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Crítica
31 de Maio de 2016   Filosofia política

Pornografia e censura

Caroline West
Tradução de Desidério Murcho

Pode um governo proibir legitimamente os cidadãos de publicar ou ver pornografia, ou seria isto uma violação injustificada das liberdades básicas?

Esta pergunta está no coração de um debate que levanta questões fundamentais acerca de exactamente quando, e com que bases, o estado tem justificação para usar os seus poderes coercivos para limitar a liberdade dos indivíduos.

Tradicionalmente, os liberais defenderam a liberdade dos adultos que o consentem de publicar e consumir pornografia em privado contra os conservadores morais e religiosos que queriam banir a pornografia por ser obscena, corromper os consumidores e enfraquecer a família tradicional e os valores religiosos. Porém, mais recentemente, o debate sobre a pornografia ganhou um perfil algo novo e surpreendente. Algumas feministas descobriram que eram aliadas dos seus tradicionais inimigos conservadores ao exigir que o estado regule ou proíba a pornografia — apesar de a preocupação feminista principal ser o dano que a pornografia possa causar às mulheres (e crianças), e não a obscenidade do seu conteúdo sexualmente explícito. E alguns liberais juntaram-se às feministas favoráveis à censura sugerindo que os danos que a pornografia violenta e degradante causa ao prestígio social e às oportunidades das mulheres pode ser suficientemente sério para justificar que seja proibida com fundamentos liberais. Muitos outros, tanto liberais como feministas, não se deixaram convencer. Duvidam que a pornografia seja uma causa significativa da opressão das mulheres ou que o instrumento “cego e traiçoeiro” da lei seja a melhor solução para o dano que possa causar. Como veremos, o debate sobre se a pornografia deve ser censurada continua bastante vivo.

1. O que é a pornografia?

“Não consigo definir a pornografia”, disse uma vez um juiz, “mas sei o que é quando a vejo”. (Juiz Stewart in Jacobellis contra Ohio 378 US 184 (1964).) Poderemos fazer melhor?

A palavra “pornografia” vem do grego e significa “escrever acerca de prostitutas”. Contudo, a etimologia do termo não é um grande guia do seu uso actual, dado que muitas das coisas que é comum hoje em dia chamar “pornografia” nem são literalmente escritas nem são literalmente acerca de prostitutas.

Eis uma primeira definição simples. A pornografia é qualquer material (imagens ou palavras) que seja sexualmente explícito. Esta definição da pornografia pode seleccionar tipos diferentes de materiais em diferentes contextos, dado que o que é visto como sexualmente explícito pode variar de cultura para cultura e ao longo do tempo. “Sexualmente explícito” funciona como uma espécie de termo indexical, seleccionando diferentes características em função do que tem certos efeitos ou viola certos tabus em diferentes contextos e culturas. Mostrar os tornozelos destapados das mulheres é considerado sexualmente explícito em algumas culturas, mas não actualmente na maior parte das culturas ocidentais (apesar de o ter sido: mostrar um tornozelo feminino na época vitoriana era encarado como muitíssimo arriscado). Pode haver também casos de fronteira: mostrar as mamas conta ainda como sexualmente explícito em várias culturas ocidentais contemporâneas? Contudo, alguns materiais parecem contar claramente como sexualmente explícitos em muitos contextos actuais: em particular, representações sonoras, escritas ou visuais de actos sexuais (e.g., relações sexuais, sexo oral) e a exposição de algumas partes do corpo (e.g., a vagina, o ânus e o pénis — especialmente o pénis erecto).

Há uma grande diversidade de conteúdo incluído na classe geral de material sexualmente explícito. Por exemplo, alguns materiais sexualmente explícitos representam mulheres, e por vezes homens, em posturas de exibição sexual (e.g., as fotografias centrais da Playboy). Alguns representam actos sexuais não violentos (tanto homossexuais como heterossexuais) entre adultos que são retratados como participantes iguais que os consentem. Outras são representações sexualmente explícitas de actos de coerção violenta: pessoas que são chicoteadas, agredidas, manietadas, torturadas, mutiladas, violadas e até mortas. Alguns materiais sexualmente explícitos podem ser degradantes sem que tenham de ser abertamente violentos. Estes materiais representam pessoas (a maior parte das vezes mulheres) em posições de servidão e de subordinação nas suas relações sexuais com outros, ou em actos sexuais que muitas pessoas considerariam humilhantes. Alguns materiais sexualmente explícitos envolvem ou representam crianças. Alguns retratam bestialidade e necrofilia; e assim por diante.

Na primeira definição de pornografia como material sexualmente explícito, todos esses materiais seriam classificados como pornografia, na medida em que são sexualmente explícitos. Mas esta definição simples não está completamente correcta. Os livros introdutórios de anatomia para estudantes de medicina são sexualmente explícitos — incluem imagens de órgãos genitais, por exemplo — mas raramente são vistos como pornografia, se é que alguma vez o são. Ser sexualmente explícito pode ser uma condição necessária para que um material conte como pornográfico, mas não parece suficiente. Por isso, é preciso acrescentar algo à definição simples. O quê?

Eis uma segunda definição. A pornografia é material sexualmente explícito (verbal ou pictórico) que seja principalmente concebido para provocar excitação sexual na audiência. Esta definição é melhor: dá conta do problema dos livros introdutórios de anatomia e quejandos. Na verdade, esta definição é frequentemente usada (ou pressuposta) nas discussões sobre a pornografia e a censura (veja-se, e.g., Williams 1981). Claro que é importante distinguir aqui entre materiais sexualmente explícitos que são concebidos total ou principalmente para provocar excitação sexual (i.e., cujo único fim, ou fim principal, é provocar excitação sexual) e materiais que pretendem provocar essa excitação visando outros fins artísticos ou sexuais. O filme O Último Tango em Paris visa, defensavelmente, provocar excitação sexual nas audiências, mas esse não é o seu fim principal. Fá-lo com finalidades políticas mais latas.

Pressupõe-se por vezes que a pornografia, neste segundo sentido, é publicada e consumida por uma pequena minoria marginalizada. Porém, apesar de as estimativas exactas quanto à dimensão e lucro do comércio pornográfico internacional serem algo variáveis, concorda-se geralmente que a indústria pornográfica é um empreendimento internacional gigantesco, que movimenta anualmente vários milhares de milhões de dólares. Calcula-se que em 2003 a indústria pornográfica (incluindo vídeos, revistas, televisão por cabo, Internet e CD-ROM para adultos) teve lucros de 34 milhares de milhões de dólares em todo o mundo; e mais de oito milhares de milhões só nos EUA, ultrapassando os lucros combinados da ABC, CBS e NBC (6.2 milhares de milhões de dólares). A pornografia é muito mais intensamente consumida do que por vezes se supõe, e é uma indústria internacional enorme e extremamente lucrativa.

Contudo, o termo “pornografia” é muitas vezes usado como uma força normativa adicional que tanto a primeira como a segunda definição ignoram. Quando muitas pessoas descrevem algo como “pornográfico” (e.g., um livro como Trópico de Capricórnio ou um filme como Baise Moi ), parece que não se limitam a descrever desapaixonadamente o conteúdo sexualmente explícito ou as intenções dos seus produtores — na verdade, nestes debates, considera-se por vezes que as intenções dos produtores são irrelevantes para estabelecer o estatuto pornográfico da obra. Parece que estão a dizer, além disso, que é mau — e talvez também que a falta de qualidade não é neutralizada por outros méritos artísticos, literários ou políticos que a obra possa ter. (Considere-se, por exemplo, como as pessoas usam muitas vezes o termo “pornografia visual” para condenar certos géneros de arte ou de televisão quando o material não é sequer sexualmente explícito.)

Isto sugere uma terceira definição: a pornografia é material sexualmente explícito concebido para provocar excitação sexual nos consumidores que é de algum modo mau. Esta definição de pornografia torna analiticamente verdadeiro que a pornografia é má: por definição, o material que não seja mau do modo relevante não é pornografia. Talvez todo o material sexualmente explícito, e apenas ele, seja mau de um certo modo (e.g., obsceno); neste caso, “pornografia” referir-se-á a toda a classe de materiais sexualmente explícitos, e só a ela. Porém, talvez só algum material sexualmente explícito seja objectável (e.g., aquele que for degradante para as mulheres), caso em que só a subclasse má de materiais sexualmente explícitos contam como pornografia. E, claro, é possível que nenhum material sexualmente explícito seja mau do modo relevante (e.g., ser danoso para as mulheres), caso em que teríamos uma teoria do erro acerca da pornografia: não haveria pornografia, definida deste modo, mas antes e tão-só materiais eróticos sexualmente explícitos não danosos.

Várias abordagens definem a pornografia como maus materiais sexualmente explícitos — ainda que discordem quanto ao que os torna maus, e consequentemente quanto à determinação dos materiais que são pornográficos. Uma abordagem particularmente dominante tem sido definir a pornografia em termos de obscenidade (para discussões críticas desta abordagem veja-se Schauer 1982, Feinberg 1987, MacKinnon 1987). A obscenidade pode ser encarada como intrínseca ao conteúdo do próprio material (por exemplo, que tende a ofender pessoas “razoáveis”, ou a depravar ou corromper as audiências, ou a destruir os valores tradicionais da religião e da família). Se todos os materiais sexualmente explícitos forem obscenos independentemente dos padrões que escolhamos, então nesta definição todos os materiais sexualmente explícitos serão pornográficos. Esta é a definição de pornografia que os conservadores morais tipicamente favorecem.

Porém, o que há de mau na pornografia não tem de resultar da sua obscenidade. A pornografia poderia ser definida não como materiais obscenos sexualmente explícitos, mas antes como aqueles materiais sexualmente explícitos que sejam danosos para as mulheres. Assim, segundo muitas definições feministas contemporâneas, a pornografia é material sexualmente explícito que retrata a subordinação das mulheres de um modo que a subscreve (veja-se Longino 1980, MacKinnon 1987). Esta definição de pornografia deixa em aberto em princípio que possa existir materiais sexualmente explícitos que não sejam pornográficos: materiais sexualmente explícitos que não subordinem as mulheres serão considerados materiais eróticos inócuos.

Claro que as mulheres podem não ser as únicas pessoas vítimas de dano pela produção ou consumo de certos tipos de materiais sexualmente explícitos. Considera-se muitas vezes que o consumo de materiais sexualmente explícitos provoca dano aos seus consumidores (homens, na sua maior parte): por exemplo, corrompendo a moral dos consumidores ou tornando menos provável que tenham relações sexuais e amorosas de longa duração. Muitas pessoas objectam fortemente à “pornografia infantil”: esse subconjunto de materiais sexualmente explícitos que envolve representações de crianças reais executando actividades sexuais. Esta classe de materiais sexualmente explícitos é largamente considerada objectável porque envolve a exploração real de crianças, juntamente com um registo permanente desse abuso que pode prejudicar mais ainda os seus interesses.

