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Crítica
24 de Agosto de 2008   Metafísica

A possibilidade da metafísica

E. J. Lowe
Tradução de Vítor Guerreiro

No prefácio, expliquei que o objectivo geral deste livro é ajudar a restaurar a centralidade da metafísica na filosofia, como a forma mais fundamental de investigação racional, com métodos e critérios de avaliação próprios. Mas para que tal projecto não aborte ainda antes de começar, precisamos de alguma garantia de que o seu objectivo é coerente e legítimo. Dar essa garantia será o propósito deste primeiro capítulo, que servirá também de introdução a alguns dos temas principais do livro.

1. O que é a metafísica?

Foi Immanuel Kant quem primeiro perguntou “Como é a metafísica possível?”1 Mas Kant supunha que o objecto de estudo da metafísica consistia em verdades sintéticas a priori, e desde então que duvidamos se há ou não tal classe de verdades, sobretudo porque a distinção analítico/sintético se tornou ela própria duvidosa, depois do ataque que W. V. Quine lhe dirigiu.2 A distinção a priori/a posteriori, por outro lado, ainda é levada a sério e foi na verdade revitalizada pelo trabalho de Saul Kripke.3 Mas também o trabalho de Kripke compromete as suposições epistemológicas de Kant, ao sugerir que nem as verdades necessárias têm de ser a priori nem as verdades contingentes têm de ser a posteriori. À luz destas reconcepções, tem de se reiterar e até compreender diferentemente a questão de Kant: “Como é a metafísica possível?” Mas a questão é tão premente para nós como foi para Kant. A metafísica está sob ataque de muitos lados, tanto do interior das hostes dos filósofos como de diversas forças externas. Apesar destes ataques, a metafísica tem até certo ponto gozado de um ressurgimento entre os chamados “filósofos analíticos”, depois de um período estéril durante o qual prevaleceram primeiro o positivismo lógico e depois a filosofia da linguagem comum, ambas hostis à especulação metafísica. Os filósofos analíticos já não são avessos a argumentos respeitantes à natureza da substância, à realidade dos universais ou à existência de entidades abstractas. Pelo que temos de compreender o que pode legitimar tais investigações e que estatuto epistemológico podem as suas conclusões justificadamente reivindicar.

Preliminarmente, temos de nos fixar numa caracterização razoavelmente incontroversa do que se deve considerar a principal preocupação da metafísica. Tradicionalmente, tem-se pensado a metafísica como o estudo sistemático da estrutura mais fundamental da realidade — e, na verdade, é essa a perspectiva da metafísica que gostaria de defender. Compreender assim o objectivo da metafísica faz da defesa da sua possibilidade uma tarefa substancial e problemática e, por essa razão, digna de se explorar. Por contraste, compreender o objectivo da metafísica como algo menos ambicioso — por exemplo, enquanto tentativa de analisar as maneiras como correntemente aceitamos falar acerca do que irreflectidamente tomamos por determinadas características gerais do mundo em que vivemos — tornaria a sua justificação menos difícil, mas à custa de tornar a metafísica menos interessante e menos digna de se fazer. Caso a metafísica na sua concepção tradicional se mostre impossível, podemos ainda dar continuidade a estes projectos menos ambiciosos; mas não finjamos que com isso fazemos algo digno do nome “metafísica”.

Admito que caracterizar a metafísica como o estudo sistemático da estrutura mais fundamental da realidade não parece muito rigoroso. Mas não estou a dar uma definição, caso em que a imprecisão seria na verdade um defeito. Não penso que seja de todo em todo vantajoso procurar uma definição de “metafísica”, porque se corre o risco de a enquadrar de maneira a favorecer uma posição metafísica relativamente a outras — por exemplo, de maneira a supor a realidade do espaço, ou da causalidade, enquanto alguns sistemas metafísicos podem negar a realidade destas coisas. Qualquer tentativa de especificar o objecto de estudo da metafísica através de uma lista de tópicos que esta supostamente abrange acarretaria uma imperfeição semelhante. Basta olhar para os conteúdos altamente diversificados dos manuais de metafísica modernos para ver como tal abordagem seria arbitrária. Evidentemente, uma consequência de não se delimitar com absoluta nitidez a província da metafísica é parecer que não se pode distinguir claramente a metafísica de outros projectos, como os que se assume em nome das ciências empíricas. Contudo, embora eu argumente mais tarde que toda a ciência empírica pressupõe a metafísica, não creio, na verdade, que se deva fazer uma distinção nítida entre as preocupações metafísicas e algumas das preocupações mais teóricas da ciência. Traçar fronteiras precisas em tais matérias é inútil, e não é necessário para defender que as preocupações metafísicas são suficientemente específicas para formar o núcleo de uma disciplina relativamente independente — cujas credenciais intelectuais são dignas de explorar. Em todo o caso, espero que quando, a seu tempo, procurar argumentar por mim a favor da possibilidade da metafísica, a minha concepção do objecto de estudo e métodos da metafísica surja com maior clareza. Com efeito, vou preencher a minha caracterização preliminar da metafísica caracterizando-a como a disciplina possibilitada pelo género de defesa que vou fornecer.

2. Como é a metafísica possível?

Antes de apresentar a minha defesa, quero olhar brevemente para algumas respostas rivais à questão “como é a metafísica possível?” que são presentemente populares em muitas áreas. Algumas destas respostas são francamente antimetafísicas ao passo que outras, na minha opinião, reduzem o estatuto da metafísica a algo indigno do nome e são portanto, implicitamente, antimetafísicas também. Uma resposta antimetafísica à nossa questão é, pois, ou uma resposta que nega simplesmente que a metafísica na sua concepção tradicional seja possível, ou então uma resposta que defende a possibilidade de outra coisa qualquer com o nome “metafísica”, ao mesmo tempo que abandona implicitamente o produto genuíno. Outras respostas que rejeitarei procuram efectivamente defender a possibilidade de algo reconhecivelmente semelhante à metafísica na sua concepção tradicional, mas fazem-no de maneiras que considero insatisfatórias. Às quatro posições que irei considerar — apenas para as rejeitar — chamarei (algo tendenciosamente) relativismo, cientismo, neokantismo e semantismo. Todas são perspectivas “modernas”, embora algumas tenham obviamente precedentes históricos. Não vou examinar, aqui, algumas posições mais tradicionais — como o “racionalismo” e o “empirismo”, como supostamente exemplificadas por figuras históricas como Descartes e Locke — porque estas posições se desenvolveram antes de Kant ter colocado a importante questão: “como é a metafísica possível?”

A resposta do relativismo — por exemplo, na sua mais recente inclinação “desconstrutivista” — a esta questão é, muito simplesmente, que a metafísica não é possível, porque a metafísica é o produto ilegítimo da soberba intelectual do ocidente, a busca equivocada por uma inexistente verdade “objectiva” e “total”, orientada por princípios lógicos supostamente intemporais e universais. A verdade e a razão, segundo esta perspectiva, são conceitos ligados à cultura, de utilidade estritamente limitada. A noção de que possa haver uma “estrutura fundamental da realidade” para que a discirnamos é considerada absurda e paradoxal, porque aquilo a que chamamos “realidade” nunca passa (supostamente) de uma construção humana saturada de interpretações guiadas pelo interesse. A minha resposta a afirmações antimetafísicas deste género é a seguinte: Em primeiro lugar, na medida em que se reduzem a meras asserções, insustentadas por argumentos racionais, não merecem ser levadas a sério. O facto de os seus defensores amiúde desprezarem a própria argumentação — sendo esta um dos principais alvos do seu ataque — não compromete de modo algum os defensores da metafísica a levá-los a sério. Se os relativistas desejam denunciar a noção de argumentação racional como artefacto cultural provinciano, então negam a si próprios qualquer suporte para as suas afirmações que não seja o preconceito entranhado, e devia bastar-nos deixá-los chafurdar aí á vontade, se isso lhes dá satisfação. Em segundo lugar, se se alega que há indícios que sustentam estas afirmações — de género sociológico ou antropológico, por exemplo — então tem de se chamar a atenção para que na verdade os indícios disponíveis nada sustentam de tão extremo: não mostram nem podem mostrar que os seres humanos são incapazes de superar concepções do seu mundo, ligadas à cultura e motivadas por interesses, mas quando muito que por vezes não o conseguem fazer. Na verdade, o próprio facto de alguns seres humanos terem descoberto que muitos seres humanos não conseguem fazer isto não mostra senão que somos capazes de tal superação. Em terceiro lugar, é característico do ataque relativista à metafísica a distorção deliberada daquilo que procura denunciar. Representa os metafísicos com pretensões a elucidações infalíveis sobre verdades eternas e universais, isentas de qualquer perspectiva humana. Mas só o metafísico mais ingénuo e dogmático faria afirmações tão grosseiras. Um dos principais objectivos da metafísica é precisamente compreender, até certo ponto, a nossa própria relação com o resto da realidade e inevitavelmente compromete-se a fazê-lo a partir da posição em que nos encontramos. O facto de não podermos sair de nós próprios para estudar essa relação não implica necessariamente que não a possamos estudar de todo em todo.

