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10 de Novembro de 2019   Filosofia

Pós-verdade

Pedro Bravo de Souza
Post-truth
de Lee C. McIntyre
Cambridge: MIT Press, 2018, 240 pp.

“The MIT Press Essential Knowledge series” tem como objetivo publicar livros sobre temas atuais de modo acessível, conciso e bem fundamentado. Para tanto, convida especialistas renomados para oferecer uma visão geral de um assunto particular que tem chamado a atenção da sociedade. “Post-truth” do filósofo da ciência Lee C. McIntyre (Universidade de Boston) encaixa-se, perfeitamente, nessa proposta.

O livro é dividido em sete capítulos, os quais, a meu ver, dividem-se em três momentos. No primeiro momento (capítulo um), o autor delimita, de modo preciso, o conceito de pós-verdade. No segundo momento (capítulos de dois a seis), McIntyre investiga os fatores que a originaram. No terceiro e último momento (capítulo seis), ele sugere maneiras de combatê-la.

Pressupondo a definição de pós-verdade dada pelo Dicionário Oxford em 2016 no contexto do Brexit e das eleições presidenciais dos EUA — “circunstâncias nas quais os fatos objetivos são menos influentes na opinião pública do que as emoções e as crenças pessoais” —, McIntyre defende que sua novidade não é tanto a contestação de que se pode conhecer a realidade, senão a contestação da existência da própria realidade. Com efeito, o cenário da pós-verdade é caracterizado pela atitude de que alguns fatos importam mais que outros: os negacionistas climáticos prontamente aceitam o que confirma suas crenças, ao mesmo tempo em que recusam qualquer outra evidência. Mais apropriado seria dizer, portanto, que a pós-verdade se refere antes à subordinação dos fatos a preferências pessoais do que, propriamente, à inexistência da verdade.

Reconhecendo os seus perversos efeitos na sociedade como forma de supremacia ideológica, McIntyre argumenta que o primeiro passo para combatê-la é entender sua origem. Cinco são os fatores que, segundo o autor, conduziram-nos à pós-verdade:

  1. Negacionismo científico (capítulo dois);
  2. Vieses cognitivos (capítulo três);
  3. Derrocada da mídia tradicional (capítulo quatro);
  4. Surgimento das mídias sociais e fake news (capítulo cinco); e
  5. Pós-modernismo (capítulo seis).

“Negacionismo científico” é o rótulo dado a estratégias de negação da ciência colocadas em prática desde a década de cinquenta nos EUA. Pode-se analisá-las a partir de três atitudes principais: recrutamento, por parte da indústria, de cientistas que promovam apenas resultados favoráveis a ela; difamação tanto dos cientistas que produzem resultados desfavoráveis a determinada indústria quanto de suas pesquisas; e, baseando-se no caráter falível da ciência, pressão para que jornais e políticos difundam a ideia segundo a qual determinado resultado científico não é certo e que, então, há pelo menos dois lados com igual peso sobre determinado tema. Essas estratégias foram utilizadas pela indústria do tabaco e, de forma exemplar, na negação do aquecimento global antropogênico, utilizações cuja bibliografia McIntyre faz uma revisão neste capítulo. Para ele, de todo modo, a pós-verdade é uma consequência inevitável da negação de resultados científicos robustos.

Nem todo fator que possibilitou a pós-verdade é, porém, recente. Segundo McIntyre, os vieses cognitivos (padrão de distorção de juízos) presentes nos seres humanos também a facilitaram. Apoiando-se na revisão dos principais resultados sobre a temática da psicologia cognitiva, McIntyre comenta como alguns vieses favorecem a atitude de acatar apenas o que favorece preferências pessoais.1 Embora tais vieses estejam conosco há muito tempo, o autor argumenta que a diminuição de relações sociais diretas e os silos formados em redes sociais intensificaram seus efeitos, daí a pós-verdade ter emergido apenas há poucos anos.