Vimos que há três possibilidades nesta terceira abordagem em que se define “pornografia” como material sexualmente explícito que é de algum modo mau ou danoso: a pornografia pode incluir todos os materiais sexualmente explícitos, alguns ou até nenhuns, em função de quais são as classes de materiais sexualmente explícitos que são de facto maus do modo relevante (se é que existem). Porém, vale a pena fazer notar que há uma quarta possibilidade interessante. É possível que alguns materiais que não são sexualmente explícitos se revelem também maus do modo relevante. Talvez alguns materiais que não são sexualmente explícitos sejam obscenos do modo relevante (e.g., a controversa e famosa de obra de arte de Andres Serrano intitulada “Piss Christ”, que exibe um crucifixo de plástico mergulhado em urina com sangue de vaca). Ou talvez a publicidade que não é sexualmente explícita mas representa mulheres em posições sexuais servis de um modo que subscreve essa subordinação seja também má do modo relevante. (Como muitos filósofos diriam, os materiais sexualmente explícitos que subordinam as mulheres retratando-as como subordinadas talvez não formem uma categoria natural.) Neste caso, há duas opções. Poderia considerar-se que a palavra “pornografia” refere apenas o subconjunto sexualmente explícito de materiais que são maus no sentido relevante (e.g., que representam as mulheres como subordinadas sexuais dos homens de um modo que subscreve essa subordinação); ou que refere todos os materiais que sejam maus desse modo, sejam sexualmente explícitos ou não. Porém, talvez esta concepção comum, pensando melhor, não capte afinal o que é interessante e importante, tanto moral como politicamente. Pode assim haver razões teóricas para conceber a pornografia de uma maneira mais ampla que não se limite a materiais sexualmente explícitos que sejam maus de um certo modo, ou talvez para inventar simplesmente um novo termo que capte a categoria teoricamente interessante. Algumas feministas parecem inclinadas a aceitar esta abordagem mais abrangente, sugerindo que os materiais que representam explicitamente as mulheres em posturas servis ou de submissão sexual, ou que de algum modo as subscrevam, contam como pornografia (veja-se Longino 1980 e MacKinnon 1984). Isto pode incluir alguns materiais que não são sexualmente explícitos e que comummente não seriam considerados pornografia: por exemplo, fotografias em obras de arte, na publicidade ou catálogos de moda que representam mulheres manietadas, acorrentadas ou com marcas de agressões de um modo que dá charme a essas coisas.

O termo “pornografia” é usado em todos estes modos diferentes no discurso e debate quotidiano, tal como nas discussões filosóficas: por vezes é usado para falar apenas dos materiais sexualmente explícitos; por vezes é usado para falar de materiais que são sexualmente explícitos e que são objectáveis de uma maneira qualquer específica; e assim por diante (para mais discussão, veja-se Rea 2001). Parece-me que não precisamos de escolher entre estas diferentes definições para que todas captem algo do uso quotidiano do termo. O que é crucialmente importante é que saibamos qual das definições estamos usando em cada caso. Pois o facto de o termo “pornografia” ter diferentes sentidos pode ter duas consequências muito infelizes caso as diferenças não sejam claramente explicitadas e tidas em mente: poderá fazer parecer que há desacordo quando não há; e poderá obscurecer a verdadeira natureza do desacordo quando há.

Eis um exemplo relevante de como isto poderá acontecer. Algumas feministas objectam à pornografia porque provoca dano às mulheres. Outras sustentam que a pornografia pode nem sempre ser danosa para as mulheres, podendo até por vezes ser benéfica. Parece que há aqui um desacordo genuíno. Mas haverá mesmo? Não necessariamente. Pois os dois lados podem querer dizer coisas diferentes com a palavra “pornografia”. Suponha-se que as feministas que objectam à pornografia a definem como materiais sexualmente explícitos que subordinam as mulheres. Assim, a pornografia, para elas, é um subconjunto dos materiais sexualmente explícitos que de facto provocam danos às mulheres. Esta definição transforma em verdade analítica a afirmação de que a pornografia, seja onde for que a encontremos, é má de um ponto de vista feminista. As feministas que defendem a pornografia, contudo, podem usar o termo para falar simplesmente de materiais sexualmente explícitos (independentemente de provocarem danos às mulheres). Consequentemente, pode não haver aqui qualquer discordância genuína. Pois ambos os lados poderiam concordar que os materiais sexualmente explícitos que são danosos para as mulheres são objectáveis. Poderiam também concordar que nada há de objectável acerca dos materiais sexualmente explícitos que não sejam danosos para as mulheres (ou seja para quem for). Se os protagonistas do debate usarem “pornografia” nestes sentidos diferentes, pode ser pura e simplesmente um diálogo de surdos.

Duas questões realmente substanciais no debate feminista acerca da pornografia são as seguintes:

  1. Serão alguns materiais sexualmente explícitos de facto danosos para as mulheres? E, caso o sejam, o que se pode fazer quanto a isso?
  2. Serão todos os materiais sexualmente explícitos de facto danosos para as mulheres? E, nesse caso, o que se deverá fazer quanto a isso?

(Podemos por isso formular duas das questões importantes, se quisermos, sem usar a palavra “pornografia”.) Se definirmos “pornografia” simplesmente como materiais sexualmente explícitos (independentemente de serem danosos para as mulheres ou não), então a primeira questão substancial tem de ser formulada deste modo:

alguma pornografia danosa para as mulheres? Se há, o que se pode fazer quanto a isso?

Contudo, se “pornografia” for definida como aqueles materiais sexualmente explícitos que subordinam as mulheres, então apesar de podermos levantar esta questão, temos de a formular de maneira diferente:

Se há materiais sexualmente explícitos que sejam pornográficos, quais são? E o que se poderá fazer quanto a qualquer pornografia que eventualmente exista?

Uma segunda questão substancial em causa no debate é se todos os materiais sexualmente explícitos, seja em princípio seja nas condições sociais actuais, são ou seriam danosos para as mulheres. Uma vez mais, deve-se fazer notar que podemos fazer esta pergunta usando qualquer uma das concepções de pornografia, mas teremos de a formular de maneiras diferentes. Se definirmos “pornografia” simplesmente como material sexualmente explícito (independentemente de ser danoso), a pergunta tem de ser formulada assim:

É toda a pornografia de facto danosa?

Por outro lado, se definirmos “pornografia” como materiais sexualmente explícitos danosos para as mulheres, temos de perguntar:

Serão todos os materiais sexualmente explícitos de facto pornográficos?

Esta são apenas variações terminológicas da mesma questão substancial; mas quando diferentes terminologias são usadas por diferentes participantes do debate as próprias questões em disputa, que na verdade são muito fáceis de formular, podem ficar obscurecidas.

2. O perfil do debate tradicional

2.1. Argumentos conservadores a favor da censura

Até há comparativamente pouco tempo a principal oposição à pornografia emanava dos conservadores morais e religiosos, que argumentavam que a pornografia deveria ser banida porque o seu conteúdo sexualmente explícito é obsceno e porque corrompe moralmente. Por “pornografia” os conservadores querem habitualmente dizer material sexualmente explícito (seja imagens seja palavras), pois os conservadores encaram tipicamente todo esse material como obsceno.

Segundo os conservadores, o conteúdo sexualmente explícito da pornografia é uma afronta aos valores decentes da família e da religião, e é profundamente ofensivo para uma porção significativa de cidadãos que os sustentam. O consumo de pornografia é mau para a sociedade. Enfraquece e desestabiliza o tecido moral de uma sociedade decente e estável ao encorajar a promiscuidade sexual, práticas sexualmente desviantes e outras atitudes e comportamentos que ameaçam a família tradicional e as instituições religiosas, e que os conservadores consideram intrinsecamente erradas, do ponto de vista moral. Além disso, a pornografia é má para quem a consome, corrompendo o seu carácter e impedindo-os de ter uma vida boa e compensadora em harmonia com os valores da família e da religião.

Segundo os conservadores, o estado tem justificação para usar o seu poder coercivo para manter e fazer valer as convicções morais de uma comunidade e para impedir os cidadãos de se entregarem a actividades que ofendem os padrões comunitários predominantes de moralidade e decência (veja-se Devlin 1968, Sandel 1984). Esta posição é por vezes apelidada de “moralismo jurídico”. Os governos têm também a responsabilidade de impedir os cidadãos de provocarem dano a si próprios. Isto mesmo que o cidadão não seja uma criança (que pode não ter ainda competência para fazer por si juízos responsáveis acerca do que é do seu melhor interesse), mas antes um adulto com maturidade que se entrega voluntariamente a uma actividade que considera desejável e que não causa dano a terceiros. A perspectiva de que o estado tem o direito de interferir na liberdade de adultos mentalmente competentes contra a sua vontade e para o seu próprio bem é muitas vezes denominada “paternalismo jurídico”.

Os conservadores pensam consequentemente que é inteiramente legítimo que o estado proíba adultos que o consentem de publicar e ver pornografia, mesmo que em privado, para proteger a saúde moral dos consumidores e da sociedade em geral (veja-se Baird e Rosenbaum 1991).

2.2. A defesa liberal tradicional do direito à pornografia

Os defensores liberais tradicionais da pornografia discordam, rejeitando tanto o princípio do moralismo jurídico como o do paternalismo jurídico, pelo menos no que diz respeito a adultos que o consentem. Isto não é dizer que os defensores liberais da pornografia a aprovam necessariamente. Na verdade, consideram-na frequentemente mentecapta e ofensiva — em especial a pornografia violenta e degradante. Muitos concedem que a pornografia — que entendem habitualmente como material sexualmente explícito cuja função principal é provocar excitação sexual na audiência — é discurso de “baixo valor”: discurso que pouco contribui de meritório intelectual, artística, literária ou politicamente para o ambiente moral e social, se é que contribui alguma coisa. Porém, isto não significa que não deva ser protegido — pelo contrário. Para os liberais, há um princípio vital que está em causa no debate sobre a pornografia e a censura. O princípio é que é imperativo que adultos mentalmente capazes não sejam impedidos de expressar as suas convicções, ou de se entregar aos seus gostos privados, simplesmente com base na ideia de que, na opinião de terceiros, essas convicções ou gostos estão equivocados, são ofensivos e sem valor. É imperativo que as maiorias morais não possam usar a lei para suprimir as opiniões divergentes minoritárias ou para impor as suas próprias convicções a terceiros. A atitude liberal aqui subjacente é muito bem captada no famoso adágio (muitas vezes atribuído ao filósofo francês Voltaire): “Não gosto do que dizes, mas defenderei até à morte o teu direito a dizê-lo”.1

Para os liberais, há uma fortíssima presunção a favor da liberdade individual, e contra a regulamentação estatal que interfira com ela. A única base que os liberais tipicamente consideram que fornece uma razão legítima a favor de restrições estatais à liberdade individual é para evitar o dano a terceiros. Assim, nos debates sobre a censura e sobre outras formas de regulamentação estatal que restrinjam a liberdade dos indivíduos contra a sua vontade, o ónus da prova está sempre firmemente em quem argumenta a favor da censura, tendo de demonstrar que o discurso ou conduta em questão causa danos significativos a terceiros. Tem de se mostrar que causa directamente violência física efectiva a terceiros (e.g., homicídio, violação, roubo, ameaça), num entendimento mais restrito de “dano”; ou que deliberada ou negligentemente viola interesses e direitos de terceiros que sejam suficientemente importantes, dada uma concepção mais lata de “dano”, baseada em interesses (para mais discussão acerca destas concepções diferentes de dano a terceiros veja-se, e.g., Dyzenhaus 1992, Feinberg 1987).

Os liberais defenderam tradicionalmente um direito à pornografia com base em três ideias principais. (Por “direito à pornografia”, aqui e nas passagens seguintes, tenho em mente o direito negativo de adultos que o consentem de não serem impedidos de fazer, publicar, exibir, distribuir e consumir pornografia em privado.) Primeiro, com base na liberdade discursiva ou de expressão, que protege a liberdade dos indivíduos (neste caso, dos pornógrafos) de exprimir as suas opiniões e de as comunicar, por mais que estejam equivocadas, sejam desagradáveis ou ofensivas para terceiros.2 Os liberais tendem a conceber a liberdade como negativa — não-interferência de terceiros —, incluindo a liberdade de expressão, e não como positiva, que envolve ter os bens e os meios positivos necessários ao exercício da liberdade.3 A liberdade é assim algo que os indivíduos têm desde que não existam obstáculos coercivos externos — nomeadamente, restrições físicas ou legais.