Uma segunda resposta popular à questão de como é a metafísica possível é afirmar que não o é porque, na medida em que houver uma província legítima da investigação metafísica, esta é inteiramente suprida pelas ciências empíricas. Nesta perspectiva, são sobretudo estas ciências que nos podem informar acerca da estrutura fundamental da realidade. Sendo assim, não pode haver espaço para uma abordagem especificamente “filosófica” às questões da metafísica, concebida como diferente, nos seus métodos ou objectos, das que já fazem parte das ciências empíricas. Por exemplo, se há questões fundamentais a levantar acerca da existência e natureza do espaço e do tempo, parece seguir-se que só ciências como a cosmologia ou a física quântica lhes podem dar resposta. Não pode haver espaço para especulação filosófica “de poltrona” ou “análise conceptual”, como formas de lidar com tais questões. Na medida em que as questões metafísicas são genuinamente respondíveis, diremos que quem lhes dá resposta são pessoas que trabalham em departamentos de física e não pessoas que trabalham em departamentos de filosofia.

É frequente encontrar expressa uma perspectiva semelhante, quer explicitamente quer mal disfarçadamente, em livros de divulgação científica recentes, concebidos para comunicar a um público leigo as injunções arcanas das últimas teorias da física — teorias que afirmam, por exemplo, que o espaço tem “realmente” muito mais do que três dimensões ou que o universo é o resultado de uma flutuação quântica no vácuo e que portanto veio do “nada”. Numa forma mais subtil, encontra-se uma devoção ao cientismo — como chamarei à doutrina de que as questões metafísicas legítimas pertencem à província das ciências empíricas — mesmo, ironicamente, em muitos departamentos de filosofia. Uma versão do cientismo ganhou aí respeitabilidade sob o título “epistemologia naturalizada”. Esta é a perspectiva de que todo o conhecimento humano — incluindo qualquer conhecimento metafísico que possamos reivindicar — é produto da nossa natureza biológica como animais cognoscentes e que por essa razão tem de ser estudado através dos métodos das ciências da vida, incluindo a psicologia e a teoria evolucionista. Assim, vemos surgir uma situação bizarra em que os cientistas que fazem divulgação denunciam as pretensões dos filósofos, enquanto muitas das pessoas que criticam já abdicaram na verdade de qualquer pretensão de saber lidar com as questões da metafísica melhor do que os cientistas.

Na minha opinião, ambos os tipos de devoto do cientismo — os que vêm das fileiras dos cientistas e os que vêm das fileiras de filósofos soi-disant — exibem um dogmatismo limitado que é a própria antítese da filosofia genuína. Ambos são incapazes de ver que a ciência pressupõe a metafísica e que o papel da filosofia é tão normativo como descritivo — em que tudo, incluindo a ciência, entra no seu âmbito crítico. Os cientistas fazem inevitavelmente suposições metafísicas, quer explícita quer implicitamente, ao propor e testar as suas teorias — suposições que ultrapassam tudo o que a própria ciência pode legitimar. Estas suposições têm de ser criticamente examinadas, quer pelos próprios cientistas quer pelos filósofos — e seja como for, o pensamento filosófico crítico que se tem de fazer não pode tomar por modelo os métodos e objectos da ciência empírica. A ciência empírica, quando muito, diz-nos o que é, não o que tem de ser ou o que pode ser (mas não é). A metafísica lida com possibilidades. E só se conseguirmos delimitar o escopo do possível podemos esperar determinar empiricamente o que é efectivamente real. É por isto que ciência empírica depende da metafísica e não pode usurpar o papel específico da última.

Uma terceira resposta à nossa questão, “como é a metafísica possível?”, é, ao contrário das primeiras duas, genuinamente filosófica, inspirando-se em Kant — pelo que lhe chamo neokantiana. Segundo esta perspectiva, a metafísica não nos diz nem pode dizer seja o que for acerca da realidade objectiva “como é em si”, se é que a noção de tal realidade faz sequer sentido. Mas pode dizer-nos algo acerca de determinadas características fundamentalmente necessárias do nosso pensamento acerca da realidade. Por exemplo, pode ser capaz de estabelecer que temos de pensar nos objectos da percepção como localizados no espaço e no tempo e causalmente relacionados entre si — talvez com base em que, como o próprio Kant defendeu, um reconhecimento de nós próprios como seres autoconscientes cujos pensamentos e experiências se ordenam no tempo nos exige que façamos referência a tal mundo de objectos perceptíveis. Mas, escolhendo um objectivo menos ambicioso, espera-se poder assegurar a possibilidade de uma metafísica adequadamente modesta. Contudo, tal posição está fatalmente comprometida, se a sua intenção for gerar afirmações “metafísicas” legítimas interpretando-as de tal maneira que não falem acerca de como as coisas realmente são, por contraste com o modo como temos de pensar que são. Porquanto nós, se somos alguma coisa, somos também parte da realidade, bem como os nossos pensamentos, pelo que pretender fazer afirmações acerca de características supostamente necessárias dos nossos pensamentos enquanto se nega afirmar seja o que for acerca da natureza da “realidade” é cair em contradição. Tentar tornar a metafísica segura retrocedendo desta maneira é um exercício condenado ao fracasso.

Ainda mais insatisfatória é qualquer tentativa de legitimar a metafísica enfraquecendo-a ainda mais, interpretando as suas afirmações como meras descrições de um esquema conceptual que tomamos por nosso, sem sequer pretender estabelecer a inevitabilidade desse esquema. A investigação metafísica tem de ser, no mínimo, crítica, pelo que na medida em que lida com “conceitos” não se pode contentar com a descrição ou análise dos conceitos que por acaso temos, mas devia, ao invés, procurar rever e aperfeiçoar estes conceitos, se necessário.4 Mas o que está em causa nesta revisão não é senão fazer os nossos conceitos aplicar-se melhor à realidade — assegurar a mera consistência interna de um esquema conceptual é um objectivo demasiado modesto, porque muitos esquemas mutuamente incompatíveis podem ter esta característica ao mesmo grau.5 Se se sugere que a escolha entre tais esquemas se pode fazer racionalmente, optando pela que menos violência exerce sobre as nossas crenças “naturais” ou “intuições”, deixando-nos numa situação de “equilíbrio reflexivo”, tem de se objectar mais uma vez que um exercício deste género não merece que o dignifiquemos com o nome “metafísica”, porque não temos o direito de supor que as nossas crenças naturais reflectem a estrutura fundamental da realidade. Uma das poucas virtudes do cientismo é reconhecer este facto, porque reconhece que as nossas crenças naturais são fruto de processos evolutivos que se ajustam às exigências práticas da sobrevivência em vez de exigências teóricas de verdade metafísica.

A quarta e última resposta que pretendo criticar é aquilo a que chamo semantismo. Esta é a perspectiva, notoriamente subscrita por Michael Dummett, segundo a qual se pode resolver as questões metafísicas, em princípio, recorrendo à teoria do significado (e a esta).6 Assim, se podemos ou não adoptar uma perspectiva “realista” acerca de uma área de discurso, como o discurso acerca da teoria de conjuntos, da física quântica ou do passado, isso dependerá de uma teoria do significado para essa área de discurso atribuir ou não condições de verdade “realistas” às suas frases, isto é, condições de verdade que reflictam um compromisso com o princípio de bivalência, no que diz respeito a essas frases. Na verdade, parece que o semantismo deste género não difere fundamentalmente daquilo a que tenho chamado neokantismo, porque os seus defensores, como Dummett, entendem que a teoria do significado dá a única base legítima para uma teoria da estrutura e conteúdo do pensamento.7 Assim, o semantismo apenas dá uma roupagem linguística ao tipo de abordagem da metafísica que já considerámos e rejeitámos. Quando muito, o semantismo ameaça reduzir a metafísica a algo ainda mais paroquial, fazendo as respostas às suas questões assentar nas práticas linguísticas de uma comunidade humana arbitrariamente seleccionada. O semantista afirmará, sem dúvida, que as características da teoria do significado que são pertinentes para as preocupações metafísicas são “profundas”, que transcendem as diferenças entre comunidades linguísticas humanas diferentes. Mas que género de fundamento teria tal afirmação? Se for meramente antropológico, voltamos ao cientismo ou a algum género de relativismo. Tão-pouco pode a teoria do significado em si determinar o que conta como “profundo”.

O problema básico do semantismo é que, na medida em que se pode legitimamente apelar a considerações de significado para responder a questões metafísicas, as considerações em causa não podem ser apenas considerações do que efectivamente queremos dizer — porquanto não há garantia de que queiramos dizer algo de muito preciso ou coerente com as nossas elocuções — mas, ao invés, têm de ser considerações acerca do que devíamos querer dizer. Isto para reiterar a ideia de que a metafísica tem de ser crítica e potencialmente revisionista perante as nossas crenças e conceitos correntemente aceites. Contudo, não se pode responder integralmente a questões acerca do que devíamos querer dizer a partir da teoria do significado, porquanto estas exigem que se use argumentação metafísica independente. Isto ilustra-se na discussão acerca do que constitui um objecto — esta é uma discussão metafísica por excelência, e a ela regressaremos em detalhe no Capítulo 2. O semantista dirá, tipicamente, que se tem de compreender um objecto como referente possível de um termo singular, e argumentará que se pode explicar a noção de termo singular independentemente de uma noção anterior daquilo que constitui um objecto — por exemplo, por referência ao comportamento lógico característico dos termos singulares, exibido pelos padrões de inferência válida sustentados por frases que os contêm.8 Contudo, é desde logo evidente que a nossa língua contém expressões que se qualificam como termos singulares à luz de qualquer critério semelhante e que, no entanto, seria extravagante supor que referem objectos de género algum. Um exemplo seria uma descrição definida como “O sorriso no rosto de John”. A linguagem quotidiana parece inclusive quantificar “objectos” espúrios, como acontece na frase “John faz um sorriso rasgado”. Evidentemente, pode-se parafrasear satisfatoriamente essa frase evitando o quantificador, como por exemplo, “John sorri rasgadamente”. Mas a paráfrase é uma relação simétrica, pelo que não há recursos, exclusivamente no interior da nossa teoria do significado para a linguagem, com os quais decidir qual destas duas frases reflecte mais fielmente a ontologia dos seus utentes. Muito menos nos permite decidir o que “é” um objecto, ou que objectos o mundo realmente contém. Só com argumentação metafísica independente se pode abordar estas questões, se é que podem ser legitimamente abordadas, de todo em todo.9 A abordagem linguística ou semântica às questões de metafísica conduz inevitavelmente a uma doutrina de relatividade ontológica extrema, como perceberam alguns dos seus defensores.10 Assim apresentada, portanto, cai numa versão da primeira abordagem que considerámos antes, a que chamei “relativismo”.

