivada, pois, para cada política que possamos recomendar como resposta à ignorância política, seremos nós próprios ignorantes quanto ao seu valor. Isso seria verdadeiro se a minha tese consistisse de um ceticismo “filosófico” radical, segundo o qual ninguém possui qualquer conhecimento político relevante que seja. Felizmente, não somos completamente ignorantes, de modo que podemos derivar algumas recomendações plausíveis para os agentes políticos.
Nas democracias modernas, os períodos eleitorais são frequentemente acompanhados de campanhas públicas destinadas a incentivar os cidadãos a comparecer às urnas e votar; independentemente das tendências políticas de alguém, parece importante que esta pessoa vote por algo. Em alguns países, os governos chegam ao ponto de tornar o voto legalmente obrigatório.
Essas campanhas são uma ideia terrível. A maioria dos eleitores não faz ideia do que está acontecendo — podem nem sequer saber quem são os seus líderes e certamente não sabem quem são os melhores candidatos. Imagine que alguém lhe pergunta onde fica um restaurante. Se você não faz ideia onde fica, não deve inventar uma localização. Não deve dar à pessoa um palpite que lhe pareça um pouco plausível. Deve dizer-lhes que não sabe e deixar que ela procure se informar sobre a localização com outra pessoa melhor informada.
O voto ignorante é ainda pior do que dar indicações geográficas de forma ignorante, porque é um exercício de poder político (embora muitíssimo pequeno) — votar em uma política não se trata de apenas fazer uma recomendação, mas de exigir que essa política seja imposta aos outros à força. Coletivamente, a maioria impõe políticas ou escolhas pessoais ao resto da sociedade. Para ter justificação para participar de qualquer imposição dessas, é preciso ter alguma justificação forte para pensar que uma política ou uma escolha pessoal é benéfica. Essa justificação prima quase sempre pela ausência na grande maioria dos eleitores. Na grande maioria dos casos, portanto, votar não só não é um dever cívico; é positivamente imoral.
Pode-se sugerir que os cidadãos têm uma obrigação de tornarem-se informados e então votar. Mas tornar-se suficientemente informado para saber quem é o melhor candidato em uma dada eleição é de ordinário extremamente difícil. Com efeito, não é implausível pensar que para a maioria das pessoas e para a maioria das eleições a tarefa é efetivamente impossível — por mais que estude, a maioria dos eleitores não saberá quem é o melhor candidato, e pode nem sequer conseguir dar um palpite probabilístico razoável. Mesmo que não seja impossível, descobrir quem é o melhor candidato é claramente muito oneroso. Portanto, não é razoável exigir que um indivíduo se submeta a enormes custos na aquisição desse conhecimento apenas para assegurar a probabilidade de, digamos, um em dez milhões de produzir um benefício modesto para a sociedade.
Em suma, é mais plausível dizer que os indivíduos não têm obrigação de votar e que, se estão mal informados (como quase todos os cidadãos), têm a obrigação de não votar.26
A sociedade sofre de inúmeros problemas que o governo é convocado a resolver. À luz da ignorância política generalizada, contudo, na maioria dos casos é mais aconselhável que o governo não faça coisa alguma em vez de tentar resolvê-lo. Considere-se, por exemplo, o problema do uso de drogas recreativas, que ocasionam problemas de saúde, vício, e deterioração geral da vida do usuário da droga e de seus familiares. Talvez haja algo que o governo possa fazer para resolvê-lo. Porém, dada a ignorância política dos líderes políticos, dos ativistas e do público, é improvável que uma tentativa do governo para solucionar o problema seja bem-sucedida.
Ora bem, alguém poderia pensar que, se fôssemos completamente ignorantes, as probabilidades de as nossas políticas aumentarem ou reduzirem os problemas seriam as mesmas; mas, na medida em que temos algum conhecimento e compreensão relevantes, e como estamos nos concentrando na redução do problema, deveria ser ao menos ligeiramente mais provável que conseguíssemos aliviar o problema, ao invés de exacerbá-lo. Portanto, mesmo que o governo não saiba o que resolverá ou aliviará o problema, pode e deve ao menos dar um palpite informado e em seguida implementá-lo.
Há pelo menos quatro razões pelas quais isso está errado. Primeiro, qualquer política governamental que imponha obrigações ou proibições aos cidadãos tem automaticamente certos custos. Um deles é a redução da liberdade dos cidadãos. Outro é o sofrimento por parte de quem viola as leis e é subsequentemente punido judicialmente. Um terceiro custo é financeiro, que está envolvido na execução da política. Assim, no caso de leis contra o uso recreativo de drogas, os indivíduos vêem negada a sua liberdade de fazer o que desejam com os seus próprios corpos; quem é apanhado a violar a lei é aprisionado e sofrem durante meses ou anos; e todos os contribuintes sofrem os custos da aplicação da lei de combate às drogas.