Poucos liberais hoje em dia pensam que o direito (negativo) à liberdade de expressão seja absoluto: uma liberdade que nunca possa ser legitimamente restringida pelo estado. Se o discurso causa suficiente dano considerável a terceiros, então o estado pode ter um interesse legítimo em regulamentá-lo ou impedi-lo. Não há uma fórmula geral simples ou algoritmo para determinar quando o dano causado a terceiros é “suficientemente considerável” para justificar restrições legais no caso do discurso ou mais em geral. Irá depender do resultado de um processo complexo de pesar e equilibrar cuidadosamente a força e a natureza do dano e os interesses rivais em causa, e uma análise dos custos e benefícios de políticas alternativas, que precisa de ser levada a cabo numa base casuística.

Contudo, com respeito à legislação que interfere com a liberdade de expressão, a presunção liberal contra a legislação é especialmente profunda. Pois os liberais consideram a liberdade de expressão um direito especialmente importante que tem precedência sobre a maior parte dos outros direitos e interesses (incluindo a igualdade) em caso de conflito. Níveis de dano que seriam normalmente suficientes para justificar a regulamentação da conduta que os causa podem não ser suficientes para justificar restrições em casos nos quais o dano é causado pelo discurso ou pela expressão. Assim, para os liberais, justificar a censura da pornografia exige a existência de provas muitíssimo dignas de confiança que mostrem que a publicação ou o consumo privado voluntário de pornografia por parte de adultos que o consentem causa um dano especialmente profundo e sério a terceiros. O dano causado pela expressão tem de ser inequívoco e muito profundo para que seja legítimo que o estado o proíba. Só teríamos justificação para banir um certo tipo de pornografia (e.g., imagens de dominação) quando tivéssemos muita certeza de que, em média, os casos particulares desse tipo (i.e., a maior parte das imagens particulares de dominação) causam muito dano.

Em segundo lugar, os liberais têm defendido um direito à pornografia com base no direito à privacidade (ou “independência moral”, como um defensor destacado da pornografia lhe chama), que protege uma esfera de actividade privada na qual os indivíduos podem explorar os seus próprios gostos e convicções, a eles se entregando, sem a ameaça da pressão coerciva ou da interferência do estado. O espectro da interferência do estado nas vidas privadas dos indivíduos subjaz a grande parte do desconforto liberal com a censura da pornografia.

Como no caso do direito à liberdade de expressão, o compromisso liberal com a privacidade não é absoluto. Pode ser anulado se as actividades privadas dos indivíduos causarem dano significativo a terceiros. Assim, se houver provas confiáveis que sugiram que o consumo voluntário e privado da pornografia causa danos suficientemente profundos a terceiros, então — desde que seja suficientemente profundo e que as proibições do estado sejam a única maneira eficaz de impedi-lo — o estado teria um interesse legítimo em proibi-lo.

Porém — e este é o terceiro aspecto da defesa liberal tradicional — a pornografia é comparativamente inócua. Nem a expressão de opiniões pornográficas nem a entrega a um gosto privado pela pornografia causa dano significativo a terceiros, no sentido relevante de “dano” (i.e., crimes de violência física ou outras violações dolosas e significativas de direitos). Assim, a publicação e consumo privados de pornografia não é da conta do estado.

2.2.1. O “princípio do dano”: quando tem o estado justificação para restringir a liberdade individual?

Estes três ingredientes centrais da defesa liberal da pornografia encontram a sua expressão clássica numa passagem famosa e influente do Sobre a Liberdade (1859), de John Stuart Mill. Nesta passagem, Mill estabelece os princípios que subjazem à perspectiva liberal prevalecente acerca de quando tem o estado justificação para interferir coercivamente na liberdade dos cidadãos. É um princípio que continua a constituir o enquadramento liberal dominante para o debate acerca da pornografia e da censura. Escreve Mill:

O único princípio com base no qual o poder pode ser correctamente exercido sobre qualquer membro de uma comunidade civilizada, contra a sua vontade, é a prevenção do dano a terceiros. O seu próprio bem, físico ou moral, não é uma razão suficiente. Ele não pode correctamente ser obrigado a fazer ou não fazer porque será melhor para si, porque o fará mais feliz, porque na opinião de terceiros fazê-lo seria sábio ou até correcto. Estas são boas razões para lhe apresentar o nosso protesto enérgico, para discutir com ele, para o persuadir, para o cativar, mas não para o obrigar, nem para lhe provocar qualquer mal caso ele faça o contrário. Para o justificar, a conduta de que se deseja afastá-lo tem de ser concebida para provocar mal a terceiros. A única parte da conduta seja de quem for pela qual essa pessoa é responsável perante a sociedade é a que diz respeito a terceiros. Na parte que só a ela diz respeito a sua independência é, por direito, absoluta. (Mill 1975: 15)

A tese central de Mill é que a sociedade tem justificação para interferir na liberdade de adultos mentalmente competentes para dizer e fazer o que desejam quando a sua conduta irá causar dano a terceiros. Isto ficou conhecido como “princípio da liberdade” ou “princípio do dano”; e constitui o cerne da defesa tradicional liberal da liberdade individual. Protege a liberdade de todos os indivíduos na posse das suas faculdades mentais para viver e configurar as suas vidas segundo as suas próprias preferências e crenças, desde que não provoquem dano a terceiros.

Mill sublinha que o princípio do dano é para aplicar “apenas aos seres humanos na maturidade das suas faculdades” (Mill 1975: 15). Assim, o princípio permite a intervenção paternalista no caso de quem não é competente para tomar uma decisão informada acerca do seu melhor interesse, e que por isso “tem de ser protegido das suas próprias acções e do prejuízo externo”: por exemplo, crianças e aqueles adultos cujas capacidades de decisão ficaram temporária ou permanentemente danificadas.

Pensa-se geralmente que se segue que a pornografia infantil, entendida como algo que envolve abuso sexual efectivo das crianças, ou a sua exploração sexual (com ou sem o seu consentimento aparente), pode legitimamente ser banida para proteger os interesses das crianças, que não têm ainda competência completa para compreender a natureza das suas escolhas nem de apreender o impacto das suas decisões nos seus interesses presentes e futuros. (Isto não é inteiramente incontroverso, contudo: pois pode-se negar que as crianças sejam prejudicadas quando participam na pornografia. A Associação Norte-Americana Amor Homem Rapaz (NAMBLA, em inglês), por exemplo, nega que fazer sexo com adultos seja prejudicial às crianças.) Pela mesma razão, os liberais pensam que as crianças podem correctamente ser impedidas pelos pais ou pelo estado de comprar ou ver pornografia, caso se considere provável que isto as prejudica. Que a pornografia infantil deve ser banida é o que os liberais e conservadores têm em comum. Contudo, a pornografia que envolve o abuso simulado de crianças (por exemplo, actrizes adultas que o consentem e se vestem como estudantes menores) não pode ser legitimamente proibido recorrendo ao princípio do dano, a menos que tenhamos boas provas que sugiram que o consumo deste material causa dano significativo a terceiros que não o que o consomem: fazendo-os, por exemplo, violar crianças.

Estamos agora em melhor posição para ver o que seria preciso para que os liberais pensassem que se justifica a censura da pornografia e por que razão os liberais têm sido tão pouco receptivos ao género de argumento contra a pornografia que os conservadores usam. Estes desejam impedir adultos na plena posse das suas faculdades de publicar e consumir pornografia com base na ideia de que escolher consumir pornografia é muitíssimo inapropriado moralmente. Porém, como Mill insiste, isto “não é uma razão suficiente” para a interferência coerciva na liberdade individual. Nem o estado nem as maiorias morais têm o direito de restringir as escolhas e actividades privadas dos indivíduos contra as suas vontades simplesmente porque, na opinião dos funcionários do estado ou da maioria social, essa forma de vida não tem valor nem é compensadora. Mill pensa que este género de moralismo jurídico conduzirá inevitavelmente a uma terrível “tirania da maioria”, esmagando a diversidade individual e impedindo o progresso e florescimento humanos.

Contudo, na peugada de Mill, os liberais aceitam geralmente que, tendo em consideração o indivíduo ou o bem comum, o estado pode ter o direito de usar outros meios, denominados não coercivos, para persuadir os cidadão a fazer escolhas mais sábias ou melhores. Assim, pode haver justificação para fazer campanhas públicas de educação concebidas para informar os cidadãos dos perigos de fumar ou do excesso de consumo de álcool, ou para persuadi-los a fazer escolhas “sábias” (por exemplo, comer mais frutas e vegetais). Apesar de ninguém poder obrigar um indivíduo a fazer algo (ou a não o fazer) quando não causa dano a terceiros, é inteiramente legítimo tentar aconselhá-lo, instruí-lo ou persuadi-lo. Assim, se há razões para pensar que a pornografia não é boa para o indivíduo que a consome (por exemplo, porque torna menos provável que seja capaz de ter relações amorosas ou de longa duração bem-sucedidas), as campanhas públicas de educação para avisar os consumidores destes perigos podem ter justificação. Na verdade é esta precisamente — educação e debate — a solução que os liberais tipicamente recomendam para contrariar quaisquer danos que a pornografia possa causar (veja-se, e.g., Feinberg 1985, Donnerstein et al. 1987, Dworkin 1985). Esta solução respeita a liberdade dos agentes racionais para exercer as suas próprias capacidades racionais ao decidir o que pensar e como viver.

Contudo, os liberais insistem que se quaisquer tentativas de persuasão fracassarem, e desde que a conduta de um indivíduo não represente qualquer ameaça significativa à segurança física de terceiros e aos seus interesses, o estado não pode usar os seus mecanismos coercivos legais para impor estas escolhas “sábias”. “A única liberdade que merece esse nome é a de procurar o nosso próprio bem à nossa maneira, desde que não tentemos privar terceiros da deles, nem obstruir os seus esforços de a alcançar” (Mill 1975: 18). Para Mill, a pessoa individual está na melhor posição para ajuizar o que é do seu melhor interesse; e, ainda que os indivíduos possam por vezes fazer escolhas más, é em geral melhor que tenham liberdade para cometer esses erros. Pois nenhuma opinião acerca da vida boa é infalível; e, em qualquer caso, uma vida vivida “a partir do interior”, segundo valores que o indivíduo subscreve, é mais provável que seja fonte de realização do que uma vida na qual o indivíduo é forçado contra a sua vontade a viver como os outros acham melhor.

Numa defesa influente da defesa liberal da pornografia, Ronald Dworkin expressa este compromisso em termos de um direito à “independência moral”. As pessoas, afirma,

têm o direito de não sofrer desvantagem na distribuição de bens sociais e oportunidades, incluindo desvantagens nas liberdades que lhes são permitidas pelo código criminal, unicamente com base no facto de os funcionários do estado ou os seus concidadãos acharem que as suas opiniões acerca da melhor maneira de viverem as suas vidas são ignóbeis ou erradas. (Dworkin 1985: 353.)

