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2 de Agosto de 2010   Filosofia

A possibilidade da filosofia

Desidério Murcho

A filosofia ocupa-se de problemas fundacionais insusceptíveis de resolução científica, recorrendo à análise minuciosa, teorização intensa, formulação rigorosa e argumentação imaginativa. Um matemático só se ocupa de problemas que possam ser resolvidos recorrendo a técnicas matemáticas; o filósofo procura saber o que é um número. Um físico procura determinar vários aspectos da constituição íntima da matéria que podem ser determinados matemática e experimentalmente; um filósofo procura saber o que é exactamente um particular, por oposição a um universal. Um artista pinta quadros, pressupondo o valor da arte e a sua natureza; o filósofo pergunta-se qual é o valor e a natureza da arte. Um sociólogo pergunta o que pensam as pessoas acerca do aborto, tendo em conta a sua origem social, grau de instrução ou filiações religiosas e políticas; o filósofo faz a pergunta fundacional de saber se o aborto é moralmente permissível e porquê.

Esta caracterização da filosofia pode ser vista como a demonstração de que a filosofia é destituída de integridade cognitiva, tendo de ser entendida como mera actividade opinativa, porventura gratuita e vácua, ou como um espectáculo cultural refinado. Isto porque de um ponto de vista cientificista só há duas hipóteses:

  1. Ou uma actividade tem uma metodologia empírica (como a biologia ou a história) ou formal (como a matemática), caso em que faz sentido entregarmo-nos a tal actividade precisamente porque estamos a ver desde o início como podemos chegar a resultados, ainda que negativos e parciais; ou
  2. Não tem tal metodologia, mas nesse caso não tem qualquer interesse cognitivo, devendo antes ser encarada como um entretenimento cultural que serve para amenizar as tardes pardas da melancolia, sussurrando-nos ao ouvido palavras agradáveis, ou produzindo prazeres estéticos ou outros, sem qualquer intenção cognitiva — precisamente porque se pressupõe desde o início que só vale a pena ter pretensões cognitivas quando se vê com alguma certeza como iremos obter resultados.

Como a filosofia não dispõe de metodologias empíricas nem formais que permitam ver desde o início como se poderá obter resultados, ainda que parciais e negativos, é grande a tentação de conceber a filosofia como entretenimento cultural ou cultura geral. A filosofia deixa então de ser entendida como uma actividade que visa resolver problemas, e passa a ser entendida como uma maneira de ver o mundo, sendo cada uma dessas maneiras de ver o mundo como que outros tantos óculos que gostamos de experimentar para ver as mesmas coisas com cores diferentes.

Sendo a filosofia uma disciplina fundacional, ocupa-se de problemas que geralmente passam despercebidos, porque se ocultam nos pressupostos invisíveis que usamos no dia-a-dia, nas ciências, nas artes e nas religiões. É fácil compreender os problemas da sociologia, por exemplo, ou da biologia, porque são empíricos; trata-se de saber como são as coisas que podemos medir, observar e sistematizar cientificamente. E é fácil compreender os problemas básicos da matemática porque a disciplina só se põe problemas que possam ser pelo menos em princípio resolvidos usando os seus próprios métodos.

Mas os problemas fundacionais de que nos ocupamos em filosofia são diferentes; não são claramente de carácter empírico, nem de carácter formal. Isto significa que nem os métodos das ciências empíricas nem os das ciências formais são adequados para resolver os problemas da filosofia. Assim, a tentação é defender que tais problemas ou podem ser interpretados de outro modo — como problemas hermenêuticos, linguísticos ou lógicos, como problemas de história da filosofia ou das ideias, como problemas psicológicos ou sociais — ou devem ser abandonados por serem insusceptíveis de resposta cabal, podendo apenas ser objecto de opiniões a esmo, sem integridade cognitiva.

Compreende-se a natureza da filosofia quando se vê que esta reacção contra a possibilidade da filosofia enquanto prática cognitivamente íntegra é, ela mesma, uma posição filosófica, que podemos formular explicitamente como se segue:

1) As únicas perguntas cuja resposta vale a pena procurar são aquelas para as quais já temos uma metodologia estabelecida que permita dar-lhes resposta.

Precisamente porque não podemos demonstrar esta posição, nem argumentar a seu favor, recorrendo exclusivamente a uma metodologia científica ou matemática estabelecida, trata-se de uma posição filosófica; a única maneira de a sustentar é argumentar filosoficamente a seu favor. Mas então esta posição filosófica é arbitrária porque argumentar a favor de 1 implica responder à seguinte pergunta:

2) Será 1 verdadeira?

