Não vou discutir aqui se temos ou não livre-arbítrio. Vou discutir algo mais básico: a definição de livre-arbítrio. Nós usamos o termo no dia-a-dia sem nos perguntarmos muito sobre qual a sua definição. Mas julgamos saber bem o que significa.
A definição de livre-arbítrio, ao nível do senso comum, parece implicar (entre outras coisas, talvez) aquilo a que podemos chamar o princípio das possibilidades alternativas. Este é um nome muito pomposo para uma coisa muito simples! Nós dizemos coisas como estas: o Zé não roubou aquela senhora do seu livremente — a maldita droga não lhe deixou escolha; era o destino, não havia outra hipótese; eu não fiz isto livremente, não tive escolha; etc. Parece que quando dizemos que alguém fez algo livremente, estamos a dizer que, embora essa pessoa tenha feito uma coisa, podia, se assim o tivesse escolhido, ter feito outra. Estamos na fila do refeitório e estamos em dúvida sobre se havemos de escolher a maçã ou a laranja. As pessoas à nossa frente vão avançando, apercebemo-nos de que temos que fazer uma escolha depressa, senão quem está atrás de nós começa a reclamar. Vamos para a maçã. Já na mesa, arrependemo-nos. “Uma laranja é que me sabia agora bem”, dizemos. “Que Diabo!, se tivesse esticado a mão um pouco mais para a direita, era isso que estava a comer agora, e podia muito bem tê-lo feito”.
O princípio das possibilidades alternativas é um bom candidato a desempenhar um papel importante na definição de liberdade. Mas há quem não o aceite. Um exemplo famoso é Harry Frankfurt. De acordo com ele, é possível pensar em contra-exemplos ao princípio das possibilidades alternativas, isto é, é possível arranjar casos onde agimos livremente, apesar de não termos tido a possibilidade de agir de outra maneira.
O caso em que ele nos pede para pensar é mais ou menos assim: o Manel tem umas contas a ajustar com o Zé. Mas o Manel sabe que o Cajó também anda a pensar em vingar-se do Zé. E como, para além do mais, o Manel sabe que o Zé é amigo do chefe da esquadra (que não gosta nada do Manel), o plano que ele arranja é este: se o Cajó se vingar do Zé até ao final da semana, tudo bem; mas se ele não o fizer, então o Manel vai obrigá-lo a vingar-se do Zé.
(Para que este exemplo funcione, o Manel tem que fazer ao Cajó uma oferta que ele não possa recusar. Por isso, apontar-lhe uma arma à cabeça ou ameaçá-lo de paulada não chega. Ainda assim, o Cajó podia recusar-se a colaborar e preferir que o Manel lhe limpasse o sarampo. Por isso, o Manel já pensou em tudo: se o Cajó não se mostrar disposto a colaborar, ele colocar-lhe-á um aparelho na parte de trás da nuca que o porá sob seu controlo. Pronto; depois deste esclarecimento, já podemos voltar ao exemplo.)
Resultado: o Cajó vinga-se do Zé antes do fim da semana, pelo que jamais chega a saber que, de facto, não tinha outra escolha senão fazê-lo. Neste caso, Harry Frankfurt argumenta, o Cajó era livre, embora não pudesse ter agido de outra maneira.
E esta, hein? Quando me apresentaram o problema, também fiquei perplexo. Mas cheguei à conclusão de que o exemplo do Frankfurt só parece convincente porque ele está a embrulhar duas situações, fazendo-as parecer juntas, quando deviam estar separadas. Então vamos lá ver: o Cajó era livre de decidir ou não vingar-se do Zé em qualquer altura antes do fim da semana (aqui tinha escolha — era livre). Mas não era livre de decidir se acabaria ou não por se vingar do Zé (aqui já não tinha escolha — não era livre). Portanto, o Cajó era livre no que diz respeito ao primeiro caso, mas não ao segundo. Ele podia ter escolhido não se ter vingado do Zé em qualquer altura antes do fim da semana, se assim o tivesse decidido (tal como eu podia tirar a laranja em vez da maçã); mas não podia escolher se acabaria por se vingar dele ou não.
Tínhamos aqui uma amálgama valente, mas acho que ficou claro que o princípio das possibilidades alternativas não sofre nenhum beliscão com este exemplo de Frankfurt. E eu acho que está aqui para ficar.
Pedro Madeira