O facto, se o for, de a maioria das pessoas numa sociedade preferirem banir a pornografia porque a consideram imoral ou ofensiva não é uma razão legítima para interferir na liberdade de expressão (dos pornógrafos) nem para impedir adultos que o consentem de a consumir em privado. Pois permitir que tais preferências “externas” ilegítimas da maioria ditem as políticas do governo violaria o direito à independência moral dos produtores e consumidores de pornografia. Daria às maiorias morais o poder de ditar como os membros de grupos minoritários ou alternativos podem viver com base nas opiniões da maioria acerca do género de pessoas têm mais valor e que géneros de vidas valem a pena, e isto viola o direito básico de todos os indivíduos a serem tratados com igual cuidado e respeito.

2.2.2. Pornografia e ofensa: a justificação de restrições à exibição pública de pornografia

Contudo, pensa Dworkin, a ofensa pode fornecer alguma justificação para impedir ou restringir a exibição pública de pornografia com o objectivo de evitar que cause ofensa a adultos que não o consentem e que poderiam presenciá-la involuntariamente. Joel Feinberg, outro conhecido defensor liberal da pornografia, concorda. Porém, Feinberg pensa que tais restrições têm de ser justificadas com um princípio diferente que não o do dano, pois considera que certos géneros de estados psicologicamente desagradáveis não são em si danos. Feinberg chama-lhe princípio da ofensa. Este princípio diz que

É sempre uma boa razão, em defesa de uma proibição criminal, que esta seria provavelmente uma maneira eficaz de evitar ofensa séria (e não prejuízo ou dano) a pessoas que não o agente, e que é provavelmente um meio necessário para esse fim (i.e., não há provavelmente outros meios que sejam igualmente eficazes sem pôr em causa outros valores). (Feinberg 1999: 78. Para uma discussão mais pormenorizada veja-se Feinberg 1985.)

Como Dworkin, Feinberg pensa que o consumo privado voluntário de pornografia não causa dano a terceiros. Assim, as proibições criminais irrestritas da publicação e consumo privado voluntário da pornografia não têm justificação. Porém, a exibição pública da pornografia pode apesar disso constituir uma “maçada ofensiva” para adultos que não o consentem e que involuntariamente a vêem (tal como vizinhos que põem música má muito alta pela manhã, bem cedo, pode ser uma “maçada ofensiva”). Dado que o dano — ou antes, pseudodano — da pornografia é a ofensa que pode causar a quem a vê sem querer, a solução é restringir a exibição a domínios onde essa exposição involuntária não possa ocorrer, como o interior de livrarias de adultos bem sinalizadas e cinemas onde quem se sentiria ofendido não se aventura (veja-se Feinberg 1983: 105–13). Apesar de isto poder impedir os pornógrafos de distribuir as suas opiniões tão amplamente quanto poderiam desejar, e poder também causar algumas inconveniências menores a consumidores (que podem ter de se deslocar mais para encontrar e ver pornografia, ou de sofrer o embaraço de terem de entrar furtivamente em livrarias conhecidas de adultos), estes custos podem ser relativamente pequenos comparados com o nível de ofensa que a exposição involuntária provavelmente causa. Tais restrições à exibição pública de pornografia não seriam censura, pois os pornógrafos continuam a ter a liberdade de publicar e distribuir as suas opiniões. Nem violaria o direito dos consumidores à privacidade, pois a pornografia estaria livremente disponível para os consumidores que desejassem vê-la em privado. O Relatório do Comité Williams acerca da Obscenidade e da Censura Cinematográfica na Inglaterra fez uma recomendação semelhante, fazendo notar considerações gerais de decência pública que evitam a exibição pública “ofensiva” de condutas (e.g., nudez ou relações sexuais) que é apropriado ver ou fazer em privado. Susan Wendell concorda também que a exibição pública de certos géneros de pornografia — material visual, áudio e escrito que descreve e sanciona a coerção física das mulheres ou de outros seres humanos — deve ser proibida, apesar de a sua preocupação ser eliminar a ansiedade que a exposição involuntária a esse material coercivo provavelmente causa nas mulheres e o dano que é provável que provoque na sua auto-estima (Wendell 1983).

Os defensores liberais do direito à pornografia podem assim concordar que as restrições à sua exibição pública pode ter justificação. Porém, só no caso de se conseguir mostrar de maneira confiável que a pornografia causa dano significativo às pessoas que não a consomem voluntariamente é que haverá uma base legítima para proibir o seu consumo voluntário e privado. Quando as actividades privadas de um indivíduo causam dano a terceiros deixam de ser apenas uma questão privada, ganhando um interesse público legítimo; e o estado pode ter justificação para regulamentá-las. Assim, afirma Dworkin, caso se mostrasse que o consumo excessivo de pornografia causa o absentismo no trabalho, o público e o estado poderiam ter um interesse legítimo em impedi-lo. Porém, pensa Dworkin, não há até agora provas confiáveis que estabeleçam firmemente que a produção voluntária privada ou o consumo de pornografia por adultos que o consentem causa tal coisa ou outro dano significativo a terceiros, no sentido relevante de “dano”. Consequentemente, a pornografia satisfaz preferências pessoais inócuas quanto à gratificação sexual; e consequentemente o estado nada tem a ver com isso.

2.2.3. Os perigos da censura

Os liberais têm preocupações técnicas acerca de como as leis da censura poderiam funcionar na prática. Muitas objecções liberais (e feministas) à censura da pornografia fazem notar os custos práticos e os perigos da censura, argumentando que mesmo que a pornografia cause realmente algum dano a terceiros, os riscos da censura são demasiado elevados. Fazem notar as dificuldades em formular uma definição jurídica de “pornografia” que seja suficientemente precisa para minimizar o perigo de as leis da censura que a têm em mente sejam usadas (intencionalmente ou não) para censurar outros materiais impopulares, incluindo valiosas obras literárias, artísticas e políticas. Censurar a pornografia pode ser assim uma “bola de neve” que conduzirá à censura de outros materiais; e pode ter o efeito de policiar a expressão de ideias, fazendo as pessoas hesitar em dizer ou publicar coisas que possam ser consideradas pornografia e devido às quais poderiam ser levadas a tribunal (para mais discussão veja-se Williams 1981, Schauer 1982, Easton, 1994).

Estes perigos são sérios; e têm de ser cuidadosamente tidos em conta ao pesar os custos e benefícios da censura como solução para qualquer mal que a pornografia possa causar. Porém, vale a pena fazer notar que não inerentes a muitas formas de legislação, e nem sempre se considera que são insolúveis ou que constituem em si uma razão decisiva contra a censura.

3. Dissidência liberal recente

Apesar de os defensores tradicionais do direito à pornografia terem sido liberais, é importante fazer notar que nem todos os liberais contemporâneos o defendem. Na verdade, a questão de haver ou não boas bases liberais para proibir ou de algum modo regulamentar o consumo privado voluntário de (alguma) pornografia tornou-se o tema de um debate cada vez mais intenso e vivo. Inspirados por alguns argumentos feministas recentes contra a pornografia, alguns académicos defendem que o compromisso liberal com a protecção da autonomia individual, da igualdade, da liberdade de expressão e de outros valores liberais importantes pode de facto sustentar uma política que proíba certos tipos de pornografia, e não a atitude permissiva que os liberais tradicionalmente favoreceram (veja-se, e.g., Dyzenhaus 1992, Easton 1994: 42–51, Langton 1990, Okin 1987, West 2003). Estes teorizadores não rejeitam normalmente o princípio do dano, entendido nos seus traços gerais: concordam tipicamente que a questão crucial para determinar se a censura da pornografia tem justificação é haver ou não provas confiáveis que mostrem que publicar ou ver pornografia por parte de adultos que o consentem causa danos suficientemente graves aos interesses significativos de terceiros. Ao invés, estão abertos à legitimidade da censura porque pensam que a produção e consumo de certos géneros de materiais sexualmente explícitos — em particular, pornografia violenta e não violenta mas degradante — pode de facto causar dano suficientemente significativo a terceiros, em particular às mulheres.

Estes teorizadores acompanham muitas vezes os investigadores em ciências sociais que introduzem distinções mais subtis na categoria geral da pornografia (i.e., os materiais sexualmente explícitos cuja função principal é provocar excitação sexual na audiência). Distinguem muitas vezes entre os seguintes tipos de pornografia:

  1. Violenta;
  2. Não violenta mas degradante;
  3. Não violenta e não degradante

Fazem-no porque há algumas provas que sugerem que alguns destes materiais (e.g., das categorias 1 e 2) podem provocar danos que outros (e.g., da categoria 3) não provocam. Farei daqui a um pouco um sumário de algumas destas provas importantes.

Um aspecto importante do desacordo entre aqueles liberais que defendem o direito à pornografia e os que pensam que os liberais deveriam acolher a legitimidade da censura é empírica: discordam quanto à questão empírica crucial de haver ou não provas confiáveis que mostrem que a produção e consumo de pornografia por parte de adultos que o consentem causa de facto dano a terceiros, em particular às mulheres. Porém, discordam também frequentemente quanto a algumas questões conceptuais importantes. Em particular, podem discordar (ainda que apenas implicitamente) quanto ao modo como devemos entender três elementos centrais do princípio do dano:

  1. O que conta exactamente como “dano” a terceiros, no sentido relevante?
  2. Quando podemos dizer que algo é uma “causa”, ou uma causa suficientemente “directa”, de um dano?
  3. Que danos a terceiros são “suficientemente graves” para justificar sanções coercivas contra o discurso ou a conduta que o provoca?

Por outras palavras, os liberais discordam quanto à maneira de interpretar e aplicar o princípio do dano.

Muitos defendem que as concepções liberais mais tradicionais dos interesses ou direitos dos indivíduos, e consequentemente das actividades que podem causar-lhes dano, é demasiado restritiva. Ignora que as ameaças aos interesses dos indivíduos podem vir não apenas do estado mas também de outras práticas e circunstâncias sociais (e.g., desvantagem socioeconómica substancial) que com igual eficácia podem impedir o exercício significativo da liberdade. O estado pode assim ter um papel legítimo a desempenhar na promoção de condições sociais que permitam aos indivíduos exercer significativamente os seus direitos e na regulamentação das actividades de agentes ou grupos não governamentais que possam servir para infringi-los significativamente.

4. Abordagens feministas

4.1. Argumentos feministas contra a pornografia

Segundo as feministas antipornografia, a pornografia não é um entretenimento inócuo nem uma fantasia catártica e terapêutica. Além disso, o dano que causa não é meramente uma “ofensa”. Ao contrário dos conservadores morais, que objectam à pornografia com base na obscenidade do seu conteúdo sexualmente explícito e no efeito corrosivo que tem para o modo de vida conservador, o ponto principal da objecção feminista à pornografia é o papel crucial que consideram que desempenha na exploração e opressão das mulheres (veja-se, e.g., Lederer 1980, Itzin 1992, MacKinnon 1984, 1987, 1995).

Esta preocupação reflecte-se no modo bastante diferente como estas feministas tendem a definir “pornografia”. Como vimos, os conservadores definem esta palavra tipicamente como tudo o que inclui qualquer material sexualmente explícito. Esta definição reflecte o facto de os conservadores objectarem ao conteúdo sexualmente explícito da pornografia, que é obsceno ou que invoca “interesses lascivos”. As feministas antipornografia, contudo, não objectam ao conteúdo sexualmente explícito da pornografia per se. Tipicamente, introduzem uma distinção mais subtil no seio da classe de materiais sexualmente explícitos, entre “pornografia”, por um lado, e “erótico”, por outro. “Erótico” é geralmente definido como material sexualmente explícito que parte da igualdade, descrevendo as mulheres como participantes genuinamente iguais de encontros sexuais e que os consentem. A “pornografia”, em contraste, é tipicamente definida como aquele subconjunto de materiais sexualmente explícitos que representam mulheres sob coacção, vítimas de abuso, dominadas ou degradadas, e que as representam de uma maneira que subscreve a sua subordinação. Ao contrário dos conservadores, as feministas antipornografia não objectam aos materiais que sejam apenas sexualmente explícitos, i.e., eróticos. Pois os materiais sexualmente explícitos deste género não provocam dano às mulheres. A objecção é à pornografia: esse subconjunto de materiais sexualmente explícitos que subordinam as mulheres.