3. Possibilidade metafísica e possibilidade da metafísica

Chegou agora a altura de dar a minha própria resposta à questão de a metafísica ser ou não possível e, se é, como. A minha perspectiva é que é efectivamente possível: ou seja, defendo que é possível obter respostas razoáveis a questões respeitantes à estrutura fundamental da realidade — questões mais fundamentais do que quaisquer das que se pode abordar competentemente através da ciência empírica. Mas não afirmo que a metafísica por si só pode, em geral, dizer-nos o que. Ao invés — como abordagem preliminar — defendo que a metafísica, por si, apenas nos diz o que pode haver. Mas depois de a metafísica nos dizer isto, a experiência pode dizer-nos qual entre as diversas possibilidades metafísicas alternativas é plausivelmente verdadeira na realidade efectiva. O que está em causa é que embora o que é efectivamente real tenha, por essa mesma razão, de ser possível, a experiência por si só não pode determinar o que é efectivamente real, na ausência de uma delimitação metafísica do possível. Resumindo: a própria metafísica é possível — na verdade, necessária — como forma de investigação racional humana, porque a possibilidade metafísica é uma determinante inevitável da realidade efectiva. Nesta formulação altamente abstracta e condensada, a minha resposta pode parecer obscura e até aforística, pelo que a minha tarefa, no restante capítulo, será revelar as suas implicações.

Até agora, comecei a forjar um elo entre a possibilidade da metafísica e a noção de possibilidade metafísica. A ideia é que o domínio da possibilidade metafísica é genuíno e tem de ser explorado, ou pelo menos suposto, antes de se poder legitimar pela experiência qualquer pretensão de verdade na efectividade. E este é um domínio que não pode, evidentemente, ser explorado apenas pelos métodos das ciências empíricas, precisamente porque estes apenas parecem estabelecer o que é verdade na efectividade com base na experiência e, portanto, pressupõem a metafísica. Mas pode-se objectar aqui que o único género de possibilidade que as ciências empíricas pressupõem é a possibilidade lógica — e que isto se pode estabelecer sem recorrer à disciplina distinta da metafísica, porque a possibilidade lógica é simplesmente uma questão de concordância com as leis a priori da lógica. Resumindo: pode-se insistir que a única condição prévia que as teorias da ciência empírica têm de satisfazer, antes de se as testar no tribunal da experiência, é a de não implicar uma contradição lógica. Contudo, em primeiro lugar, só se pode avaliar os veredictos da própria experiência à luz da possibilidade metafísica e, em segundo lugar, tal possibilidade não equivale simplesmente à mera possibilidade lógica como a caracterizámos há pouco. Desenvolverei a última ideia de um modo mais completo na secção seguinte, ao discutir como se pode definir a possibilidade metafísica, mas será conveniente fazer aqui algumas observações preliminares.

A possibilidade lógica de uma proposição ou conjunto de proposições, como há pouco as caracterizámos, é simplesmente uma questão de esta (ou estas) não implicar(em) uma contradição lógica. Mas a possibilidade metafísica é muito diferente disto. Em primeiro lugar, não é — ou pelo menos não é só — a possibilidade de uma proposição (ou conjunto de proposições), mas antes a possibilidade de um estado de coisas (que é representável, sem dúvida, por uma proposição): e assim, neste sentido, é uma possibilidade “real” ou de re. A noção de estado de coisas, evidentemente, é ela própria uma noção metafísica: apenas uma entre uma vasta família de noções semelhantes, algumas mais básicas do que outras. Outras noções nesta família são as de objecto, propriedade, relação, indivíduo, tipo, parte, substância, existência, identidade, exemplificação e, com efeito, possibilidade, juntamente com o seu correlativo, a necessidade. Algumas destas noções são definíveis em termos de outras, embora o modo preciso como se deve defini-las seja em si objecto de discussão metafísica. Assim — como veremos mais completamente no Capítulo 6 — pode-se definir a substância como um objecto cuja existência não depende de qualquer outro objecto (definindo-se a dependência em termos de necessidade).11 Estas noções metafísicas não são puramente “lógicas”: são ontológicas.12 Dizem respeito ao ser e aos seus modos, ao passo que a lógica, adequadamente compreendida, não diz respeito ao ser em geral mas, ao invés, às propriedades formais de proposições e às relações entre estas (que constituem apenas uma pequena parte daquilo que há). Além disso, estas noções metafísicas são, em certo sentido, transcendentais, na medida em que não derivam da experiência mas apela-se-lhes, pelo contrário, para interpretar o que a experiência revela acerca da realidade. Evidentemente, aproximam-se das categorias de Aristóteles e Kant, mas a explicação que dou delas difere crucialmente da de Kant (e está portanto mais próxima da de Aristóteles), na medida em que considero que são genuinamente aplicáveis à realidade e não apenas ao nosso pensamento acerca da realidade. Não são categorias do pensamento, mas categorias do ser. Isto não equivale, contudo, a afirmar que se pode, em geral, determinar inteiramente a priori a aplicabilidade de uma dada categoria à realidade — só a sua possível aplicabilidade pode ser determinável deste modo. Por exemplo, podemos não ser capazes de estabelecer a priori que há efectivamente quaisquer substâncias, apenas que pode haver. Só recorrendo à experiência, talvez, podemos ter razões para pensar que .

Obviamente, o “semantista” afirmará que estas “categorias” apenas reflectem e derivam inteiramente de características semântico-sintácticas das linguagens naturais que por acaso usamos — em que a noção de “objecto” corresponde à de um termo singular, a noção de “propriedade” corresponde à de um predicado, e por aí em diante. Mas já expliquei por que considero que esta perspectiva inverte a ordem adequada da explicação. As correspondências existentes deste género existem porque qualquer linguagem que tenha evoluído como meio de exprimir verdades acerca da realidade tem de dar corpo a algum reconhecimento, por muito parcial e distorcido, das categorias metafísicas em termos das quais se tem de articular a estrutura fundamental da realidade. Como não há espaço para discutir essa estrutura, não é surpreendente que diferentes linguagens naturais reflictam algumas categorias metafísicas mais proeminentemente do que outras. Tais diferenças reflectem, muito provavelmente, diferenças nas crenças metafísicas tácitas de comunidades linguísticas humanas diferentes. Mas embora a estrutura linguística possa talvez servir para reforçar e arraigar tais crenças, a perspectiva “whorffiana” de que a estrutura linguística é a sua fonte é, penso, de todo em todo insustentável.13

Comecei a falar em categorias metafísicas ao introduzir a noção de possibilidade metafísica, insistindo que difere da mera noção de possibilidade lógica. A possibilidade metafísica de um estado de coisas não é determinada simplesmente pela ausência de contradição nas proposições usadas para o descrever — embora, evidentemente, tal ausência de contradição seja um requisito mínimo da possibilidade metafísica. Considere-se, assim, um exemplo par excellence de questão de possibilidade metafísica: a questão de poder ou não haver objectos vagos, isto é, objectos relativamente aos quais pudesse não haver uma verdade quanto à sua identidade ou diversidade em determinadas circunstâncias. (Regressaremos a esta e outras questões relacionadas em muito maior detalhe no Capítulo 3). É verdade que muitos filósofos, notoriamente, Gareth Evans, argumentaram contra esta possibilidade procurando derivar uma contradição a partir da suposição de que uma dada afirmação de identidade tem valor de verdade indeterminado, uma suposição que se pode exprimir por uma proposição com a forma “∇ (a = b)”.14 Na verdade, considero que este argumento é deficiente e que, consequentemente, não se pode derivar uma contradição a partir da suposição em causa.15 Não se segue, contudo, que tenho de considerar metafisicamente possível a existência de objectos vagos. Na verdade, duvido seriamente disto, porque — como explicarei no Capítulo 2 — considero que a única noção metafisicamente defensável de objecto é precisamente a de uma entidade que tem determinadas condições de identidade.16 Assim, embora tenha referido noutras ocasiões o domínio das partículas subatómicas como fonte de exemplos putativos de “objectos” cuja identidade diacrónica pode, em determinadas circunstâncias, ser vaga,17 num nível mais profundo simpatizo com a perspectiva de que os indícios empíricos relevantes nos mostram que é errado pensar que os electrões e coisas semelhantes são realmente objectos de todo em todo. (Não se suponha, contudo, que isto é apenas uma questão verbal acerca do significado de uma palavra, “objecto”: o que está fundamentalmente em causa é que um sistema de metafísica satisfatório tem de traçar uma divisão fundamental entre aquelas entidades que têm e as que não têm condições de identidade determinadas — e o uso adequado do termo “objecto” serve precisamente esta finalidade.) Assim vemos que a validade da afirmação de que um determinado estado de coisas é metafisicamente possível não depende simplesmente da questão de as proposições que se usa para o descrever implicarem ou não-contradição, mas antes da questão de os princípios e categorias metafísicas aceitáveis permitirem ou não a existência desse estado de coisas. E isto é matéria de uma discussão especificamente metafísica. Pode-se fazer aqui uma comparação geral com questões acerca do que é moralmente possível ou admissível, que, mais uma vez, não se pode resolver por meras considerações de lógica, uma vez que a dada altura se tem de fazer as noções morais desempenhar um papel substancial em qualquer argumento a favor da admissibilidade moral de um determinado estado de coisas.