Segundo os próprios critérios de 1, só valeria a pena investigar 2 caso tivéssemos de antemão metodologias estabelecidas para dar-lhe resposta. Assim, a posição 1 é arbitrária porque pelos seus próprios critérios não podemos ter razões para aceitá-la uma vez que a pergunta por essas razões só deve ser formulada se soubermos de antemão dar-lhe resposta, coisa que não sabemos.

Quando esta estranheza perante a natureza da filosofia é claramente formulada compreende-se que é, se não incoerente, pelo menos teoricamente instável. No entanto, a pressão que a ciência exerceu sobre os próprios filósofos foi tal que muitos deles defenderam ideias análogas a 1 — considerando, todavia, que o que eles faziam era dar respostas definitivas a perguntas que eram legítimas porque eles sabiam dar-lhes resposta.

Vejamos o caso de David Hume (1711–1776), que conclui a sua Investigação sobre o Entendimento Humano com estas palavras:

Quando percorremos as bibliotecas, persuadidos destes princípios, que devastação temos de fazer? Se deitarmos mão a qualquer volume — de teologia ou metafísica de escola, por exemplo — perguntemos: Contém raciocínio abstracto sobre a quantidade ou o número? Não. Contém raciocínio experimental sobre questão de facto e existência? Não. Lançai-o então às chamas; pois nada pode conter senão sofismas e ilusão. (Hume, Investigação sobre o Entendimento Humano, último parágrafo)1

Os princípios aludidos são os da sua própria filosofia: Hume procurava trazer para a filosofia o tipo de métodos que tinham revolucionado a ciência a partir do século XVII, culminando no trabalho de Isaac Newton (1642–1727). Depois de analisar o conhecimento humano, Hume concluiu que a filosofia teria de ser reformada para poder avançar na senda segura da ciência. Os problemas e as teorizações que ocupavam os filósofos do seu tempo eram pura perda de tempo: investigações improfícuas que não poderiam conduzir a lado algum.

Esta posição é teoricamente instável, dado que quase nenhuma das afirmações que Hume faz neste mesmo livro é “sobre a quantidade ou o número” ou “raciocínio experimental sobre questão de facto e existência”, o que significa que pelos seus próprios critérios o seu trabalho deveria ser deitado às chamas.

Immanuel Kant (1724-1804) não é tão explícito quanto Hume, mas tem ideias análogas quanto à necessidade de reformar a filosofia porque esta, ao contrário da ciência, não gera resultados:

Se, depois de muitos preliminares e preparativos, uma ciência fica num impasse mal se aproxima da sua finalidade, ou se para alcançar a sua finalidade tem inúmeras vezes de voltar atrás e enveredar por outro caminho; ou, ainda, se se revelar impossível que os diferentes colegas cheguem à unanimidade quanto ao modo como devem entregar-se à sua finalidade comum; então podemos ter a certeza que tal estudo não passa de um tactear, longe ainda de ter entrado no rumo seguro de uma ciência; e constitui já um serviço à razão se for possível encontrar-lhe esse caminho, ainda que tenhamos de abandonar, por ser fútil, muito do que se incluía na sua finalidade, anteriormente formada sem deliberação. (Kant, Crítica da Razão Pura, BVII)2

Há algo de razoável em exigir resultados e em perguntar por que razão a filosofia não está a produzir os resultados a que se assiste nas ciências empíricas. Mas também há algo de irrazoável e de irreflectido. É verdadeiro que, entre os problemas abordados ao longo da história pelos filósofos, muitos puderam transitar para a ciência empírica mal se descobriram métodos que podiam abordá-los proficuamente.

Contudo, em primeiro lugar, caso se tivesse esperado pelos métodos empíricos antes de abordar esses problemas, é improvável que tais métodos tivessem surgido por si: apesar de ser verdadeiro que muitas vezes os métodos podem determinar novos problemas a investigar, é primariamente a vontade de investigar o que não se sabe ainda como investigar que nos pressiona a procurar métodos, e não os métodos que delimitam em absoluto tudo o que é susceptível de investigação.

Em segundo lugar, alguns dos problemas da filosofia são de tal modo fundacionais que não só não temos hoje métodos empíricos para dar-lhes resposta, como não parece sequer razoável pensar que os possamos vir a ter — pelo que temos de procurar resolvê-los mesmo sem haver métodos científicos disponíveis.

Em terceiro lugar, a própria posição segundo a qual devemos investigar apenas o que se pode investigar recorrendo exclusivamente aos métodos das ciências empíricas ou formais não é em si algo que possamos estabelecer recorrendo exclusivamente a tais métodos, pelo que esta posição é, se não incoerente, pelo menos teoricamente instável.