Em 1983, duas das mais proeminentes feministas antipornografia nos EUA, Catharine MacKinnon e Andrea Dworkin, elaboraram um regulamento antipornográfico em nome do município de Mineápolis. Um regulamento semelhante foi aprovado pelo município da cidade de Indianápolis em 1984, mas foi mais tarde abolido num apelo ao Supremo Tribunal dos EUA, com base no facto de o regulamento violar o direito dos pornógrafos à liberdade de expressão, consagrado na Primeira Emenda. É importante fazer notar que o regulamento não tentava impor proibições ou sanções criminais à pornografia: não tentava tornar a produção, venda ou consumo da pornografia um crime, punível com prisão (como, por exemplo, a produção, venda e consumo de heroína). MacKinnon e Dworkin pensavam que criminalizar a produção, publicação e consumo de pornografia seria contraproducente, empurrando a indústria para o submundo, obscurecendo assim ainda mais o dano que causa às mulheres. Ao invés, o regulamento procurava soluções civis que permitissem às mulheres que sofressem dano ao fazer pornografia, ou em resultado do seu consumo, pedir aos tribunais que bloqueassem quaisquer materiais sexualmente explícitos que se demonstrasse que são danosos, ficando os pornógrafos obrigados a pagar-lhes por quaisquer danos que se provasse terem resultado de tais materiais. Há espaço para discutir se a legislação proposta seria equivalente a censura, estritamente falando, dado que não procurava bloquear previamente a publicação de materiais pornográficos. Porém, na medida em que a legislação permitia aos tribunais aceitar e efectivar interdições à publicação de materiais demonstravelmente danosos, muitos pensam que a legislação poderia ser na prática funcionalmente equivalente à censura (pressupondo que os tribunais estariam de facto dispostos a aceitar e efectivar essas interdições).

O regulamento foi objecto de um debate intenso entre as feministas, muitas das quais tinham dúvidas quanto à centralidade do papel da pornografia na subordinação das mulheres e quanto à desejabilidade de usar estratégias de regulamentação jurídica para alcançar fins feministas (veja-se, e.g., Hunter e Law 1985, Lacey 1998: 71–97, Cornell 2000). Porém, o regulamento foi significativo, no mínimo porque reformulou a questão da pornografia em termos feministas na arena pública: não como uma questão acerca da obscenidade ou da indecência pública, tal como tendia até aí a ser vista em contextos legais e políticos sob a influência dos conservadores morais, mas como uma questão acerca dos direitos civis das mulheres. Forneceu também uma definição de pornografia que tem desde então figurado com proeminência nas discussões feministas. O regulamento definia “pornografia” como uma violação de direitos civis, como uma prática sistemática de discriminação sexual que viola os direitos das mulheres à igualdade:

Definimos a pornografia como a subordinação gráfica e sexualmente explícita das mulheres por meio de imagens e palavras que também incluem 1) mulheres apresentadas como objectos sexuais desumanizados, coisas ou mercadorias; 2) mulheres apresentadas como objectos sexuais que gostam de ser humilhadas e de sofrer dor; 3) mulheres apresentadas como objectos sexuais que têm prazer sexual ao serem violadas, vítimas de incesto ou de outras violações sexuais; ou 4) mulheres que são apresentadas como objectos sexuais, manietadas, cortadas ou mutiladas ou feridas fisicamente; ou 5) mulheres que são apresentadas em posturas e posições de submissão sexual, servis e exibicionistas; ou 6) partes de corpos femininos — incluindo, inter alia, vaginas, mamas e nádegas — são exibidos reduzindo as mulheres a essas partes; ou 7) mulheres sendo penetradas por objectos ou animais; ou 8) mulheres apresentadas em cenários de degradação, humilhação, lesões, tortura, representadas como sujas ou inferiores, sangrando, com marcas de violência ou feridas num contexto que sexualiza estas condições. (MacKinnon 1987:176.)

Dworkin e MacKinnon aceitam que os materiais sexualmente explícitos que tratam os homens, crianças ou transexuais de maneiras que os desumanizam e subordinam contam também como pornografia.

A definição de Dworkin-MacKinnon tem duas partes ou estádios. A primeira define “pornografia” de maneira alargada, em termos de um certo papel funcional ou, como MacKinnon se exprime, em termos de “o que faz”: define “pornografia” como aqueles materiais sexualmente explícitos, sejam eles quais forem, que subordinam as mulheres.4 A segunda parte da definição, a lista 1–8, especifica os géneros de materiais sexualmente explícitos que MacKinnon e Dworkin consideram que de facto funciona para subordinar as mulheres, o que é revelado pelas provas testemunhais, experimentais, sociais e clínicas. A lista visa ser suficientemente precisa para minimizar a probabilidade de a legislação contra a pornografia, definida deste modo, ameaçar outras formas de discurso — apesar de muitas feministas “autocensura”, juntamente com os tradicionais defensores liberais da pornografia, não estarem convencidos de que seja bem-sucedida nesse intento (veja-se, e.g., Hunter e Law 1985, R. Dworkin 1993).

Chamo a atenção para os dois estágios da definição para reforçar um aspecto que fiz notar na secção 1: que se pode concordar com Dworkin e MacKinnon que a pornografia, definida em termos puramente funcionais ou conceptuais como materiais sexualmente explícitos que subordinam as mulheres, seria uma coisa má; e contudo discordar que os materiais com as características que elas depois especificam as subordine de facto. (Penso que isto poderia ajudar a moderar alguns debates frequentemente azedos em círculos feministas acerca da tese agora famosa de MacKinnon de que não se pode ser genuinamente feminista e ser favorável à pornografia (ou pelo menos não ser desfavorável). Pois é claro que as feministas se opõem a seja o que for que as subordina ou oprime. Contudo, há certamente espaço para uma discordância razoável sobre se os materiais sexualmente explícitos o fazem, e quais, e se a regulamentação jurídica é uma estratégia feminista desejável.)

Os danos que mais preocupam as feministas antipornografia pertencem a duas grandes categorias:

  1. Coerção e exploração das actrizes na produção da pornografia;
  2. Danos causados às mulheres, quer como indivíduos quer como grupo, em resultado do consumo da pornografia.

Um exemplo particularmente gráfico do primeiro género de dano é documentado no livro Ordeal, de Linda Marchiano, que participou com o nome artístico “Linda Lovelace” no famoso filme pornográfico “Deep Throat” (Garganta Funda) (veja-se Lovelace 1980). Em Ordeal, Marchiano conta como foi raptada, hipnotizada, drogada, espancada e torturada para actuar no filme. Marchiano foi uma de várias mulheres que prestaram testemunho acerca das suas experiências do dano causado pela pornografia nas audiências de Mineápolis acerca da pornografia em 1983 (a transcrição das audiências foi publicada com o título Pornography and Sexual Violence: Evidence of the Links 1988). O caso de Marchiano é um exemplo particularmente horrível e extremo de como as mulheres podem sofrer dano ao fazer pornografia; e muito do que lhe foi feito (rapto, espancamentos e tortura) são em si crimes. Muitas pessoas, tanto liberais como feministas, pensam que tendo em conta que estas agressões físicas não devem ser permitidas, a representação pornográfica persistente destes crimes que cause mais dano ainda aos interesses das vítimas não deve ser também permitida nem consumida (veja-se, e.g., MacKinnon 1987, Wendell 1983).

Claro que nem todas as mulheres que actuam na pornografia são literalmente obrigadas fisicamente como acontece no caso paradigmático das escravas sexuais, e como Marchiano o foi. Contudo, muitas feministas antipornografia consideram que há um sentido importante em que “escolher” participar numa produção pornográfica pode não ser genuinamente livre para muitas das mulheres, que muitas vezes são de origem socioeconómica desfavorecida e que têm poucas opções alternativas para fazer a sua vida. Nestas circunstâncias, poderá haver um sentido importante em que a escolha para fazer pornografia é “coagida”, na medida em que as mulheres não teriam feito essa escolha caso tivessem outras opções razoáveis à sua disposição. A indústria pornográfica pode aproveitar-se iniquamente das mulheres desfavorecidas, aproveitando-se das suas vulnerabilidades psíquicas e económicas, para obter às suas custas lucros imensos. MacKinnon põe a questão graficamente: a pornografia é uma instituição pública de escravatura sexual, tráfico de mulheres e crianças vulneráveis, que lucra com a sua subordinação e subjugação.

Algumas das mulheres que actuam na pornografia rejeitam vigorosamente que sejam exploradas. Pelo menos no seu caso, defendem, a decisão de se tornar uma estrela pornográfica foi genuinamente autónoma (veja-se Gruen e Panichas 1997). Consideram a tese de que são vítimas de exploração ofensivamente condescendente e paternalista, sugerindo que a pornografia não é uma carreira de valor, e representando as mulheres que nela trabalham como vítimas desgraçadas do patriarcado. Na realidade, as actrizes pornográficas podem ser cidadãs plenamente autónomas e inteligentes que pela sua própria escolha se dedicam a uma carreira perfeitamente válida e compensadora. Banir a pornografia, defendem, seria uma interferência paternalista injustificada no seu direito a dedicar-se à carreira que escolheram. Claro que do facto de a decisão de se dedicar a uma carreira na pornografia ser livre e compensadora para algumas mulheres não mostra que é necessariamente uma escolha livre e compensadora para todas as mulheres, ou até para a maioria, que trabalham na pornografia.

Mesmo que a indústria pornográfica explore realmente algumas das actrizes, contudo, há a questão de saber se isto justifica a proibição. Várias feministas e liberais fizeram notar, em resposta, que outras indústrias (como os supermercados ou as cadeias de comida rápida) podem igualmente aproveitar-se de trabalhadores que têm poucas oportunidades alternativas. Deveríamos banir também estas indústrias com base na exploração? Claro que não, pensam eles. A melhor solução a essa exploração não é banir a pornografia (ou as cadeias de comida rápida). Pois isto iria apenas tirar mais uma opção a quem já tem poucas, opção essa que podem preferir a outras das que têm à sua disposição. É melhor concentrar os nossos esforços em eliminar as condições económicas e materiais subjacentes que tornam a exploração possível, de modo que a escolha de trabalhar na pornografia possa ser genuinamente livre, sob condições mais completas de igualdade (veja-se, e.g., Dworkin 1993; Wendell, 1983).

Quanto ao segundo género de dano, as feministas antipornografia fazem notar vários danos provocados às mulheres que resultam do consumo da pornografia (para uma diversidade de análises veja-se A. Dworkin 1981, MacKinnon 1987, Jeffreys 1990, Kappeler 1986, Coward 1984, Smart 1989: cap. 6, Itzin 1998). Estes incluem, entre outros, o papel da pornografia como causa de crimes sexuais violentos. Algumas feministas no Reino Unido defenderam legislação antipornografia feita nos moldes das leis já existentes que visam impedir a violência racial: a pornografia é um discurso que incita à violência sexual, e a sua proibição justifica-se pela mesma razão que se proíbe o discurso racialmente incendiário, nomeadamente, para proteger a segurança física e a integridade somática dos indivíduos (veja-se, e.g., Itzin 1992).