Olhemos para outro grupo de exemplos de maneira a reforçar esta conclusão. Há muito que os metafísicos discutem a possibilidade da mudança e a realidade do tempo — e também nós exploraremos estas questões com alguma profundidade nos Capítulos 4 e 5. Contudo, estas questões não são puramente empíricas nem puramente lógicas. O modo como devemos conceber o tempo é em si uma questão metafísica — uma questão de como a noção de tempo tem de se relacionar com noções metafísicas mais fundamentais, incluindo as categorias, se é que tem realmente de se relacionar com elas. Por exemplo, uma perspectiva (a perspectiva “aristotélica”) é que o tempo é a única dimensão na qual uma substância pode receber qualidades contrárias, e isto, se está correcto, parece implicar pelo menos três coisas: que as substâncias têm de poder persistir identicamente através da mudança qualitativa, que não pode haver tempo sem mudança e que a unidade do tempo assenta na persistência das substâncias. Embora concorde com estas afirmações,18 concedo de pronto serem discutíveis. Mas aquilo em que pretendo insistir aqui é, em primeiro lugar, que estas questões são potencialmente resolúveis através da discussão racional e, em segundo lugar, que o tipo de argumento que tal discussão implica é especificamente metafísico. Mostrar que o tempo é metafisicamente possível não é apenas uma questão de demonstrar a consistência lógica do discurso temporal — refutando, por exemplo, os argumentos de McTaggart que defendem o contrário19 — nem é simplesmente uma questão de formular uma teoria física consistente do tempo, na esteira, digamos, da teoria da relatividade especial de Einstein. A teoria de Einstein faz determinadas afirmações fundamentais acerca do tempo — por exemplo, que a simultaneidade é relativa e que não se pode superar a velocidade da luz — mas que diga realmente respeito ao tempo e que ao ter essa preocupação diz respeito a algo cuja realidade é possível, são questões metafísicas que não se pode resolver com qualquer teoria meramente científica deste género.

Ainda no tópico do tempo e da mudança, eis um último exemplo, bastante específico, que servirá para ilustrar a minha ideia geral. Este exemplo diz respeito à “possibilidade” de uma coisa se tornar duas, sem que por isso deixe de existir — sendo a implicação pretendida a de que, nessa situação, teríamos supostamente, num momento posterior, duas coisas numericamente distintas que antes eram numericamente idênticas. Embora, muito provavelmente, se possa descrever tal situação sem cair em contradição lógica, a argumentação metafísica parece excluí-la, com base em que nenhuma mudança nos objectos em causa podia ocorrer num momento adequado para efectuar a sua separação. (Pressupomos, então, que a separação não podia simplesmente ocorrer sem causa — suposição que em si mesma é metafísica.) Porquanto se a suposta mudança efectiva ocorresse antes da suposta separação, seria demasiado cedo — uma vez que então teria de afectar ambos os supostos objectos exactamente do mesmo modo, dado estes serem, ex hypothesi, idênticos nesse momento. Por outro lado, se a mudança ocorresse depois da suposta separação, seria obviamente demasiado tarde para a ter causado, a não ser que a causalidade invertida seja possível. (Isto não equivale a negar, evidentemente, que uma coisa se possa tornar duas coisas novas cessando de existir, nem que uma coisa possa continuar a existir dando à luz outra, como nos exemplos triviais de divisão ou fissão: nega apenas que duas coisas que, supostamente, eram antes uma e a mesma possam ter sido separadas e portanto tornado inidênticas.)

4. A natureza da necessidade metafísica

Chegou agora a altura de apresentar uma caracterização mais rigorosa da possibilidade metafísica do que a dada nos exemplos ilustrativos, já referidos. Evidentemente, as noções de possibilidade e necessidade metafísica são interdefiníveis. Com isto em mente, abordarei a tarefa que nos depara através da noção de necessidade metafísica. Aqui, pois, está a questão na qual gostaria de me concentrar para já: o que é exactamente a necessidade lógica e como difere da necessidade metafísica, se é que difere? Porquanto até agora tenho vindo a sugerir que a necessidade metafísica é bastante diferente da necessidade lógica — e, com efeito, num sentido importante, penso que isto é verdade — mas, ao mesmo tempo, tenho agora de reconhecer que há uma concepção perfeitamente aceitável de necessidade “lógica” que a representa quer coincidindo com a necessidade metafísica quer abrangendo-a. Veremos, contudo, que este reconhecimento não compromete de modo algum a direcção geral dos meus comentários na secção anterior.

Na secção anterior bastou-me caracterizar a possibilidade lógica de um modo algo vago, em termos de concordância com as leis da lógica, compreendendo-se a necessidade lógica de igual modo. Mas pode-se distinguir na verdade três graus diferentes de necessidade lógica, como se vê a seguir. Em primeiro lugar, há a necessidade lógica estrita — o que é verdade em virtude das leis da lógica apenas. Em segundo lugar, há a necessidade lógica restrita — o que é verdade em virtude das leis da lógica juntamente com definições de termos alógicos. E em terceiro lugar, há a necessidade lógica ampla — o que é verdade em todos os mundos logicamente possíveis, isto é, em todos os mundos possíveis em que se aplique as leis da lógica. Pode-se razoavelmente argumentar que este último grau de necessidade lógica e a necessidade metafísica são, na verdade, co-extensionais — que são, com efeito, apenas dois nomes diferentes para a mesma coisa. Ao caracterizar “amplamente” a necessidade lógica desta maneira e associando-a à noção de necessidade metafísica, limito-me a seguir uma tradição já bem estabelecida20 — embora esteja ciente do perigo de que esta tradição possa levar os filósofos incautos a ignorar a própria divisão entre a lógica e a metafísica, que me preocupei em identificar na secção anterior. Alguns filósofos, evidentemente, falam também em necessidade “conceptual”, como sinónima de um tipo de necessidade lógica. Posso aceitar isto, desde que se identifique o conceptualmente necessário com aquilo a que acabei de chamar necessidade lógica restrita. Porquanto entendo que o “conceptualmente” necessário é aquilo que é verdade em virtude de conceitos juntamente com as leis da lógica, apenas.

Evidentemente, é discutível o que as leis da lógica são, mas não precisamos de entrar nisso aqui. Há alguns candidatos razoavelmente incontroversos, como a lei da incontradição: para qualquer proposição P, não se tem que P e não-P. Assim, “Não se dá o caso de Ferdy ser uma fêmea de cavalo e Ferdy não ser uma fêmea de cavalo” é uma necessidade lógica estrita, porque é um exemplo dessa lei. Por contraste, “Não se dá o caso de Ferdy ser uma égua e Ferdy não ser uma fêmea de cavalo” é apenas uma necessidade lógica restrita, nos termos que defini, porque só se pode converter num exemplo dessa lei apoiando-se na definição de “égua”, que é um termo alógico. (O que é um termo lógico é, uma vez mais, discutível, mas em nenhuma explicação sensata se tratará “égua” como um termo lógico).

E quanto a um exemplo de necessidade lógica ampla — mais especificamente, um exemplo de tal necessidade que não seja também uma necessidade lógica estrita ou restrita? Um candidato bem conhecido e plausível seria “A água é H2O”. Mas pode-se objectar que esta proposição não pode ser verdadeira em todos os mundos logicamente possíveis, porque a água não existe em todos os mundos possíveis. Contudo, é fácil evitar esta dificuldade, de uma ou outra forma: por exemplo, pode-se distinguir entre necessidade “fraca” e necessidade “forte”, afirmando que uma proposição é fracamente necessária (no sentido lógico amplo) só se for verdadeira em todos os mundos logicamente possíveis nos quais as suas expressões referentes são invazias. Então, supondo que se deve analisar “A água é H2O” como uma afirmação de identidade flanqueada por duas expressões referentes ou nomes, mostrar-se-á apenas fracamente necessária (no sentido lógico amplo). Repare-se, contudo, que se se analisa “A água é H2O” como significando “Para qualquer x, x é água se e só se x é H2O”, a dificuldade desaparece por si, porque “A água é H2O” mostra-se então vacuamente verdadeira em todos os mundos em que a água não existe (isto é, em que nada é água e em que, pela mesma razão, nada é H2O). O que é crucial, contudo, é não ser em virtude das leis da lógica mais as definições apenas que “A água é H2O” é verdadeira em todos os mundos logicamente possíveis (ou, alternativamente, em todos esses mundos em que as suas expressões referentes são invazias) — e assim, quando uso estes termos, nem se trata de necessidade lógica estrita nem de necessidade lógica restrita. Outros candidatos possíveis ao estatuto de verdades logicamente necessárias em sentido amplo, não em sentido estrito nem em sentido restrito, seriam “Héspero é Fósforo”, “Deus existe”, “Nada é vermelho e verde ao mesmo tempo” e “Esta dor é minha”.

