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Crítica
20 de Março de 2016   Filosofia política

Filosofia politizada

Olivier Massin
Tradução de Aluízio Couto
How Propaganda Works
de Jason Stanley
Princeton University Press, 2015, 376pp.

Embora Jason Stanley a descreva como “um livro sobre a natureza da propaganda”, o principal objetivo da obra é político: desenvolver um argumento contra a desigualdade material. Ele argumenta que, embora oculta, há em todo lugar um tipo de propaganda a ameaçar as democracias liberais, sustentada, acima de tudo, pelas desigualdades materiais. Ao expor a natureza desse tipo de propaganda, Stanley espera abrir os nossos olhos para as ameaças que essas desigualdades impõem às democracias liberais.

O principal feito do livro é sua análise da propaganda. Stanley argumenta convincentemente que a propaganda não é necessariamente falsa ou insincera. Ele distingue a familiar “propaganda de apoio” de uma espécie mais negligenciada, a “propaganda de enfraquecimento”. A primeira não esconde o ideal que promove. A segunda, no entanto, apresenta-se como algo que incorpora alguns ideais quando, de fato, corrói-os. Uma lei, por exemplo, pode ser anunciada como promotora do bem público quando na realidade beneficia apenas algum grupo de interesse.

Tendo como base a sua abordagem da propaganda, Stanley se volta para o seu argumento político. Obviamente, não há qualquer inferência válida direta a partir de uma afirmação sobre a natureza ou essência da propaganda e da ideologia a favor de qualquer conclusão política normativa – seja de esquerda, conservadora, progressista ou libertária. O acordo sobre a natureza da demagogia e da ideologia fajuta é certamente compatível com o desacordo sobre onde se encontra tais coisas. Na arena política, as acusações de propaganda e ideologia são tipicamente recíprocas. Ao sair da metafísica para a política real, são necessárias premissas substanciais filosóficas e empíricas. Mas as premissas das quais Stanley se vale são muito menos plausíveis do que sua própria abordagem da propaganda.

Stanley argumenta que em casos de desigualdades materiais substanciais, as elites – aqueles que “controlam os recursos da sociedade” – desenvolvem e propagam uma ideologia autolegitimadora segundo a qual os recursos são, de fato, distribuídos de acordo com o mérito. Uma vez que, na realidade, tais recursos não são distribuídos dessa maneira, tal ideologia meritocrática é fajuta. A ideologia fajuta acaba sendo aceita pelos próprios “grupos oprimidos”, que dessa forma ficam cegos à sua própria opressão e consideram a sua situação justa e equânime. Assim, as desigualdades fomentam uma ideologia meritocrática fajuta, sendo esta o terreno fértil da propaganda que coloca a democracia em perigo.

Uma premissa factual central do argumento de Stanley é que a ideologia meritocrática se tornou a ideologia dominante não apenas entre as elites mas também entre os grupos oprimidos. Em favor dessa premissa, Stanley aponta vários mecanismos que resultam no fato de a ideologia da elite ser adotada pelos “grupos negativamente privilegiados” (por exemplo, o controle exercido pelas elites sobre a mídia e o sistema educacional). A descrição oferecida por Stanley desses mecanismos é muitas vezes interessante. Mas é a ideia que ela deveria explicar – a predominância da ideologia de que os recursos estão “equanimemente divididos de acordo com o mérito” – de todo plausível? Ela implica que a maioria de nós (exceção feita aos acadêmicos iluminados) acredita, por exemplo, que a herança não desempenha qualquer papel na distribuição da riqueza. Se a ideologia meritocrática realmente nos cegou para o fato de que os indivíduos herdam quantidades diferentes de riqueza, então o seu poder oculto é verdadeiramente assustador. Mas, obviamente, isso não é o que realmente está a ocorrer: a verdade é que com exceção de alguns herdeiros iludidos e ricos, a maior parte das pessoas não acredita que todos os recursos estão de fato distribuídos de acordo com o mérito (embora possam muito bem pensar que deveriam sê-lo).

A outra premissa da qual o argumento de Stanley depende é que todas as desigualdades materiais são, a menos que se baseiem em diferenças de mérito, injustas. Precisa-se dessa premissa para explicar a razão pela qual os grupos materialmente ricos sentem a necessidade de construir um mito meritocrático autolegitimador; além disso, é necessário argumentar que essa ideologia meritocrática fajuta impede os materialmente pobres de perceber que sua condição é injusta. (Stanley de fato acredita que o conceito de mérito é inconsistente, pelo que deve em última instância acreditar que qualquer desigualdade jamais pode ser justa.)