Outros argumentos feministas centram-se ao invés, ou também, no papel mais geral que as representações pornográficas podem desempenhar no dano causado a outros interesses significativos das mulheres. Houve quem defendesse que a pornografia pode ser vista como um género de publicidade enganosa acerca das mulheres e da sexualidade, semelhante ao discurso difamador: discurso que difama as mulheres como grupo, provocando danos às suas reputações, credibilidade, oportunidades e expectativas económicas. Defendem que as mulheres como grupo têm direito a serem protegidas juridicamente (em termos civis) destes danos e a pedir compensações pelos danos que o discurso pornográfico possa demonstravelmente ter provocado (veja-se Longino 1980, Hill 1987, MacKinnon 1995: 3–28; para críticas veja-se Soble 1985). Esta é uma estratégia promissora para as feministas antipornografia porque muitos liberais já aceitam que os indivíduos têm direito a serem protegidos do discurso difamador.

Outras feministas centram-se no papel que a pornografia pode desempenhar na restrição da autonomia das mulheres, reproduzindo e reforçando uma percepção pública da natureza da mulher e da sexualidade que as impede de articular e explorar as suas próprias concepções de sexualidade e da vida boa (Easton 1994, Dyzenhaus 1992).

Outra linha de argumentação feminista baseia-se no proeminente filósofo liberal John Rawls para sugerir que a regulamentação da pornografia se justifica na medida em que indivíduos racionais e com interesse próprio não concordariam na posição original com instituições sociais básicas que “assimetricamente obrigassem ou dessem fortes incentivos aos membros de um sexo para se tornarem objectos sexuais dos membros do outro” (Okin 1987:68). Rae Langton (1990) tenta também usar os próprios compromissos teóricos dos liberais para apresentar uma defesa (liberal) da legitimidade da censura, apesar de o liberal aqui escolhido ser Ronald Dworkin. Langton tenta virar o feitiço do argumento de Dworkin contra o feiticeiro de uma maneira engenhosa, defendendo que uma aplicação sistemática dos próprios princípios de Dworkin sustentam efectivamente uma política que proíba a pornografia, e não a política permissiva que ele próprio favorece. Pois a preferência de consumir pornografia depende necessariamente de preferências externas quanto ao valor inferior das mulheres que violam o seu direito à independência moral. Além disso, os argumentos positivos para proibir a pornografia podem visar assegurar a igualdade social das mulheres. Se este é o objectivo, então, à luz do próprio Dworkin, os pornógrafos não teriam direitos contra uma política proibitiva.

Muitas destas preocupações surgem de algum modo a uma luz diferente num género significativo de argumentação baseada em direitos, associada mais fortemente a Catharine MacKinnon. Dado que esta abordagem foi alvo de bastante interesse e discussão entre liberais e feministas sobre a questão da pornografia, vale a pena examiná-lo mais em detalhe. Segundo MacKinnon, a pornografia provoca dano às mulheres de uma maneira muito especial: violando os seus direitos civis (MacKinnon 1984, 1987, 1992). Em particular, a pornografia subordina as mulheres ou viola o seu direito a um estatuto civil de igualdade; e silencia-as ou viola os seus direitos civis à liberdade de expressão.

A pornografia subordina as mulheres ao sexualizar a sua desigualdade. A pornografia expressa a perspectiva de que as mulheres existem sobretudo como objectos de gratificação sexual dos homens — que são escravas sexuais dos homens, e muitas vezes as suas escravas sexuais voluntárias — e propaga esta perspectiva condicionando os consumidores a encarar a subordinação das mulheres como uma característica sexy, natural e legítima das relações heterossexuais. A pornografia “sexualiza a violação, agressão, assédio sexual, prostituição e abuso sexual de crianças, e assim celebra, promove, autoriza e dá legitimidade a essas práticas” (MacKinnon 1987:171–72). Ao autorizar e dar legitimidade à sujeição das mulheres, a pornografia torna invisível o dano muito real da subordinação das mulheres: violação, assédio e outras formas de opressão passam a ser vistas simplesmente como sexo. “O dano da pornografia, em geral, é o dano da desigualdade civil dos sexos que se torna invisível como dano” (MacKinnon 1987: 178). A perspectiva das mulheres e da sexualidade que a pornografia ajuda a formar e perpetuar não se manifesta apenas nos crimes de violência sexual contra as mulheres, mas também na discriminação contra as mulheres em geral: no sistema jurídico, em políticas e no debate público, e nos locais de trabalho. A pornografia “institucionaliza a sexualidade da supremacia masculina […] Os homens tratam as mulheres da maneira como as vêem. A pornografia constrói quem elas são” (MacKinnon 1987:172). Ao condicionar os consumidores a ver e a tratar as mulheres como suas subordinadas sexuais, a pornografia enfraquece a capacidade das mulheres para participar como cidadãs iguais e plenas no domínio público, e também no privado.

Outra dimensão significativa desta desigualdade é que o discurso das mulheres, quando ocorre, carece da credibilidade, autoridade e influência do masculino. As mulheres como grupo são sistemática e distintamente silenciadas, pensa MacKinnon; e a pornografia contribui para isto pelo menos de três maneiras (MacKinnon 1987, 1995):

  1. A pornografia silencia as mulheres ajudando a dar forma e a reforçar um ambiente social hostil e nada compreensivo que faz as mulheres hesitar em falar. Assim, por exemplo, a violação, assédio sexual e outros crimes violentos são significativamente pouco denunciados pelas mulheres.
  2. A pornografia cria um clima social no qual, mesmo que as mulheres falem, dá-se frequentemente pouca atenção às suas opiniões — especialmente quando o que dizem contradiz a imagem das mulheres presente na pornografia. Assim, as mulheres que denunciam crimes sexuais são muitas vezes objecto de descrença, sendo ignoradas, ridicularizadas ou consideradas neuróticas. Nas palavras de MacKinnon, a pornografia “retira e destrói a credibilidade das mulheres, desconsiderando desde as nossas denúncias de agressões sexuais à nossa realidade quotidiana de subordinação sexual. É-nos retirada a autoridade e somos reduzidas e desvalorizadas e silenciadas” (MacKinnon 1992: 483–4).
  3. A pornografia pode silenciar as mulheres fazendo o seu discurso não ser compreendido, ou ser mal compreendido. Por exemplo, a pornografia pode ajudar a formar e a reforçar a perspectiva geral de que as mulheres que dizem “não” em contextos sexuais não têm frequentemente a intenção de recusar os avanços sexuais dos homens, e na verdade podem muitas vezes querer até encorajá-los. Num ambiente social no qual esta expectativa seja predominante as mulheres podem não ser capazes de comunicar adequadamente a ideia de recusa: apesar de proferirem os sons apropriados (e.g., “não”), estes nem sempre comunicam a ideia que elas querem expressar. A pornografia pode assim impedir as mulheres de comunicar as suas ideias não porque as impeça de produzir e distribuir sons e rabiscos mas porque impede que esses sons e rabiscos sejam entendidos como expressões da ideia que visavam exprimir (veja-se Langton 1993, Hornsby 1995, Hornsby e Langton 1998, Maitra 2009, McGowan 2003, West 2003; para respostas a Hornsby e Langton, veja-se Jacobsen 2001, Bird 2002). Se a pornografia silencia as mulheres deste modo, pode haver alguma razão para ser céptico quanto à eficácia da solução que muitos liberais (e feministas) elegem para contrariar os danos da pornografia: mais discurso (protesto, sátira, educação e debate público). Pois a pornografia pode tornar os actos discursivos relevantes “indizíveis” para as mulheres.

Assim, para MacKinnon, desejar a pornografia e a violência sexual não é um sintoma lateral ou um efeito secundário de outras condições materiais e sociais que estejam na raiz da posição subordinada das mulheres na sociedade, como algumas feministas tendem a pensar. Ao invés, é uma causa central da posição subordinada das mulheres na sociedade. Desde que haja pornografia, pensa MacKinnon, as mulheres permanecerão subordinadas e silenciadas.

Uma característica nova e estrategicamente engenhosa da argumentação de MacKinnon contra a pornografia (e que está na base de grande parte do debate e da atenção mais recente dada ao tema) é conceber o dano da pornografia como uma violação dos direitos civis das mulheres, sendo que a violência sexual contra as mulheres pode ser apenas uma das suas dimensões, ainda que significativa. A violação de direitos civis é um dano que a maioria dos liberais têm razões especiais para levar muito a sério. Pois apesar de alguns liberais entenderem a noção de “dano” a terceiros de maneira muito restrita, como algo que inclui apenas interferência física na integridade corporal de uma pessoa (e.g., homicídio, violência, tortura, rapto, violação e outras agressões físicas), a maior parte dos liberais hoje em dia tendem a aceitar uma interpretação ligeiramente mais alargada do princípio do dano. Nesta interpretação mais alargada, baseada em interesses ou direitos, é danoso qualquer discurso ou conduta que voluntária ou negligentemente interfira com interesses importantes ou direitos de terceiros. Nesta interpretação do princípio do dano, o estado tem o direito de fazer leis contra a conduta que deliberada ou negligentemente interfira nos direitos de terceiros, desde que esta violação seja suficientemente séria e que o dano causado não possa ser impedido de maneira eficaz por meio de outros meios menos drásticos (por exemplo, por meio da educação pública ou do debate). Claro que o modo como esta versão do princípio do dano se aplica depende crucialmente da natureza e importância relativa dos direitos que os indivíduos têm; e isto é o tema de grande parte do debate contemporâneo.

Alguns liberais aceitam que a pornografia pode contribuir para a subordinação das mulheres: se não porque provoquem crimes de violência sexual, pelo menos porque condicionam os consumidores a ver as mulheres como objectos sexuais, e não como indivíduos autónomos dignos de igual cuidado e respeito. Concedem que isto pode contribuir para a discriminação das mulheres na sociedade, e que pode impedir as mulheres de ter a mesma influência social e política que os homens em geral têm. Porém, defendem que este dano não é tão profundo que justifique a interferência na liberdade de expressão dos pornógrafos. O direito à liberdade de expressão é mais importante. Assim, se tivermos de escolher entre o direito à igualdade (das mulheres) e o direito à liberdade de expressão (dos pornógrafos), temos de escolher a liberdade de expressão.5 Porém, o argumento de MacKinnon, se for bem-sucedido, volta o feitiço destas defesas liberais da pornografia contra o feiticeiro: a pornografia não poderia continuar a ser defendida simplesmente com base na prioridade do direito à liberdade de expressão, pois permitir a pornografia viola também os direitos das mulheres à liberdade de expressão. Parece agora que temos um conflito de valores: não simplesmente entre o direito dos pornógrafos à liberdade de expressão e o direito das mulheres a um estatuto civil de igualdade, mas no próprio seio do direito à liberdade de expressão — entre o direito à liberdade de expressão dos pornógrafos e o direito das mulheres à liberdade de expressão. Por que haveria o direito dos pornógrafos à liberdade de expressão de ter precedência sobre o das mulheres? Voltarei aos debates acerca desta questão na próxima secção.