Assim, em virtude do quê será “A água é H2O” logicamente necessária em sentido amplo? Ora, em virtude da natureza da água! Não, portanto, em virtude das leis da lógica juntamente com os conceitos ou definições de água e de H2O. Parece perfeitamente adequado, então, chamar a este tipo de necessidade “necessidade metafísica”, uma vez que a sua base é ontológica e não formal ou conceptual. Isto pode ser uma razão, na verdade, para reservar o termo “necessidade metafísica” para as necessidades lógicas em sentido amplo que não são também logicamente necessárias em sentido restrito nem em sentido estrito. Podíamos então afirmar também, legitimamente, como fazem muitos filósofos, que o não ser conhecível a priori é uma característica frequente (embora não necessariamente universal) das necessidades metafísicas — em contraste com as necessidades lógicas estritas e restritas, que são caracteristicamente conhecíveis a priori. Contudo, estes temas epistemológicos e semânticos não são o foco real do nosso interesse aqui. Definir ou não “necessidade metafísica” como sinónima de “necessidade lógica em sentido amplo” ou como sinónima de “necessidade lógica em sentido amplo que não é uma necessidade lógica em sentido estrito nem em sentido restrito” é, em última instância, uma questão de escolha. Qualquer das definições servirá, desde que usemos sempre a mesma. Contudo, a favor da simplicidade e por respeito ao uso de outros filósofos, tomarei a primeira opção. Mas devo sublinhar que, embora conceda de bom grado que a necessidade metafísica de uma proposição como “A água é H2O” (ou do estado de coisas que essa proposição representa) não é conhecível a priori — porque assenta na natureza da água, que não é conhecível desse modo — quero ainda insistir que, como afirmei na secção anterior, a experiência por si não pode determinar o que é efectivo, na ausência de uma delimitação metafísica do possível. Tipicamente, tal delimitação apelará às categorias metafísicas, que são na verdade conhecíveis puramente a priori, ao contrário das categorias naturais, como a água. (Desenvolverei esta ideia em muito maior detalhe no Capítulo 8).

5. O dilema de Hale

Tem de se reconhecer que nem todos os filósofos se sentem à vontade com a noção de necessidade metafísica. Assim, num artigo recente, Bob Hale apresenta aos amigos da necessidade metafísica o que parece um dilema sério, baseado num apelo ao que Hale chama “forma generalizada da tese de McFetridge”, isto é, a tese de que se é logicamente necessário que P, então não há um sentido de “possível” em que não-P seja possível.21 Hale vê o dilema surgir da seguinte maneira:

O argumento a favor da tese de McFetridge, se é sólido, estabelece de facto que se é logicamente necessário que P, então não é possível, seja em que sentido for, que não-P, e assim, em particular, que não é metafisicamente possível que não-P, isto é, que é metafisicamente necessário que P. Mas então ou a implicação conversa se aplica muito geralmente, ou não. Se não, então pode ser metafisicamente necessário que P mas logicamente possível que não-P, pelo que a necessidade metafísica não é, afinal, absoluta. Se, por outro lado, o que quer que seja metafisicamente necessário é também logicamente necessário, então ainda que tenhamos dois tipos teoricamente distintos de necessidade, ambos absolutos, coincidem em extensão. Nenhuma alternativa é — ao que parece — agradável aos amigos da necessidade metafísica. (p. 98)

Contudo, pondo de lado a questão da solidez do argumento de Hale a favor da tese de McFetridge, gostaria de questionar as suas razões para pensar que cada um dos ramos do suposto dilema devia ser desagradável para os amigos da necessidade metafísica. Na raiz das minhas objecções está uma insatisfação com a concepção que Hale tem de necessidade lógica.

Hale parece seguir a ortodoxia ao distinguir entre dois tipos de necessidade lógica: “necessidade lógica estrita ou restrita” e “necessidade lógica ampla”.

Podemos distinguir entre a necessidade lógica estrita ou restrita e a necessidade lógica ampla; vejo a primeira como um exemplo especial da última, e não faço qualquer distinção entre [a última] e a necessidade conceptual. Doravante, quando falar de necessidade lógica sem mais ressalvas, é à necessidade lógica ampla que me refiro. (p. 94)

Contudo, embora esta terminologia seja familiar, a interpretação que Hale faz dela é peculiar. Porquanto Hale, como vimos, identifica muito explicitamente “necessidade lógica ampla” com “necessidade conceptual”, ao passo que a tradição ortodoxa — representada por Plantinga, Forbes e por eu próprio na secção anterior — entende “necessidade lógica ampla” como “verdade em todos os mundos logicamente possíveis”: e não se pode identificar o último com a “necessidade conceptual” porque não é, como regra perfeitamente geral, conhecível a priori. Na verdade, segundo a tradição, como a entendo, a “necessidade metafísica” simplesmente é “necessidade lógica ampla” como se acabou de definir, ou pelo menos é uma subcategoria da última. O próprio Hale comenta, a dada altura, que

tipicamente, defende-se que as verdades que se supõe metafisicamente necessárias são conhecíveis apenas a posteriori, enquanto as necessidades lógicas [amplas] são… conhecíveis a priori — pelo que não pode, sob pena de contradição, haver coincidência extensional [entre elas]. (pp. 98-99)

E isto está mais ou menos correcto — no seu entendimento da noção de necessidade lógica ampla. Mas não está correcto se, como a tradição ortodoxa entende, se identifica a necessidade lógica ampla com a verdade em todos os mundos logicamente possíveis.

Vejamos agora como estas considerações afectam a cogência do ataque de Hale à noção de necessidade metafísica. Porei de lado quaisquer dúvidas acerca do seu argumento a favor da tese de McFetridge, porque aceito que, no seu entendimento do que constitui a “necessidade lógica ampla”, a tese é praticamente correcta. Focar-me-ei, então, no dilema que se supõe que isto cria aos amigos da necessidade metafísica. Supõe-se que o primeiro ramo do dilema surge se o metafísico aceita a necessidade metafísica de P e, no entanto, a possibilidade lógica de não-P — porquanto aí, afirma Hale, tem de se conceder que a necessidade metafísica não é “absoluta” mas “relativa”. Se o metafísico realmente deve ou não aceitar isto, depende de compreendermos a noção de “possibilidade lógica ampla” no sentido de Hale ou no sentido ortodoxo, isto é, como equivalente à possibilidade conceptual ou como equivalente à verdade num mundo logicamente possível. Mas, pondo de parte esse assunto por enquanto, qual é supostamente o problema, para os amigos da necessidade metafísica, em conceder que a necessidade metafísica não é “absoluta” mas “relativa”, nos termos de Hale?

Nesta fase, temos de compreender exactamente o que Hale entende por necessidade “relativa”. Eis o que afirma:

Ao afirmar que uma noção de necessidade — necessidade-N — é relativa, pretendo dizer que há um corpo de afirmações tal que afirmar que é N-necessário que P é afirmar nada mais, nada menos, que P é uma consequência lógica de N. (p. 93)

Segundo Hale, portanto, o metafísico que aceita a relatividade da necessidade metafísica tem de aceitar que afirmar a necessidade metafísica de P é afirmar nada mais, nada menos, que, para dado corpo de afirmações M, P é uma consequência lógica de M. Mas por que seria isto desagradável para os amigos da necessidade metafísica? Não vejo qualquer mal em aceitar a ideia em causa. Sem dúvida que há um conjunto de afirmações ou proposições verdadeiras Mgrosso modo, as que caracterizam as “naturezas” de todas as entidades que preenchem o mundo — tais que toda a afirmação metafisicamente necessária ou proposição P é uma consequência lógica de M (isto é, pode deduzir-se de M). Assim, “A água é H2O” seria uma consequência de M, em virtude de M incluir uma caracterização da natureza da água. Evidentemente, pelo menos neste caso, a consequência é trivial, porquanto a melhor maneira de caracterizar a natureza da água é nos termos da própria proposição em causa, “A água é H2O”. Contudo, não nos devíamos sentir tentados a pensar que isto implica a semelhança de estatuto entre a necessidade metafísica e, digamos, a necessidade física. Porquanto — pelo menos a meu ver— toda a afirmação em M exprimirá ela própria uma necessidade lógica ampla, isto é, será verdadeira em todos os mundos logicamente possíveis. Pelo que não é como se afirmássemos que “é metafisicamente necessário que P” é analisável como se tivesse o mesmo significado que, ou fosse definicionalmente equivalente a, “P é uma consequência de M” (em que se define M como algo semelhante ao conjunto de todas as verdades acerca das naturezas de todas as entidades). Visto que não podemos definir a noção da “natureza” de algo independentemente da noção de necessidade metafísica. (Além disso, já temos uma definição de “necessidade metafísica”, em termos de verdade em todos os mundos logicamente possíveis, e esta definição não refere “naturezas”. Evidentemente, pode-se debater quão esclarecedora é em última instância a nossa definição — e isso dependerá de quão esclarecedor consideremos que seja o discurso acerca de “mundos possíveis”. Não vou, contudo, prosseguir esta questão agora, embora, em capítulos posteriores, regressemos a questões respeitantes a mundos possíveis.)