Segundo, há uma espécie de presunção moral contra as intervenções coercivas. As leis são ordens apoiadas por ameaças de imposição coerciva de danos a quem desobedecer. A coerção prejudicial contra indivíduos precisa geralmente de alguma justificação clara. Uma pessoa não tem justificação para coercivamente provocar danos em outra só porque esta violou uma ordem que meramente se acha que produz algum benefício social. Se não é razoavelmente claro que os benefícios esperados de uma política superam significativamente os custos, então não é possível usar a força de forma justa para impor a política em questão à sociedade.
Um terceiro aspecto relacionado é que quando o estado intervém ativamente na sociedade — ao emitir ordens e prejudicar coercivamente quem lhes desobedece — torna-se responsável por quaisquer danos resultantes, o que não acontece quando o estado se limita a não evitar danos (por falta de conhecimento). Imagine-se que esteja vendo uma mulher no ponto de ônibus abrindo um frasco de pílulas, obviamente prestes a tomar uma. Antes de eu decidir tomar subitamente as pílulas da mulher e deitá-las no esgoto, é melhor garantir que as pílulas são realmente prejudiciais. Se por acaso era um remédio de que a mulher precisava para prevenir um ataque cardíaco, serei responsável pelo resultado. Se, por outro lado, devido à incerteza sobre a natureza da droga, eu decidir deixar a mulher quieta e mais tarde se descobre que ela estava ingerindo veneno, não serei responsável pela sua morte. Por essa razão, a intervenção enfrenta um ônus da prova maior do que a não-intervenção. Do mesmo modo, se, devido à incerteza quanto aos efeitos das leis de drogas, o governo simplesmente deixasse os usuários de droga em paz, não seria responsável pelos prejuízos que os usuários de drogas causam em si próprios. Mas se o governo mantém leis de combate às drogas, e essas leis impõem enormes custos à sociedade, o governo é moralmente responsável por esses custos.
Quarto, e finalmente, uma política elaborada em condições de extrema ignorância não tem a mesma probabilidade de ser benéfica ou prejudicial; é muito mais provável que seja prejudicial. O famoso economista Ronald Coase, que dirigiu o Journal of Law and Economics por dezoito anos, foi entrevistado em 1997. Entre outras coisas, relatou que a sua revista havia publicado uma série de estudos sobre os efeitos de regulamentações em várias áreas. Quando lhe perguntaram quais dessas regulamentações eram más, respondeu:
Não consigo lembrar de uma que tenha sido boa. A regulamentação dos transportes, da agricultura — a agricultura é A, ordenamento do território é Z. Sabe, vamos de A a Z e são todas más. Houve tantos estudos, e o resultado foi bastante universal: os efeitos eram maus.27
Como é isto possível? Mesmo que não saibamos muito, não deveríamos ao menos criar algum benefício líquido a maior parte do tempo?
É aqui que devemos relembrar do caso de George Washington. Os médicos de Washington, ignorantes da teoria dos germes e sem antibióticos à mão, não tinham hipótese de curar a infecção de Washington. O corpo humano é um mecanismo complexo com partes que trabalham conjuntamente de maneiras específicas. Quase tudo o que alguém pode acrescentar ou remover do corpo, e quase todas as maneiras de rearranjar as partes do corpo, interferirão nesse mecanismo. De fato, quase todas as grandes mudanças no corpo são fatais. Assim, dado o seu estado de ignorância, é de esperar que quase todo o tratamento que poderia ter sido prescrito pelos médicos do antigo presidente teria sido prejudicial.
A sociedade pode ser vista como um imenso mecanismo, cujas partes (seres humanos individuais), como as partes de um organismo, trabalham conjuntamente de maneira extremamente complexa.28 Talvez, portanto, muitas intervenções possíveis na sociedade perturbem o funcionamento desse mecanismo, sendo por isso socialmente prejudiciais. Se o governo não sabe o que está fazendo, é mais provável que piore a situação em vez de melhorá-la.
É claro que não estou argumentando que os estados nunca devem intervir na sociedade. Algumas intervenções estão claramente justificadas. Por exemplo, as proibições do homicídio, do furto e do roubo estão justificadas. O que as diferencia de uma proibição do uso recreativo de drogas, por exemplo? Podemos citar muitas diferenças,29 mas o mais relevante neste artigo é a diferença do estado do nosso conhecimento no que diz respeito a essas proibições. Sabemos que a proibição do homicídio é benéfica — não há contra-argumentos reais a esta afirmação e todos os especialistas concordam. Mas não se pode simplesmente afirmar que sabemos que a proibição do uso das drogas é benéfico; de fato, essa afirmação é calorosamente disputada. Em vez de recomendar a não-intervenção universal, estou defendendo um forte ônus da prova sobre quem defende exigências ou proibições legais. Se os especialistas estiverem divididos sobre se a intervenção do governo é benéfica ou não, ela deve, via de regra, ser rejeitada.