4.2. Argumentos feministas contra a regulamentação jurídica

Claro que nem todas as feministas objectam à pornografia, mesmo no sentido de MacKinnon (veja-se, e.g., Burstyn 1985, Chester e Dickey 1988, Cornell 2000, Hunter e Law 1985, Gruen e Panichas 1997). A questão da pornografia ou da censura dividiu as feministas, tal como começou a dividir os liberais. Algumas feministas defendem que a pornografia é uma forma importante de expressão sexual que não provoca dano às mulheres, e pode até beneficiá-las ao libertá-las a elas e à sua sexualidade dos grilhões opressivos da tradição e do conservadorismo sexual. A pornografia, deste ponto de vista, é um instrumento importante para explorar e exprimir formas novas ou minoritárias de sexualidade feminina. Longe de fazer das mulheres vítimas espezinhadas, a pornografia pode ter um papel vital a desempenhar na oposição às perspectivas tradicionais acerca da feminilidade e da sexualidade feminina, e na tarefa de dar poder às mulheres, tanto homossexuais como heterossexuais, para darem forma às suas próprias identidades como seres sexuais. (Note-se que os materiais que beneficiam as mulheres deveriam contar como eróticos, e não pornográficos, na definição de MacKinnon. Assim, como fizemos notar na secção 1, se há aqui uma discordância substancial entre as feministas “pró-pornografia” e MacKinnon, é acerca de haver ou não realmente alguns materiais sexualmente explícitos que sejam benéficos.)

Há também um número significativo de feministas que objectam à pornografia, ou a certas formas de pornografia, com base no dano provocado às mulheres, mas que não pensam que regulamentá-la ou bani-la seja a maneira mais eficaz de reparar os danos provocados pela pornografia. Estas feministas, apesar de nem sempre serem liberais, partilham apesar disso algumas preocupações liberais gerais quanto ao uso do instrumento “cego e traiçoeiro” da lei na missão de reparar os danos, especialmente à luz do modo como a lei tem frequentemente sido usada para oprimir as mulheres, ou onde as leis instituídas com a melhor das intenções tiveram contudo este efeito não intencionado. A censura, pensam, pode muito bem causar mais danos às mulheres do que os que elimina. Recomendam mais discurso — educação, protestos, manifestações, sátira e debate público — e não censura ou outras formas de regulamentação jurídica, porque são instrumentos menos perigosos e mais eficazes para consciencializar o público e conseguir ter o efeito desejado da mudança cultural e de atitudes. Estas feministas são contra a pornografia (no sentido em que consideram objectável quaisquer materiais que degradem as mulheres), mas são também contra a censura.

Na verdade, oitenta feministas, juntamente com o Grupo de Trabalho Feminista Contra a Censura (F.A.C.T., em inglês) e o Fundo de Defesa Jurídica das Mulheres, apresentaram uma síntese ao Supremo Tribunal apresentando várias preocupações feministas quanto à legislação antipornográfica proposta por MacKinnon e Dworkin (Hunter e Law 1985), incluindo:

5. O debate recente: liberais e feministas

Apesar dos esforços das feministas antipornografia, muitos defensores liberais tradicionais da pornografia não se deixaram convencer. Continuam tipicamente a sustentar que a pornografia não causa dano às mulheres (no sentido relevante, geralmente restrito, de “dano”), ou admitem que provavelmente causa algum dano aos interesses das mulheres, mas negam que seja suficientemente profundo para que tenha mais peso do que os perigos inerentes da censura, e que seja suficiente para justificar a violação dos direitos dos pornógrafos e dos consumidores.

5.1. A pornografia causa dano a terceiros? As provas empíricas

Os defensores liberais da pornografia admitem prontamente que, se houvesse provas confiáveis que mostrassem que o consumo de pornografia aumenta significativamente a incidência de crimes sexuais violentos, haveria uma base liberal muito forte para a proibir. Contudo, os defensores liberais da pornografia não pensam que há provas confiáveis que mostrem que a pornografia causa a violação ou outros crimes sexuais. Ronald Dworkin, por exemplo, escreve:

[…] apesar das afirmações fervorosas de Mackinnon, nenhum estudo reputado concluiu que a pornografia é uma causa significativa de crimes sexuais: muitos concluem, pelo contrário, que as causas da personalidade violenta remontam sobretudo à infância, antes de a exposição à pornografia poder ter tido qualquer efeito, e que o desejo de pornografia é um sintoma e não uma causa de desvios do comportamento. (Dworkin 1993: 38)

A questão de a pornografia causar ou não dano levanta dificuldades conceptuais intrincadas acerca da noção de causalidade, assim como dificuldades empíricas e metodológicas (veja-se Eaton 2007, Schauer 1987, e A Comissão do Procurador-Geral sobre a Pornografia 1986, excertos da qual foram impressos em Mappes e Zembaty 1997: 212–218). A conexão causal entre consumo de pornografia e o crime sexual violento, se existe, é improvável que seja simples. Como alguns liberais defenderam, parece implausível pensar que o consumo de pornografia, numa ou várias ocasiões, faça “pessoas normais e decentes” sem qualquer propensão para a violação “metamorfosear-se subitamente em violadores” (Feinberg, 1985:153, veja-se também o artigo Freedom of Speech). Contudo, poderíamos concordar com Feinberg e pensar apesar disso que a pornografia é uma causa da violação. O consumo de pornografia poderia causar a violação tornando mais provável que quem já tem alguma inclinação para a violação acabe violando efectivamente, aumentando assim a incidência geral de violações. Claro que a pornografia pode não ser a única causa da violação ou de outros crimes sexuais violentos. As causas que contribuem para a violência contra as mulheres são muito provavelmente inúmeras e estão conectadas entre si de maneira complexa: podem incluir, entre outras coisas, “valores machistas” (como Feinberg sugere) e certos géneros de acontecimentos e circunstâncias ocorridos na infância (como Dworkin afirma). Porém, o mero facto de poder haver outras causas de violência sexual contra as mulheres não mostra que o consumo de pornografia não possa também ser uma causa. O consumo de pornografia pode, por si, não ser necessário nem suficiente para o crime sexual violento (ou para atitudes e comportamentos sexistas mais em geral); contudo pode ainda ser uma causa do crime sexual violento e dos outros danos, se aumentar a sua incidência.

Pode ser esclarecedor considerar uma analogia com o tabaco. Fumar cigarros, por si, não é uma condição necessária nem suficiente para desenvolver o cancro do pulmão — dado que há pessoas que fumam como chaminés que nunca tiveram cancro no pulmão e têm vidas longas perfeitamente saudáveis, e dado que há pessoas que nunca fumaram um cigarro em toda a vida e que têm cancro no pulmão. Contudo, concorda-se geralmente hoje que fumar cigarros é uma causa do cancro. Isto porque fumar (em combinação com outros factores, como a genética, a dieta e o exercício) torna significativamente mais provável que uma pessoa fique com cancro no pulmão, pelo que os estudos sugerem. Analogamente, podemos pensar que o consumo de pornografia irá causar crimes sexuais violentos (ou atitudes e comportamentos sexistas mais em geral) se houver boas provas que sugiram que o consumo de pornografia aumenta a incidência de violência sexual ou de comportamento sexista, mantendo inalteradas outras causas conhecidas destes estados de coisas danosos.6

Entre os investigadores de ciências sociais e filósofos liberais e feministas há um desacordo considerável sobre se a pornografia é uma causa ou não do crime sexual violento (veja-se Donnerstein et al. 1987, Copp e Wendell 1983, Itzin 1992). Tanto o relatório final da Comissão da Obscenidade e Pornografia dos EUA em 1970 como o Relatório do Comité Williams da Obscenidade e Censura Cinematográfica no Reino Unido inspeccionaram os dados de estudos clínicos e experimentais disponíveis e não encontraram indícios de uma conexão causal entre a pornografia e a violação (apesar de a comissão de 1970 não ter revisto as provas respeitantes a materiais sexualmente violentos). Contudo, a Comissão do Procurador-Geral sobre a Pornografia nos EUA, que submeteu o seu relatório final em 1986, descobriu que a investigação clínica e experimental “praticamente por unanimidade” mostra que a exposição a materiais sexualmente violentos aumenta a probabilidade de agressão a mulheres; e que

as provas disponíveis sustentam fortemente a hipótese de a exposição substancial a materiais sexualmente violentos […] tenha uma relação causal com actos anti-sociais de violência sexual e, para alguns subgrupos, possivelmente com actos ilegais de violência sexual. (Mappes e Zembaty 1997: 215)

O relatório descobriu também que os materiais pornográficos não violentos mas degradantes produzem efeitos “similares, ainda que não tão profundos quanto os associados a materiais violentos”. Contudo, o relatório concluiu os que materiais não degradantes e não violentos (eróticos, nos termos feministas) “não tem qualquer relação causal com a violação nem com outros tipos de violência sexual”.

Uma metaanálise recente revelou uma associação positiva significativa entre o uso da pornografia e atitudes que aceitam a violência contra as mulheres, em contextos experimentais e não experimentais (Haid, Malamuth e Yuen 2010). Vários estudos encontraram uma correlação positiva entre a exposição a imagens pornográficas violentas (por exemplo, de violações, servidão, abuso com armas e mutilação) e reacções positivas à violação e outras formas de violência contra as mulheres. Os estudos sugerem, entre outras coisas, que a exposição à pornografia violenta pode aumentar significativamente a excitação sexual em resposta à representação de uma violação, que a exposição a filmes com violência sexual contra as mulheres pode actuar como um estímulo para agir agressivamente contra elas, e que a exposição prolongada a pornografia degradante (violenta ou não) conduz a mais indiferença perante as vítimas de violência sexual, mais aceitação de mitos quanto à violação (por exemplo, que as mulheres gostam de ser violadas e que não querem dizer “não” quando dizem “não”), uma maior probabilidade de albergar fantasias de violações, e uma maior probabilidade de afirmar que violaria mulheres ou as obrigaria a ter sexo indesejado se não tivesse hipótese de ser apanhado.

5.2. Liberais e feministas

As provas empíricas continuam a ser tema de debate e de investigação. Porém, na ausência de provas suficientemente conclusivas de que a pornografia causa crimes de violência sexual, muitos defensores liberais da pornografia continuam a considerar a censura injustificada.

Contudo, os argumentos feministas baseados nos direitos contra a pornografia não dependem inteiramente da tese de que o consumo de pornografia é uma causa significativa do crime sexual violento. A tese de que a pornografia contribui para a desigualdade das mulheres, e a tese de que viola os direitos das mulheres à liberdade de expressão, podem apoiar-se em afirmações empíricas mais moderadas acerca das quais é provável que encontremos mais concordância: por exemplo, a pornografia ajuda a formar e a reforçar a perspectiva de que as mulheres são objectos sexuais, o que se manifesta no modo como são vistas e tratadas na sociedade, o que por sua vez perpetua a sua desigualdade. Entre outras coisas, pode aumentar a probabilidade de assédio sexual e outras formas de discriminação contra as mulheres, enfraquecer a sua credibilidade em certos contextos, encorajar uma expectativa geral de que as mulheres que dizem “não” em contextos sexuais muitas vezes não querem recusar, e assim por diante.

Ronald Dworkin é um liberal proeminente que estudou explicitamente, e rejeitou, a versão de MacKinnon do argumento baseado em direitos a favor da legislação antipornografia. Não porque rejeite as teses empíricas moderadas, mas antes porque pensa que, ainda que sejam verdadeiras, não haveria um sentido legítimo no qual a publicação e consumo privado voluntário de pornografia violaria os direitos civis das mulheres.