Portanto, o que quero dizer é que os amigos da necessidade metafísica podem aceitar de muito bom grado que, tecnicamente falando, a necessidade metafísica se qualifica como uma espécie de necessidade “relativa”, nos termos de Hale. Aqui observo que, no que diz respeito à “relatividade” da necessidade “relativa”, Hale comenta:

A relatividade da necessidade- consiste no facto de que, embora nenhuma afirmação -necessária possa ser falsa, desde que todos os membros de sejam verdadeiros, não se exclui haver outros sentidos de “possível” em que os membros de podem ser falsos. (p.93)

Mas, enquanto no caso da necessidade física é evidente que os membros do conjunto relevante podem ser falsos nalguns mundos logicamente possíveis, isto não acontece, a meu ver, no caso da necessidade metafísica. A necessidade metafísica, a meu ver, é tão “dura” quanto qualquer outro tipo de necessidade.

Por que pensará Hale, contudo, que aceitar a relatividade da necessidade metafísica deve ser desagradável para os amigos da necessidade metafísica? Pela seguinte razão:

Aceitar que a necessidade metafísica não é absoluta é reconhecer que embora seja, digamos, metafisicamente necessário que o calor é a energia cinética média das moléculas, há mundos possíveis — mundos logicamente possíveis — em que isto não é assim [e no entanto]… o que os metafísicos queriam defender é que, dado que o calor é a energia cinética média das moléculas, não há mundos possíveis em que a constituição do calor não seja essa. (p. 98)

O que Hale aqui afirma é que se a necessidade metafísica não é “absoluta”, então pode ser metafisicamente necessário que P e ainda assim dar-se o caso que não-P é verdadeiro num mundo logicamente possível. Mas Hale não tem de todo em todo o direito de afirmar isto, dado que o que entende por “possibilidade lógica ampla” é a possibilidade conceptual, e não (como a tradição ortodoxa entende) a verdade num mundo logicamente possível. Tudo o que Hale tem direito a afirmar, nos seus próprios termos, é que se a necessidade metafísica não é “absoluta”, então pode ser metafisicamente necessário que P e ainda assim dar-se o caso que não-P é conceptualmente possível. Mas aceitar a última não devia, de modo algum, ser desagradável aos amigos da necessidade metafísica. Por exemplo, deviam aceitar de muito bom grado que, embora seja metafisicamente necessário que a água é H2O, é ainda assim conceptualmente possível que a água não seja H2O — porquanto a própria ideia que os metafísicos querem estabelecer é que a necessidade daquela identidade se funda na natureza da água e não nos nossos conceitos de “água” e “H2O”.

Tendo neutralizado o primeiro ramo do suposto dilema de Hale, voltemo-nos para o segundo, que supostamente surge se o metafísico argumentar que a necessidade metafísica e lógica são extensionalmente coincidentes. Qual é supostamente o problema neste caso? Eis o que Hale afirma:

aceitar que a necessidade lógica e a metafísica coincidem extensionalmente pouco mais desejável é. Como se podia defender que, por exemplo, a identidade do calor e da energia cinética média das moléculas é logicamente necessária? Além do mais, defende-se tipicamente que tais supostas verdades metafisicamente necessárias são conhecíveis apenas a posteriori, enquanto as necessidades lógicas são… conhecíveis a priori — pelo que não pode haver, sob pena de contradição, coincidência extensional. (pp. 98-99)

Mais uma vez, temos como responder prontamente às reservas de Hale. Seguramente que o metafísico não deve aceitar a coincidência entre a necessidade metafísica e aquilo a que Hale chama “necessidade lógica ampla”, isto é, necessidade conceptual, mas pode de bom grado admitir que a primeira coincide com aquilo que a tradição ortodoxa entende por “necessidade lógica ampla”, nomeadamente, a verdade em todos os mundos logicamente possíveis — visto que, como observei antes, a última não é, como regra perfeitamente geral, conhecível a priori.

Para concluir: não creio que os argumentos de Hale representem qualquer perigo real para os amigos da necessidade metafísica. A tese de McFetridge está correcta (ou praticamente correcta), mas é inócua, se interpretada como uma tese acerca da necessidade conceptual. O metafísico devia estar preparado para aceitar que a necessidade metafísica não é “absoluta”, nos termos de Hale, na medida em que pode ser metafisicamente necessário que P e ainda assim ser conceptualmente possível que não-P. Mas isto não implica que o metafísico tenha de concordar que pode ser metafisicamente necessário que P e ainda assim não-P ser verdade num mundo logicamente possível. Porquanto o que Hale ignora crucialmente é o facto de que afirmar que não-P é conceptualmente possível não equivale a afirmar que não-P é verdadeiro num mundo logicamente possível. Num sentido perfeitamente razoável, pois, a necessidade metafísica é “absoluta” — nomeadamente, no sentido de que, se P é metafisicamente necessário, não há mundo logicamente possível (e portanto nenhum mundo de todo em todo) em que não-P seja verdadeiro.

A nossa questão original (primeiramente colocada na Secção 4) era: o que é a necessidade lógica e como difere da necessidade metafísica, se é que difere? A minha resposta é: o termo “necessidade lógica” é multiplamente (triplamente) ambíguo e num, e só num, dos seus sentidos se pode afirmar que coincide com o significado do termo “necessidade metafísica”. Uma proposição é necessária, neste sentido, só se é verdadeira em todos os mundos logicamente possíveis, isto é, em todos os mundos em que as leis da lógica se apliquem. Este é, num sentido perfeitamente razoável, um tipo de necessidade tão “dura” como pode haver — ainda que afirmar que uma proposição P é necessária, neste sentido, seja consistente com a afirmação de que não-P é, ainda assim, possível noutro sentido, nomeadamente, no sentido em que a verdade de não-P não é excluída pelas leis da lógica juntamente com quaisquer conceitos alógicos que P implique. Este tipo de necessidade não é, amiúde, conhecível a priori, precisamente porque não se funda, amiúde, na lógica e em conceitos mas, ao invés, na “natureza” das coisas.

6. Lógica e metafísica

Afirmei que P é logicamente necessária em sentido estrito só no caso de P ser verdadeira “em virtude das leis da lógica apenas”. Contudo, isto talvez pareça levantar o espectro de um problema de regressão, do tipo que o próprio Hale investiga no final do seu artigo. Afirmar que P é verdadeira em virtude das leis da lógica apenas é, aparentemente, afirmar que P ou é em si uma lei da lógica, ou então segue-se de — é uma consequência lógica de — tais leis. Mas, no último caso, o que acontece ao estatuto da proposição que afirma que P é uma consequência lógica das leis? Devemos ver essa proposição, também, como logicamente necessária em sentido estrito? Se sim, então temos de afirmar ou que a própria proposição é uma das leis ou que é uma consequência dessas leis. E no último caso, teremos então de considerar a proposição adicional de que a proposição em causa é uma consequência das leis — e assim sucessivamente.

Haverá de facto aqui um problema latente? Consideremos um exemplo específico de proposição logicamente necessária em sentido estrito, como “Não se dá o caso de Ferdy ser uma fêmea de cavalo e de Ferdy não ser uma fêmea de cavalo”. Isto não é em si uma lei da lógica, porque contém termos alógicos. Mas é uma consequência lógica — porque é um exemplo — da lei lógica da incontradição: “Para qualquer proposição P, não se dá o caso de P e não-P.” O que temos então de considerar é o estatuto da proposição adicional: “A proposição que não se dá o caso de Ferdy ser uma fêmea de cavalo e de Ferdy não ser uma fêmea de cavalo é um exemplo da lei da lógica segundo a qual para qualquer proposição P, não se dá o caso de P e não-P”. Chame-se a esta proposição “X”. Devemos afirmar que X, como as duas proposições a que se refere, é logicamente necessária em sentido estrito? Evidentemente, X não é ela própria uma lei da lógica. Pelo que é então uma consequência lógica das leis da lógica — e se é assim, quais são as leis relevantes? A reposta parece ser que faríamos bem em não procurar tais leis, porque mesmo que encontrássemos alguma, surgiria um problema estruturalmente similar um nível acima.

Mas o que fará X ser verdadeira, necessariamente verdadeira, se não é logicamente necessária em sentido estrito? Bem, X exprime uma relação entre determinadas proposições, isto é, entre determinadas entidades abstractas que existem em todos os mundos possíveis. E essa relação verifica-se em todos os mundos logicamente possíveis, de modo que X é logicamente necessária em sentido amplo. Não chega? Proposições logicamente necessárias em sentido estrito são verdadeiras em virtude das leis da lógica apenas — e por vezes isto é uma questão de as proposições em causa serem consequências lógicas dessas leis: mas as proposições verdadeiras que afirmam a existência de relações de consequência lógica entre outras proposições são apenas logicamente necessárias em sentido amplo — exprimem necessidades metafísicas. A lição parece ser que a lógica, em sentido estrito, tem sustentação na metafísica — como na verdade acontece com qualquer outra disciplina intelectual. Isto serve para reforçar a nossa conclusão anterior de que não se pode pedir à lógica que faça por si o trabalho da metafísica.