A mesma lição se aplica a muitas outras questões controversas, como o controle de armas de fogo, o estímulo fiscal, o salário mínimo, a imigração e assim por diante. Em cada um desses casos, os benefícios da intervenção do governo são, na melhor das hipóteses, controversos entre os especialistas; em alguns casos, a opinião dos especialistas se opõe à intervenção. Portanto, o governo não deve restringir a posse de armas, tentar estimular a economia, impor o salário mínimo ou restringir a imigração, tal como não deve proibir o uso recreativo de drogas.
A democracia funciona bem para questões cujas respostas são óbvias — por exemplo, eu ficaria completamente confortável em colocar em votação popular a proibição do homicídio. A democracia é superior à ditadura principalmente porque as ditaduras tendem a fazer coisas que são incontroversa e obviamente más — como matar milhões de pessoas. Mas para coisas que são controversas ou exigem raciocínio cuidadoso e conhecimento especializado, a democracia é o equivalente a tirar políticas de um chapéu. A ignorância e a irracionalidade do eleitorado resultam frequentemente em políticas danosas e injustas.
Quando um assunto é controverso, a melhor solução não é apenas se abster de votar; a melhor solução é a eliminação do assunto da arena política — o que significa a proibição da intervenção estatal. A razão para isso é a simples recomendação da seção 4.2, segundo a qual deve haver um pesado ônus da prova para todas as intervenções estatais na sociedade. Por exemplo, se os benefícios do controle de armas são controversos, não deveríamos votar se devemos restringir ou não a posse de armas; em vez disso, deveríamos proibir o governo de restringir a posse de armas.30 Foi precisamente isso o que a Constituição americana pretendeu fazer na sua segunda emenda. Muitas provisões dessa Constituição foram sabiamente colocadas como restrições à democracia — por exemplo, o governo não pode proibir a prática da religião islâmica ainda que a maioria dos eleitores quisesse que o governo o fizesse.
Talvez seja inviável que uma Constituição inclua proibições de todas as políticas que seriam controversas ou cujos efeitos não possamos conhecer. Uma abordagem razoável seria exigir um quórum super-majoritário para que qualquer lei fosse aprovada. Por exemplo, seria possível exigir um quórum de 70 % em uma votação para aprovar qualquer nova lei, ao passo que seria necessário um quórum de apenas 30 % para revogar qualquer lei existente. Uma regra desse tipo não seria perfeita, mas poderia muito bem eliminar a maioria das leis prejudiciais do estado ao mesmo tempo em que permitiria a aprovação de leis claramente necessárias. Não há que temer que 30 % de uma legislatura venha a votar a favor de tornar o homicídio legal, por exemplo.
Quando se trata de questões políticas, normalmente não deveríamos lutar pelo que acreditamos. Lutar por algo, da maneira que entendo a expressão, envolve lutar contra alguém. Se os objetivos de alguém não encontrarem oposição (humana), então podemos dizer que tal pessoa está trabalhando por uma causa (por exemplo, trabalhando para reduzir a tuberculose ou para alimentar os necessitados), mas não lutando por isso. Assim, só se luta por uma causa normalmente quando o que está sendo proposto é controverso. E, na maior parte do tempo, quem promove causas controversas não sabe de fato se o que está promovendo é correto, por mais que possa pensar que sabe. Como se sugeriu na seção 3.2, estão lutando para ter a experiência de estar lutando por uma causa nobre, em vez de estarem realmente procurando os ideais que acreditam estar procurando.
Lutar por uma causa tem custos significativos. Tipicamente, gasta-se muito tempo e energia, e impõem-se ao mesmo tempo custos a terceiros, principalmente a quem se opõe à posição política em questão. É muito provável que esse tempo e essa energia sejam desperdiçados, visto que nenhum dos lados sabe a resposta para a questão em causa. Em vários casos, o esforço é gasto para realizar uma política que se revela prejudicial ou injusta. Seria melhor gastar tempo e energia em objetivos que se sabe serem bons.