Segundo Dworkin, o argumento a favor da legislação antipornografia com base na ideia de que a pornografia subordina as mulheres depende do “princípio assustador de que as considerações de igualdade exigem que algumas pessoas não tenham a liberdade de exprimir os seus gostos ou convicções ou preferências em todo o lado” (Dworkin 1993: 39). Aceitar este princípio teria “consequências devastadoras”: nomeadamente, que

o governo poderia proibir a expressão gráfica ou visceral ou emocionalmente carregada de qualquer opinião que pudesse razoavelmente ofender um grupo em situação de desvantagem. Poderia tornar ilegais execuções de O Mercador de Veneza, ou filmes sobre mulheres profissionais que negligenciam os filhos, ou caricaturas ou paródias de homossexuais em números cómicos de nightclub.

A preocupação de Dworkin é uma espécie de objecção da bola de neve que ele considera uma reductio da perspectiva de MacKinnon. A preocupação é que o princípio que subjaz ao argumento de MacKinnon ameaçaria, se fosse sistematicamente aplicado, muitas outras formas de discurso de um modo claramente inaceitável.

Note-se que Dworkin interpreta — ou desinterpreta — o argumento de MacKinnon como uma versão do velho argumento moralista que objecta à pornografia com base na ofensa; e, como vimos, os liberais rejeitam a ofensa como uma base legítima para impedir o consumo voluntário de pornografia em privado. Contudo, o argumento de MacKinnon não depende — nem precisa de depender — deste princípio “assustador”. A defesa feminista não é que a pornografia deva ser regulamentada porque expressa opiniões que são ofensivas para as feministas. Ao invés, deve ser regulamentada porque, seja ou não ofensiva, contribui significativamente para um regime de desigualdade sexual.

Contudo, também este princípio — que o governo tem justificação para proibir o discurso que contribua significativamente para a desigualdade de um grupo — é considerado perturbador por alguns liberais. Pois pode muito bem aplicar-se a outros discursos que não a pornografia, incluindo talvez os exemplos que Dworkin menciona.

Dworkin não é o único com esta preocupação. Outros liberais e feministas questionaram a centralidade que MacKinnon deu à pornografia como o lugar cimeiro da opressão das mulheres, quando parece que muitos outros materiais que não são sexualmente explícitos também subscrevem e perpetuam uma perspectiva das mulheres como objectos sexuais, ainda que talvez de formas menos gráficas e explícitas. (Talvez esta falta de explicitação as torne mais insidiosas; e consequentemente mais preocupantes, e não menos.) A pornografia pode sexualizar a desigualdade das mulheres, mas a publicidade e as novelas românticas é plausível que a torne charmosa e romântica, respectivamente; e consequentemente podem celebrar, autorizar e dar legitimidade à desigualdade das mulheres, tal como a pornografia (veja-se, e.g., Cocks 1989, Coward 1984, Valverde 1985, Kappeler 1986, Skipper 1993). Na verdade, algumas destas representações podem ser especialmente preocupantes não apenas porque podem estar mais disseminadas mas também porque podem condicionar as mulheres para serem cúmplices da sua própria sujeição. A centralidade dada por MacKinnon aos materiais gráficos sexualmente explícitos que celebram a desigualdade das mulheres pode assim parecer arbitrária na ausência de provas de que o subconjunto sexualmente explícito de materiais é uma causa especialmente significativa da desigualdade das mulheres.

Talvez existam razões de princípio e também pragmáticas para escolher censurar ou regulamentar a pornografia (i.e., o subconjunto sexualmente explícito de materiais que condiciona as pessoas a ver as mulheres como objectos sexuais disponíveis) mesmo que concordemos que o que não é sexualmente explícito pode também condicionar os consumidores a ter esta perspectiva das mulheres. Pois pode ser que a censura da pornografia aliviasse uma quantidade considerável deste dano sem incorrer nos mesmos custos de censurar alguns ou todos os materiais não sexualmente explícitos que contribuem para o mal. Contudo, isto é controverso.

E quanto à tese de que a pornografia viola o direito das mulheres à liberdade de expressão? O argumento baseia-se numa “confusão perigosa”, pensa Dworkin: a confusão entre liberdade positiva e negativa. Depende da

proposição inaceitável de que o direito à liberdade de expressão inclui um direito a circunstâncias que nos encorajem a falar, e um direito a que terceiros apreendam e respeitem o que queremos dizer […] É óbvio que estes são direitos que nenhuma sociedade pode reconhecer ou efectivar. Os criacionistas, defensores da Terra plana e dogmáticos, por exemplo, são hoje ridicularizados em muitos lugares dos EUA; essa ridicularização faz certamente esmorecer o entusiasmo de muitos deles para falar abertamente e limita a atenção que terceiros dão ao que têm a dizer. (Dworkin 1993: 38)

Porém, sugere Dworkin, não devemos certamente pensar que isto viola o direito deles à liberdade de expressão: e.g., que os criacionistas têm um direito legítimo que o estado proíba a publicação de livros ou vídeos recomendando a teoria da evolução com base na ideia de que estes materiais podem fazer o discurso dos criacionistas não ser recebido de maneira compreensiva e ser desconsiderado.

Dworkin concede que é talvez verdadeiro que o direito à liberdade de expressão, para que seja significativo, exige que todos tenham a mesma oportunidade de ver as suas ideias serem ouvidas: numa sociedade na qual só os ricos e poderosos têm acesso aos meios de comunicação pode não haver liberdade de expressão genuína. Porém, pensa Dworkin, defender que um direito significativo à liberdade de expressão exige “uma garantia de um entendimento compreensivo ou sequer competente do que dizemos” (Dworkin 1993: 38) vai muito além disso. Permitiria a regulamentação estatal do discurso numa escala gigantesca, abrindo as portas a uma “tirania” terrível (Dworkin 1993:42).

Vários comentadores desenvolveram as teses de MacKinnon perante a resposta de Dworkin, argumentando que a liberdade de expressão (mesmo a liberdade negativa de expressão) exige mais do que ter apenas a liberdade para produzir e distribuir sons e símbolos que sejam como palavras. Exige também que a audiência não seja impedida de compreender o significado visado desses sons e rabiscos — caso contrário não há liberdade de expressão, mas apenas a liberdade para produzir e distribuir sons e rabiscos que são como palavras (veja-se, e.g., Hornsby e Langton 1998, West 2003; para respostas veja-se Jacobson 2001, Green 1998). De modos diferentes, estes comentadores defendem que a concepção liberal tradicional de liberdade de expressão, e o direito à mesma, não dá suficiente atenção ao modo como a linguagem funciona; e, em particular, ao facto de o significado das palavras — e portanto o que é possível dizer ou comunicar — depender do contexto social, contexto esse que a pornografia pode ajudar a dar forma e a perpetuar.

A concepção liberal tradicional de liberdade de expressão pressupõe que as pessoas têm a liberdade de falar desde que não sejam impedidas de produzir sons e rabiscos que terceiros não são impedidos de ouvir ou ver. Porém, podemos perguntar-nos se isto é suficiente para proteger a liberdade de expressão, mesmo à luz dos próprios princípios liberais. Pois podemos pensar que um governo que desse às pessoas a liberdade de produzir quaisquer sons ou rabiscos que queiram mas que implantasse um dispositivo na cabeça da audiência que sistematicamente a impedisse de compreender o significado visado desses sons e rabiscos seria tão mau quanto um governo que impedisse as pessoas de produzir sons e rabiscos. Tanto de um modo como do outro quem discursa é impedido de comunicar as suas opiniões a terceiros, o que anula o que os liberais consideram o objectivo da liberdade de expressão: o direito de não sermos impedidos pelas acções de terceiros de comunicar as nossas ideias ou opiniões a quem possa desejar ouvi-las (West 2003).

Como devemos entender o princípio do dano? Como devem os liberais conceber valores importantes como a igualdade e o direito à liberdade de expressão? Que papel deve o estado desempenhar na protecção e promoção de valores como a autonomia e a igualdade? Poderemos reconciliar as ideias liberais com os princípios e objectivos feministas? A procura de respostas a perguntas importantes como estas constitui grande parte do interesse filosófico na questão da pornografia e da censura.

Caroline West
Stanford Encyclopedia of Philosophy (2012), org. Edward N. Zalta.

Notas

  1. Aparentemente, a citação vem de facto de Beatrice Hall, The Friends of Voltaire, 1986. ↩︎︎

  2. Vale a pena fazer notar que nem toda a gente pensa que seja apropriado encarar a pornografia como uma forma de discurso: actos intencionais de expressão comunicativa que visam principalmente expressar ideias ou comunicar opiniões. Frederick Schauer 1982, por exemplo, pensa que é mais adequado ver a pornografia como uma forma de assistência sexual. Se a pornografia não é discurso nem expressão comunicativa intencional, então presumivelmente não pode ser defendida com base na liberdade de expressão. Houve quem tenha sugerido que a pornografia é discurso, mas não de uma forma que esteja protegida pelos princípios liberais. A pornografia não é um discurso com “intermediação mental” nem um discurso “persuasivo”: não comunica as suas ideias de modo a que os consumidores possam avaliá-las ou resistir-lhes racionalmente. (Veja-se MacKinnon 1995:11; Sunstein 1986; Scoccia 1996.) ↩︎︎

  3. Note-se que esta concepção de “liberdade positiva” é diferente da clássica, introduzida por Berlin 1969, que a define como a ausência de obstáculos internos como a falsa consciência, estar viciado, ter desejos sem valor e coisas do género. ↩︎︎

  4. Os leitores atentos irão reparar que a definição Dworkin-MacKinnon define “pornografia” como a subordinação gráfica sexualmente explícita das mulheres, e não como os materiais que descrevem ou causam a subordinação das mulheres. Tem sido uma questão controversa se a primeira definição, constitutiva — que a pornografia é, em si, a subordinação das mulheres —, é coerente e defensável. Para duas excelentes discussões veja-se Vadas, 1987 e Langton 1993, que procuram ambas, de diferentes modos, defender a coerência da definição constitutiva. Veja-se também a resposta de Parent 1990. ↩︎︎

  5. Quem estiver interessado em algumas das dimensões jurídicas deste debate, esta foi a posição defendida pelo Supremo Tribunal dos EUA ao sustentar a inconstitucionalidade do Regulamento de Indianápolis. Afirmou o juiz Easterbrook: “Aceitamos as premissas desta legislação. As representações de subordinação tendem a perpetuar a subordinação. O estatuto subordinado das mulheres por sua vez conduz à afronta e salários mais baixos no trabalho, ao insulto e aos maus-tratos em casa, à agressão e à violentação nas ruas (…) mas isto mais não faz do que demonstrar o poder da pornografia como discurso” (Juiz Easterbrook, 771 F.2.º 329 (7.º Cir. 1985)). ↩︎︎

  6. Claro que o consumo de um caso específico de pornografia pode ser uma condição necessária para um tipo particular de violação. Algumas feministas antipornografia fazem notar casos de agressões sexuais miméticas ou imitadoras, nas quais os violadores encenam situações de violação retiradas da pornografia que consumiram na vida real (veja-se MacKinnon 1987:184–186; 188–189; Pornography and Sexual Violence: Evidence of the Links, 1988; Easton 1993: 14–19). Nestes casos, defende MacKinnon, casos específicos de pornografia causam directamente a agressão sexual: o violador não teria violado daquela maneira particular caso não tivesse consumido aquela pornografia específica que copiou ao violar. Talvez MacKinnon tenha razão. Porém, pode-se perguntar se isto será relevante caso seja verdadeiro que o violador teria violado à mesma, noutro momento e noutro lugar, tivesse ou não consumido pornografia. Pois a ser assim o consumo de pornografia não faria qualquer diferença na incidência geral de violação. ↩︎︎

Bibliografia

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