Os próximos dois fatores que permitiram o desenvolvimento da pós-verdade estão relacionados ao papel da mídia. Resumidamente, a perda de confiança na mídia tradicional — provocada, entre outros fatores, pelo surgimento da cobertura partidária de notícias e canais de cobertura jornalística vinte e quatro horas por dia — favoreceu a ideia de que as grandes empresas midiáticas são todas enviesadas e, então, são facilmente vistas como inimigas ao publicar o que quer que seja contrário à preferência de alguém. Ao mesmo tempo, com o surgimento das mídias sociais, promoveu-se a polarização de conteúdos e a grande dificuldade de discriminar uma notícia verdadeira de uma deliberadamente falsa (fake news). De acordo com McIntyre, as fake news, embora relacionadas com a pós-verdade, não se identificam com ela. Ademais, cabe dizer que o autor endossa a tese segundo a qual as fake news teriam surgido com a própria criação da imprensa de Gutenberg em 1439, dando exemplos históricos disso.

O último elemento a originar a pós-verdade é especialmente relevante para a comunidade filosófica: o pós-modernismo. Reconhecendo que uma definição precisa do movimento é difícil, McIntyre o delimita a partir de duas teses centrais: não há verdade objetiva e qualquer declaração de verdade é meramente reflexo da agenda política de seu enunciador. Embora reconheça não haver políticos exemplares da pós-verdade citando, explicitamente, algum autor pós-moderno, McIntyre fornece três evidências de que tal movimento auxiliou em seu desenvolvimento: o fundador do movimento contrário ao ensino da teoria evolutiva nas escolas estadunidenses, Philip Johnson, cita explicitamente autores e teses pós-modernas para sustentar suas propostas e minar a credibilidade daquela teoria científica; Mike Cernovich, um dos grandes blogueiros apoiadores de Trump (517 mil seguidores no Twitter), fez o mesmo ao defender suas teorias da conspiração durante as eleições de 2016 nos EUA; e, finalmente, algumas declarações de culpa por parte de autores pós-modernos como Bruno Latour e Michael Berube, ao mostrarem-se horrorizados com a apropriação de suas ideias pela extrema-direita ou pelo negacionismo científico. McIntyre afirma que o pós-modernismo foi longe demais em sua crítica à noção de verdade e que essa situação toda indica como ideias filosóficas não são inócuas.

O último capítulo do livro dedica-se ao objetivo de combater a pós-verdade. McIntyre aí indica e fundamenta, de modo rápido, três conselhos práticos: contestar toda tentativa de negar algo fatual, promover o pensamento crítico e reportagens investigativas, autovigiar-se com relação a suas próprias crenças. No decorrer do livro, porém, outras duas recomendações foram mencionadas: entender as causas da pós-verdade e inundar a Internet de notícias verdadeiras.

Esse capítulo é, parece-me, o único defeito injustificável no livro. O autor poderia muito bem ter desenvolvido vários outros temas nos capítulos anteriores — desenvolvimentos que aparecem, de certa forma, nas notas de rodapé ao fim da obra —, mas semelhante empreitada certamente faria o livro ter outro escopo que não aquele de ser uma visão geral sobre o tema da pós-verdade. Aqui, contudo, McIntyre avisa aos leitores, de início, que fará avançar o debate sobre o contra-ataque em relação à pós-verdade, criando uma expectativa que, infelizmente, não cumpre. De modo talvez indireto, a tarefa de promover o pensamento crítico e reportagens investigativas já havia sido mencionada no próprio livro, por exemplo. Além disso, nada é dito sobre soluções no plano institucional ou político.

Não obstante o caráter inexpressivo do último capítulo, o livro aqui em análise não tem, de modo nenhum, seu mérito reduzido. Efetivamente, a proposta de oferecer uma introdução à temática da pós-verdade é satisfeita, tocando em temas centrais a ela relacionadas: negacionismo científico, vieses cognitivos, mídia tradicional e digital, fake news, pós-modernismo, entre outros. Por esse motivo, o livro certamente agradará os leitores interessados em compreender um dos fenômenos marcantes de nossa época, independentemente de suas respectivas formações.

Pedro Bravo de Souza

Nota

  1. O autor comenta os seguintes vieses cognitivos: dissonância cognitiva, conformidade social, viés de confirmação, raciocínio motivado, efeito tiro pela culatra (backfire effect) e efeito Dunning-Kruger. ↩︎
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