7. Metafísica, efectividade e experiência

Tendo agora explicado por que o domínio da possibilidade metafísica constitui um palco de investigação racional distinto, quero regressar à questão de saber o que a metafísica nos pode dizer acerca da realidade. Sugeri que a metafísica por si apenas nos pode dizer o que é metafisicamente possível, e não qual de diversas possibilidades metafísicas alternativas se verifica efectivamente. Mas há que aperfeiçoar um pouco esta afirmação, evidentemente. Em primeiro lugar, seria insensato excluir completamente a possibilidade de a metafísica por si (ou quando muito em conjunção com a lógica) estabelecer a existência de alguns estados de coisas metafisicamente necessários. Na verdade, pareceria incoerente tentar excluir isto, dado que se pode estabelecer que alguns estados de coisas não são metafisicamente possíveis, derivando uma contradição a partir da suposição de que são possíveis: porquanto estabelecer desse modo que não é metafisicamente possível que S exista é estabelecer que é metafisicamente necessário que S não exista. Contudo, o que se pode estabelecer por tais meios puramente lógicos não será uma necessidade metafísica substancial, mas uma mera impossibilidade lógica (no sentido estrito ou no sentido restrito). Seria muito mais difícil estabelecer uma necessidade metafísica substancial, como a existência necessária de Deus ou do tempo. Em segundo lugar, as conclusões dos argumentos metafísicos terão amiúde a forma de afirmações condicionais, cuja verdade incondicional é demonstrada por tais argumentos. Por exemplo, tal conclusão poderá ser que se o tempo é real, então tem de existir uma substância persistente. O facto de a metafísica produzir amiúde conclusões com esta forma não entra em conflito de modo algum com a afirmação de que o objectivo primário da metafísica é estabelecer a possibilidade metafísica de diversos estados de coisas e que, em geral, não nos diz por si que este ou aquele estado de coisas se verifica efectivamente. Na verdade, estabelece-se amiúde a possibilidade de um estado de coisas mostrando que se verificaria necessariamente se outro estado de coisas, que já se mostrou ser possível, se verificasse.

Como vamos então formar juízos racionais sobre que diversas alternativas metafísicas possíveis se verificam efectivamente? Numa palavra: pela experiência. Sabendo como o mundo podia ser relativamente à sua estrutura fundamental, temos de ajuizar, tão bem como podemos, como o mundo é, determinando quão bem se pode acomodar a nossa experiência a esta ou àquela possibilidade metafísica alternativa no que diz respeito a essa estrutura.22 Isto pode parecer dar à teorização metafísica um estatuto semelhante ao da teorização científica, mas a semelhança é apenas superficial. Um juízo segundo o qual o mundo exibe efectivamente dada característica metafísica — por exemplo, que contém substâncias ou que o tempo é real — será, na verdade, um juízo a posteriori, reagindo aos indícios da experiência. Mas o conteúdo do juízo retém ainda o seu carácter modal, exprimindo uma possibilidade metafísica genuína, que contudo se ajuizou estar em acto. Esta perspectiva do estatuto epistemológico das afirmações metafísicas, ao mesmo tempo a posteriori e modais, é obviamente semelhante à perspectiva que de comum se associa a Kripke. Este afirma, por exemplo, que algumas verdades de identidade e constituição são metafisicamente necessárias e no entanto apenas conhecíveis a posteriori.23 O que se pode conhecer a priori, segundo Kripke, é apenas que se há uma identidade entre os objectos a e b, então é metafisicamente necessária — mas que há tal identidade só pode ser conhecido a posteriori. Na verdade, não estou inteiramente convencido desta afirmação kripkiana em particular — ou, pelo menos, do argumento de Kripke a seu favor — nem da afirmação relacionada de que a constituição original de um objecto é metafisicamente necessária.24 Mas subscrevo entusiasticamente a sua percepção de que a metafísica se pode ocupar ao mesmo tempo de verdades modais e, no entanto, produzir respostas para questões acerca da efectividade que têm, e têm de ter, um carácter a priori.

Kant, evidentemente, pensou o contrário. Pensou que na medida em que a metafísica nos pode dizer seja o que for acerca da efectividade, tem de emitir juízos a priori. Tem de nos dizer, independentemente de qualquer recurso aos indícios da experiência, que o mundo tem de ser assim e assado. E as suas respostas não podem ser meras verdades analíticas, que revelariam apenas relações lógicas entre alguns dos nossos conceitos, sem qualquer garantia de que esses conceitos correspondam à realidade. Tem portanto de gerar verdades necessárias, substanciais, a priori — uma tarefa difícil. Não admira que Kant tenha concluído que o mundo “efectivo” de que fala a metafísica só possa ser o mundo fenoménico como dele se tem humanamente experiência, e não a realidade “tal como é em si”. Mas se abdicarmos da vã esperança de que a metafísica possa produzir argúcias absolutamente certas e inalteráveis sobre a natureza fundamental das coisas, podemos reter a convicção de que a metafísica em si é uma disciplina a priori viável, e que além disso lida com possibilidades reais — isto é, possibilidades da realidade “tal como é em si”.

Kant objectaria aqui que as “categorias” só são passíveis de uso legítimo quando restringidas a objectos no espaço e no tempo, que Kant considera serem fenoménicos. Mas tal restrição é totalmente injustificada e a tentativa de a impor leva Kant a cair em autocontradição. Se o espaço e o tempo são ou não “fenoménicos” e não, portanto, características da realidade independentemente do modo como dela temos experiência, é em si uma importante questão metafísica — pelo que, na medida em que o próprio Kant procura dar uma resposta razoável a esta questão, não pode consistentemente afirmar que a metafísica se ocupa ou devia ocupar apenas do modo como as coisas são no mundo fenoménico. Quando examinamos os seus argumentos a favor do estatuto fenoménico do espaço e do tempo, vemos que Kant afirma, por exemplo, que se o espaço fosse real, teria de ser uma “inentidade” real, aparentemente porque não poderia ser uma substância nem uma relação entre substâncias.25 Mas isto é apenas um argumento metafísico: que não considero muito persuasivo, na verdade, mas que ainda assim se conforma à concepção de metafísica que venho a defender. E o ponto crucial é que não respeita a restrição kantiana oficial de se falar apenas em objectos no mundo fenoménico da experiência humana. (Como podia respeitar essa restrição, dado ser um argumento a favor do estatuto fenoménico desse mundo?) É na verdade possível que o espaço e o tempo sejam “irreais”, no sentido de que o nosso melhor juízo a respeito de como, efectivamente, a realidade está fundamentalmente estruturada não encontrará aplicação para estas noções. Mas se é assim, ter-se-á chegado a esse juízo em parte através de argumentação metafísica em que se usou as categorias (não exactamente as categorias de Kant, evidentemente) de uma maneira que não foi limitada pela restrição que Kant procurou estabelecer.

Resta saber exactamente como a experiência nos pode permitir, na minha perspectiva, avançar a partir de um juízo de possibilidade metafísica para uma afirmação de que tal possibilidade é efectiva. Mas não há um algoritmo geral para descobrir aqui. Tem de se avaliar cada caso individualmente, segundo o seu próprio mérito. Esta é uma razão por que a visão dummettiana de como resolver os excepcionais problemas da metafísica pela estratégia geral de examinar a aplicabilidade do princípio de ambivalência parece algo simplista. Pode-se esperar que haja pouca semelhança entre os géneros de consideração empírica que serão relevantes para a questão de o tempo ser ou não real, e o modo como serão relevantes para a mesma, e os tópicos correspondentes, respeitantes à questão de o eu ser ou não real, por exemplo. Contudo, um exemplo simples ilustrará como, num caso particular, as considerações empíricas podem interagir com argumentos metafísicos a priori para motivar uma afirmação acerca da realidade efectiva.

Considere-se, como exemplo a analisar, a afirmação de David Lewis de que os objectos persistentes perduram em vez de durar — isto é, persistem em virtude de terem partes temporais sucessivas em momentos sucessivos do tempo. Lewis argumenta a favor desta perspectiva com base, entre outras coisas, em que só assim podermos explicar a possibilidade de tais objectos estarem sujeitos à mudança intrínseca, isto é, sujeitos à mudança nas suas propriedades intrínsecas ou irrelacionais, como uma mudança de ter uma forma curva para ter uma forma recta.26 Lewis defende que são diferentes partes temporais do objecto persistente que têm de ter as diferentes formas, de modo que o objecto persistente apenas as tem derivativamente, em virtude de consistir numa sucessão de tais partes, algumas das quais têm formas diferentes. A isto se pode responder que se todos os objectos capazes de sofrer mudança intrínseca são em última instância compostos de objectos intrinsecamente imutáveis — um género de “átomos” — a cujas propriedades sobrevêm as propriedades daqueles objectos mutáveis, então não precisamos afinal de supor que quaisquer objectos persistentes têm partes temporais.27 Os átomos não precisam de as ter, porque, por hipótese, não sofrem mudança intrínseca. Tão-pouco precisam os objectos intrinsecamente mutáveis que são compostos pelos átomos, porque, na explicação proposta, uma mudança intrínseca nas propriedades de um objecto composto é em última instância apenas uma mudança nas relações entre os seus constituintes atómicos. Se esta resposta nos convence ou não, é irrelevante aqui (embora examinemos a questão muito mais profundamente no Capítulo 5). O que agora interessa é apresentar uma oportunidade de combinar a argumentação metafísica com a teoria científica empírica de modo a alcançar um juízo sobre se uma determinada perspectiva metafísica é ou não, na realidade, plausivelmente verdadeira — neste caso, a perspectiva de que os objectos persistentes têm partes temporais. Se o argumento metafísico que se acabou de dar é sólido e se for também verdade que a ciência empírica nos dá boas razões para pensar que o atomismo (numa qualquer forma adequada) está correcto, então teremos razões — em parte a posteriori — para afirmar que os objectos persistentes não têm, de facto, partes temporais.