Essa premissa central sobre desigualdades justificáveis não é defendida em lugar algum, mas apenas pressuposta. No entanto, é certamente muito implausível que todas as desigualdades não baseadas no mérito sejam injustas. (Afinal, os presentes podem criar desigualdades.) A premissa talvez goze de alguma plausibilidade quando formulada na linguagem que Stanley usa para dividir “os recursos da sociedade”: a distribuição desigual de pedaços de uma torta exige alguma justificação, por exemplo, diferenças de mérito ou de necessidade. Mas tão logo nos voltamos para o problema de avaliar a distribuição de riqueza resultante de transações entre indivíduos (e.g. no comércio), a afirmação de que as desigualdades não baseadas no mérito são eo ipso injustas é bastante implausível. De fato, tem-se argumentado com frequência que as desigualdades não exigem qualquer justificação positiva desde que as transações que estão na sua origem não sejam elas próprias injustas. Que as desigualdades não baseadas no mérito são injustas – e, mais fundamentalmente, que as desigualdades não justificadas são injustas – são afirmações que não podem simplesmente ser pressupostas num argumento contra as desigualdades.

Stanley revela uma percepção não muito nítida da fraqueza do seu argumento político. Sempre que surgem objeções às suas perspectivas políticas, ele sabiamente recua para a metafísica da propaganda, ressaltando que as “afirmações empíricas sobre exemplos reais não são parte dos objetivos teóricos centrais deste livro”. Mas logo retorna à política e, na conclusão do livro, ressalta que ao não ensinar filosofia feminista e filosofia da raça, os departamentos de filosofia das universidades contribuem para a ideologia das elites, impedindo os “grupos despossuídos” de reconhecer sua própria opressão.

Stanley não reflete de verdade sobre quaisquer argumentos dos seus oponentes políticos. Essa unilateralidade é usualmente tida como um vício intelectual; mas Stanley nos assegura que dado o fato de a ideologia ser inevitável, a ideia de neutralidade deve ser abandonada. Ele se delicia ao descrever esses oponentes como demagogos, e ao fazê-lo dá voz à convicção disseminada entre os intelectuais de que as perspectivas políticas que não tenham um verniz “progressista” requerem terapia em vez de avaliação racional. Isso se assemelha bastante ao artifício propagandístico do “silenciamento”, que Stanley adota dos filósofos feministas, e cujo efeito é que as “perspectivas de um grupo designado não são dignas de consideração razoável”. Entretanto, pode não haver qualquer inconsistência aqui, pois ele argumenta longamente que para os que se dedicam à atividade de “reparar as feridas da democracia” – e é assim que ele se vê – a propaganda não é apenas permissível, mas constitui uma forma “obrigatória” de “retórica cívica”.

Alguns tipos de propaganda corroem não apenas o alcance dos ideais que oficialmente endossam, mas a própria afirmação dessas coisas como ideais. Um modo de corroer os ideais democráticos, por exemplo, é impedir que os processos democráticos ocorram. Outro modo é sugerir que os ideais democráticos sequer devam ser almejados. Stanley muitas vezes parece fazer algo assim a respeito dos ideais intelectuais-teóricos. A convicção de que os valores epistêmicos – os valores associados à busca do conhecimento – não devem necessariamente ter prioridade sobre valores políticos impregna o livro inteiro. É claro já em seu indignado prefácio que o livro foi escrito mais por raiva política do que por curiosidade. Para Stanley, a metafísica da propaganda é de pouco interesse sem uma “utilidade política de uma metafísica do político”. Ele não apenas pensa que os valores epistêmicos são menos importantes que os políticos, mas também sugere que mesmo na filosofia os ideais epistêmicos não devem ter precedência sobre os políticos.

Franz Brentano disse uma vez que, ao longo da história da filosofia, o interesse pela verdade invariavelmente deu lugar às motivações práticas e à pregação. Numa veia similar, Julien Benda acusou os intelectuais de seu tempo de terem traído a metafísica, entendida como uma especulação desinteressada, para dar vazão às suas paixões políticas. Eles almejavam não à filosofia política, mas à filosofia politizada, o tipo de filosofia que sacrifica os ideais epistêmicos em nome dos políticos. A filosofia analítica tem sido até então imune a tais críticas. Escrito por um distinto filósofo analítico, How Propaganda Works pode ser o primeiro livro na tradição analítica ao qual essas queixas se aplicam.

Olivier Massin
The Times Literary Supplement (26 de Fevereiro de 2016)
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ISSN 1749-8457