No tempo de Aristóteles (384-322 a.C.), os argumentos contra a possibilidade da filosofia não tinham origem no cientismo — até porque ciência e filosofia não eram então claramente separáveis — mas antes na costumeira ignávia humana, segundo a qual é vão tentar conhecer o que não é susceptível de ser conhecido pelos recursos da observação quotidiana à toa. Num e noutro caso, contudo, vê-se a mesma desvontade para descobrir o que ainda não se sabe, por via da investigação paciente das coisas — que não pode sequer ser levada a cabo numa só geração. Trata-se, em ambos os casos, de falta de imaginação: o pensamento comum é algo como “é vão investigar o que eu, agora-aqui, e com os recursos que já conheço, não estou a ver como investigar”.

Por outro lado, uma parte importante da aceitação contemporânea da ciência por parte do grande público não parece resultar da compreensão dos processos pacientes de investigação a ela associados, mas do simples facto de os resultados tecnológicos e médicos serem hoje por demais evidentes. Assim, a atitude cientificista encerra uma ironia histórica, pois os próprios cientistas foram durante séculos alvo precisamente da mesma chacota que dedicam agora à filosofia, com origem precisamente no mesmo tipo de falta de imaginação.

Não é por isso surpreendente que o argumento central de Aristóteles contra quem, no seu tempo, punha em causa a possibilidade da filosofia, se aplique ainda hoje a quem, aparentemente por outros motivos, tem a mesma atitude. O seu argumento é o seguinte:

Se há que filosofar, há que filosofar.
Se não há que filosofar, há que filosofar.
Logo, em qualquer caso, há que filosofar.

Não temos infelizmente mais do que algumas passagens do Protréptico, o livro introdutório de Aristóteles, escrito sob a forma de diálogo, onde algo como este argumento foi formulado em defesa da filosofia. Nem temos o argumento de Aristóteles verbatim, mas apenas escritos de autores posteriores que o mencionam. Na verdade, o texto de Aristóteles tem uma história curiosa: apesar de ter sido popular durante cerca de mil anos, tendo servido de inspiração ao hoje perdido Hortênsio, de Cícero (106-43 a.C.), mencionado por Agostinho (354-430 d.C.), que por sua vez serviu de inspiração ao popular Consolação da Filosofia, de Boécio (480–524 d.C.), só no século XIX Ingram Bywater (1840–1914) redescobriu alguns dos seus fragmentos. Hoje em dia, D. S. Hutchinson e Monte Ransome Johnson estão a tentar reconstruir o texto.

Em todo o caso, algo como este argumento parece ter sido usado por Aristóteles, e faz pleno sentido. A ideia fundamental está expressa na segunda premissa: é preciso filosofar para estabelecer que não há que filosofar. A filosofia é assim inevitável porque qualquer argumento contra ela terá de ser filosófico, no sentido de se basear em pressupostos filosóficos que ou o autor não demonstra, e por isso não temos razão para aceitar, ou demonstra, mas nesse caso auto-refuta-se porque terá de o fazer argumentando filosoficamente. Num certo sentido, não se pode realmente ser um antifilósofo; tudo o que podemos ser é filósofos ou afilósofos: ou discutimos os problemas da filosofia, ou lhes passamos ao lado, mas quando tentamos refutar a empresa filosófica assumindo uma pose de rebeldia antifilosófica estamos a auto-refutar-nos porque só podemos fazer isso filosoficamente.

Compare-se com o que acontece com a astrologia, por exemplo — ou a alquimia ou a numerologia. Seria deveras surpreendente argumentar contra a astrologia do seguinte modo: “A astrologia deve ser abandonada porque a posição de Mercúrio o exige”. Nenhum argumento deste género contra a astrologia seria encarado como plausível; e se os únicos argumentos concebíveis contra a astrologia fossem de carácter astrológico, como este, isso seria uma forte razão para pensar que afinal a astrologia não pode ser abandonada. Não se vê que os argumentos contra a filosofia são precisamente deste género porque os pressupostos filosóficos do nosso pensamento quotidiano, científico, artístico e religioso estão tipicamente ocultos, sendo necessário da nossa parte, para os ver, dar atenção a conteúdos mentais que estamos habituados a usar invisivelmente para pensar e não a ter como objecto do pensamento.

Portanto, quem duvida da possibilidade da filosofia mais não tem de fazer do que olhar com cuidado para a sua dúvida. Verá que a dúvida não é científica, nem matemática, nem sociológica. É filosófica. O que mostra quão fantasioso é pensar que se pode abandonar a filosofia.

Desidério Murcho

Notas

  1. Tradução minha. Uma tradução portuguesa está publicada nas Edições 70, várias edições.
  2. Tradução minha, a partir da tradução inglesa de Paul Guyer e Allen W. Wood (Cambridge University Press, 1998). Existe uma tradução portuguesa na Gulbenkian, várias edições.
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