Assim, suponha-se que você esteja decidindo entre doar tempo ou dinheiro para a Moveon.org (um grupo de militância política de esquerda) e doar tempo ou dinheiro para a Against Malaria Foundation (uma organização de caridade que combate a malária nos países em desenvolvimento). Para quem se preocupa com o bem-estar humano, a escolha deveria ser clara. As doações para a Moveon.org podem ou não afetar as políticas públicas, e, se o fizerem, o efeito tanto pode ser bom como mau — isso é objeto de debate. Mas as doações para a Against Malaria salvam definitivamente vidas. Ninguém contesta isso.31
Há exceções à regra de que não devemos lutar por causas. Às vezes, as pessoas acham necessário lutar por uma causa, apesar de ser incontroversa e obviamente boa — como é o caso da luta para acabar com violações de direitos humanos em regimes ditatoriais. Nesse caso, os oponentes dessa causa são simplesmente corruptos ou maus. Ocasionalmente, uma pessoa pode saber que uma dada causa é correta ainda que seja controversa entre o público em geral. Isso pode ocorrer porque o indivíduo em questão tem conhecimentos que o público não tem, podendo ter ignorado o consenso dos especialistas. Mas esses casos são minoritários. A maioria dos indivíduos que lutam por causas não sabem realmente o que estão fazendo.
A sabedoria popular frequentemente aplaude quem se envolve em política, que vota nas eleições, que luta por causas em que acredita e que tenta fazer um mundo melhor. Tendemos a presumir que as motivações desses indivíduos são ideais nobres e que, quando conseguem mudar o mundo, a mudança é normalmente para melhor.
As provas claras da ignorância e irracionalidade humanas na arena política põem em questão a sabedoria popular. Sem ter ciência dos fatos básicos acerca dos próprios sistemas políticos, isso sem falar do conhecimento mais sofisticado que seria necessário para resolver com segurança questões políticas controversas, a maioria dos cidadãos não pode fazer muito mais do que tentar adivinhar as coisas quando entra numa cabine de voto. Longe de ser um dever cívico, a tentativa de influenciar políticas públicas por meio de adivinhações arbitrárias é injusto e socialmente irresponsável. E não temos qualquer boa razão para pensar que os ativistas ou os líderes políticos são mais confiáveis na tarefa de chegar às posições corretas em questões controversas; quem é mais politicamente ativo é frequentemente quem é mais tendencioso ideologicamente, e por isso pode ser ainda menos confiável do que o cidadão médio na identificação de verdades políticas. Na maioria dos casos, portanto, os ativistas e os líderes políticos agem irresponsavelmente e injustamente quando tentam impor as suas soluções dos problemas sociais ao resto da sociedade.
Talvez o exemplo mais dramático seja o de Karl Marx, que ficou famoso por ter dito que “os filósofos se limitaram a interpretar o mundo de diversas maneiras; o ponto, contudo, é mudá-lo”.32 O maior legado de Marx é a demonstração prática, no decorrer da história do século XX, das consequências de se mudar um mundo que não se entende. Este não é o lugar para entrar em detalhe quanto à sua má compreensão das coisas, que já foi largamente discutida por outros. Basta dizer que, apesar da seriedade com que gerações de intelectuais em todo o mundo estudaram o seu trabalho, o entendimento de Karl Marx acerca dos seres humanos e da sociedade era mínimo.33 A sua influência no mundo do século XX, no entanto, foi incomparável — e, como a maioria dos observadores reconhece, inacreditavelmente maligna.34 Isto não é um mero acidente. Quando não temos um entendimento preciso e pormenorizado de um sistema complexo, qualquer tentativa de melhorá-lo radicalmente tem mais probabilidades de perturbar as coisas que funcionam bem do que de reparar as suas imperfeições. A incapacidade de Marx para aperfeiçoar a sociedade deveria ser tão pouco surpreendente quanto a incapacidade dos médicos de George Washington para curar a sua infecção por meio de sangrias.
Pode-se ter a esperança de que um dia os seres humanos terão uma compreensão científica da sociedade comparável à compreensão da ciência moderna acerca da maioria dos aspectos do mundo natural. Nesse dia, poderemos encontrar maneiras de reestruturar a sociedade para benefício de todos. Mas não podemos prever agora como será tal compreensão, nem deveríamos tentar executar políticas que achamos que um dia se mostrarão benéficas. Nesse meio tempo, é de prever que muitos irão fingir ter uma abordagem científica da sociedade, ao estilo dos marxistas. Serão teorias que dependem de premissas dúbias que apenas certos ideólogos políticos acham convincentes. Esses ideólogos podem, como no caso dos marxistas, adotar a atitude fundamentalmente anticientífica de considerar que quem questiona a sua ideologia é um inimigo a ser suprimido.
Os líderes políticos, os eleitores e os ativistas fazem bem em acatar a máxima, frequentemente aplicada na medicina, segundo a qual “antes de tudo, há que não causar dano”. Uma regra geral intuitiva para nos protegermos dos danos que resultam da confiança exagerada em crenças ideológicas é que não devemos impor à força obrigações e restrições aos outros a menos que o seu valor seja essencialmente incontroverso na comunidade dos especialistas, estando estes em condição de ter um debate livre e aberto. Obviamente, até mesmo um consenso entre especialistas pode estar errado, mas esta regra intuitiva pode ser o melhor a que seres falíveis como nós podem deitar mão.