Por estranho que pareça, muitos filósofos sentem-se pouco à vontade em combinar considerações empíricas e metafísicas desta maneira: fazem comentários acerca dos perigos de se “abusar da sorte” — isto é, de se abrir à possibilidade de as suas próprias afirmações acerca das características metafísicas da realidade efectiva serem comprometidas por desenvolvimentos na teoria científica empírica. Isto, penso, só pode ser porque ainda perseguem o impossível sonho “racionalista” de poder determinar a estrutura fundamental da realidade completamente a priori e com absoluta certeza. Kant ensinou-nos que isto é na verdade um sonho. Mas, lamentavelmente, em vez de continuar a trabalhar sobre a realidade, Kant optou pelo conforto da certeza e da inviolabilidade empírica. A mensagem que tenho procurado transmitir neste capítulo — e que espero reforçar ao longo do livro — é que a metafísica pode de facto ser acerca da realidade, e que pode evitar cair na teoria científica empírica, desde que aprendamos a ficar satisfeitos com o facto de, no que diz respeito à efectividade, a metafísica não nos poder dar certezas.

E. J. Lowe
The Possibility of Metaphysics (Oxford: Oxford University Press, 2001).

Notas

  1. Veja-se Immanuel Kant, Crítica da Razão Pura, B 22.
  2. Veja-se W. V. Quine, “Two Dogmas of Empiricism”, no seu From a Logical Point of View, 2.ª ed. (Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1961).
  3. Veja-se Saul Kripke, Naming and Necessity (Oxford: Blackwell, 1980).
  4. Subentende-se que estou a pôr em causa tanto a distinção de P. F. Strawson entre a metafísica “descritiva” e a “revisionista” como a sua rejeição da segunda: veja-se o seu Individuals: An Essay in Descriptive Metaphysics (Londres: Methuen, 1959), 9 ss.
  5. Não partilho o cepticismo de Donald Davidson quanto a isto, por ele expresso em 'On the Very Idea of a Conceptual Scheme': Veja-se o seu Inquiries into Truth and Interpretation (Oxford: Clarendon Press, 1984).
  6. Veja-se Michael Dummett, The Logical Basis of Metaphysics (Londres: Duckworth, 1991), Introdução.
  7. Veja-se Michael Dummett, Origins of Analytical Philosophy (Londres: Duckworth, 1993), ch. 13.
  8. Veja-se Michael Dummett, Frege: Philosophy of Language, 2.ª ed. (Londres: Duckworth, 1981), cap. 4. Veja-se também Crispin Wright, Frege's Conception of Numbers as Objects (Aberdeen: Aberdeen University Press, 1983), 53 ss., e Bob Hale, Abstract Objects (Oxford: Blackwell, 1987), cap. 2.
  9. Explico isto mais completamente no meu “Objects and Criteria of Identity”, in Bob Hale e Crispin Wright, orgs., A Companion to the Philosophy of Language (Oxford: Blackwell, 1997), e no Capítulo 2.
  10. Tenho aqui em mente o que W. V. Quine diz em “Speaking of Objects” e “Ontological Relativity”: Veja-se o seu Ontological Relativity and Other Essays (Nova Iorque: Columbia University Press, 1969).
  11. Examino várias definições deste género no meu “Ontological Dependency”, Philosophical Papers, 23 (1994), 31–48, e no Capítulo 6.
  12. Compare-se Barry Smith, “Logic, Form and Matter”, Proceedings of the Aristotelian Society, vol. sup. 55 (1981), 47-63.
  13. Veja-se Language, Thought and Reality: Selected Writings of Benjamin Lee Whorf, org. J. B. Carroll (Cambridge, Mass.: MIT Press, 1956). Para críticas à perspectiva de Whorf's veja-se Michael Devitt e Kim Sterelny, Language and Reality (Oxford: Blackwell, 1987), caps. 10 e 12.
  14. Veja-se Gareth Evans, “Can There Be Vague Objects?”, Analysis, 38 (1978), 208.
  15. Veja-se o meu “Vague Identity and Quantum Indeterminacy”, Analysis, 54 (1994), 110–114, e também o Capítulo 3.
  16. Veja-se também o meu “The Metaphysics of Abstract Objects”, Journal of Philosophy, 92 (1995), 509-204, e os Capítulos 2 and 3.
  17. Veja-se uma vez mais o meu “Vague Identity and Quantum Indeterminacy”, e o Capítulo 3.
  18. Veja-se o meu “Substance, Identity and Time”, Proceedings of the Aristotelian Society, vol. sup. 62 (1988), 61–78, e o Capítulo 5.
  19. Veja-se o meu “The Indexical Fallacy in McTaggart's Proof of the Unreality of Time”, Mind, 96 (1987), 62–70, e o Capítulo 4.
  20. Veja-se, por exemplo, Alvin Plantinga, The Nature of Necessity (Oxford: Clarendon Press, 1974), 2, e Graeme Forbes, The Metaphysics of Modality (Oxford: Clarendon Press, 1985), 2. Como veremos já de seguida, contudo, alguns filósofos — como Bob Hale, num artigo que discutiremos na próxima secção — não seguem esta tradição.
  21. Veja-se Bob Hale, “Absolute Necessities”, in James E. Tomberlin, org., Philosophical Perspectives, 10: Metaphysics (Oxford: Blackwell, 1996), 98. Veja-se também Ian McFetridge, “Logical Necessity: Some Issues”, no seu Logical Necessity and Other Essays (Londres: Aristotelian Society, 1990).
  22. Aqui poderá objectar-se que a circularidade — ou pelo menos o relativismo — ameaça surgir por causa da minha tese concomitante de que a própria experiência está, digamos, metafisicamente carregada. Mas este facto não tem de ser mais problemático do que a natureza teoricamente carregada da observação no caso das teorias científicas. No máximo, tudo o que tem de se abandonar é qualquer fundacionalismo simplista em qualquer dos domínios de investigação, aceitando-se um género qualquer de falibilismo.
  23. Veja-se Kripke, Naming and Necessity, 97 ss.
  24. Veja-se o meu “On the Alleged Necessity of True Identity Statements”, Mind, 91 (1982), 579-84.
  25. Veja-se Kant, Crítica da Razão Pura, A 39-40, B 56-7. Que tal inentidade [Unding] não possa existir na realidade é, evidentemente, uma tese metafísica em si, cuja verdade precisa de ser estabelecida para que o argumento de Kant seja bem-sucedido. A passagem relevante da Crítica ficou como se segue na tradução de Kemp Smith: “Those … who maintain the absolute reality of space and time, whether as subsistent or only as inherent … [either] have to admit two eternal and infinite self-subsistent non-entities (space and time), which are there (yet without there being anything real) only in order to contain in themselves all that is real [zwei ewige und unendliche für sich bestehende Undinge (Raum und Zeit) … welche dasind (ohne dass doch etwas Wirkliches ist), nur um alles Wirkliche in sich zu befassen] … [or] are obliged to deny that a priori mathematical doctrines have any validity in respect of real things (for instance, in space)”.

    Os alvos de Kant são, é claro, as perspectivas de Newton e de Leibniz respectivamente. Esta sua objecção à teoria relacional do espaço pressupõe que é correcta a sua perspectiva de que as verdades geométricas têm um estatuto sintético a priori — uma perspectiva que já não pode ser levada a sério. Mas mesmo que tal perspectiva da geometria fosse correcta, não pode ser válido argumentar a favor do estatuto fenomenal do espaço partindo de bases puramente epistémicas; é preciso, além disso, estabelecer pelo menos que é impossível que tenhamos conhecimento substancial a priori de uma realidade independente da mente, e esta é uma tese metafísica. Noutra passagem, é claro, Kant usa o argumento das contrapartes incongruentes contra a teoria relacional, apesar de este ser, uma vez mais, um argumento claramente metafísico no meu sentido. (Veja-se, especialmente, a obra pré-crítica de Kant, “Concerning the Ultimate Foundation of the Differentiation of Regions in Space”, in Kant: Selected Pre-Critical Writings, trad. G. B. Kerferd e D. E. Walford, Manchester: Manchester University Press, 1968.)

    Decidi incluir, a propósito, o alemão original na minha citação acima da Crítica, nos passos em que a tradução de Kemp Smith não é inteiramente perspícua. Por wirklich penso que Kant não quer aqui dizer apenas “real” no sentido de ser objectivamente existente, pois isso faria a sua oração subordinada [welche dasind (ohne dass doch etwas Wirkliches ist)] exprimir algo que é quase uma contradição (“não pode haver algo “ali” — nem mesmo uma “inentidade” — sem haver algo que existe”). Assim — pelo menos aqui — penso que Kant quer dizer, com wirklich, “real” num sentido mais substancial, talvez um sentido que implique ser eficiente (wirksam, em alemão). Uma crítica conhecida à concepção newtoniana do espaço absoluto, é claro, é que é difícil ver como a existência do espaço, concebido dessa maneira, poderia fazer qualquer diferença relativamente ao comportamento das coisas físicas. (Este é, uma vez mais, um argumento metafísico.) Para uma discussão relacionada com esta, sobre o uso que Frege faz da palavra wirklich, veja-se Michael Dummett, Frege: Philosophy of Mathematics (Londres: Duckworth, 1991), 80–81.

  26. Veja-se David Lewis, On the Plurality of Worlds (Oxford: Blackwell, 1986), 202 ss.
  27. Veja-se além disso o meu “Lewis on Perdurance versus Endurance”, Analysis, 47 (1987), 152–154, o meu “The Problems of Intrinsic Change: Rejoinder to Lewis”, Analysis, 48 (1988), 72–77, e o Capítulo 5.
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