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16 de Julho de 2009   Filosofia da religião

Será a onisciência divina realmente incompatível com o livre-arbítrio?

Rafael Alberto S. d’Aversa

Neste ensaio discute-se o problema de saber como pode Deus ser onisciente e os seres humanos terem livre-arbítrio. A posição defendida é a de que se Deus existe, então não sabe nem influencia previamente que escolhas faremos e que, portanto, a sua onisciência não é incompatível com o livre-arbítrio (que neste trabalho é usado como sinônimo de liberdade de escolha). Após esclarecer os conceitos de Deus, presciência, livre-arbítrio e eternidade, apresentarei duas concepções mais fracas de onisciência a fim de mostrar que o fato de Deus saber tudo não afeta nossa liberdade de escolha.

Antes de explorar os aspectos aludidos acima é importante esclarecer que, ao usar o termo “Deus”, estamos nos referindo ao Deus das tradições judaica, islâmica e cristã, o qual é chamado comumente de teísta. O Deus teísta possui algumas propriedades essenciais, como a onipotência, onipresença, onisciência, onibenevolência e eternidade. Uma propriedade essencial é algo que um objeto tem e não poderia não ter, ou seja, é aquilo sem o qual o objeto deixa de ser o que é. Por exemplo: o número 2 tem a propriedade essencial de ser um número par primo. Se fosse possível retirar-lhe essa propriedade este simplesmente deixaria de ser o número 2 e seria outra coisa qualquer. Da mesma forma, se retirarmos do Deus teísta alguma de suas propriedades essenciais, este deixará de ser o Deus acima mencionado — e cultuado pelas respectivas tradições — e passará a ser outro Deus, o que, para debate no qual estamos inseridos, não é relevante.

Ao problema mencionado no início chamaremos problema da presciência. Este poderá ser mais bem compreendido através da formulação da seguinte questão: como pode Deus saber previamente que escolha faremos dado que, segundo a crença teísta, temos livre-arbítrio? Este problema, que é o foco deste ensaio, não deve ser confundido com o problema da predestinação, que é o problema de saber se poderemos ter livre-arbítrio sob a hipótese de Deus ter determinado as nossas escolhas. Assim, percebemos que se tratam de problemas distintos; entretanto, ambos dizem respeito às dificuldades que os defensores do teísmo enfrentam quando tentam compatibilizar o livre-arbítrio com os conceitos aludidos. Mas será que a predestinação se segue da presciência divina? Parece-nos mais plausível afirmar que não, pois, pelo menos à primeira vista, saber que P não significa predeterminar P. Desse modo, verifica-se que é mais fácil compatibilizar o livre-arbítrio com a presciência do que compatibilizá-lo com a predestinação, porque a primeira é uma tese mais fraca do que a segunda. Logo, se a predestinação for compatível com o livre-arbítrio, então a presciência também o será. Entretanto, pode dar-se o caso de a presciência ser compatível com o livre-arbítrio e a predestinação não. Ao fazer esta distinção surge-nos a seguinte pergunta: se o teísta optar por resolver primeiramente o problema da predestinação ainda restará o problema da presciência? Não necessariamente, pois se ele apresentar uma tese forte poderá resolver a um só tempo os dois problemas.

Neste trabalho, “livre-arbítrio” significa a capacidade que uma pessoa tem de agir de determinada maneira — respeitando-se as circunstâncias naturais do mundo — consoante a sua vontade. Pré-teoricamente, parece defensável que o conceito de livre-arbítrio é mais problemático do que o de onisciência, pelo seguinte: mesmo que se prove apodicticamente a inexistência do Deus teísta e não mais precisemos tentar compatibilizar o livre-arbítrio com algumas de suas propriedades, teremos de examinar a questão de termos ou não liberdade de escolha, dadas as condições naturais do universo que, por vezes, parecem-nos estarem determinadas. Claro que ao pensar na onisciência, nos ocorrem várias questões: O que significa precisamente dizer que Deus sabe tudo? Será a onisciência a capacidade de saber o que quer que seja, mesmo que, por vezes, essa sapiência implique algumas contradições? Ou será que a onisciência de Deus, tal como sua onipotência, apresenta problemas que só podem ser resolvidos à custa de uma revisão conceitual e algumas concessões teóricas que o teísta teria relutância em conceder? Apesar de ser argumentável que questões semelhantes são suscitadas quando nos inclinamos a pensar cuidadosamente no conceito de livre-arbítrio, trata-se de um conceito mais central que o de onisciência, pois este último está tipicamente associado a uma discussão de cunho religioso, ou seja, é discutido em menos contextos. Em contraste, o problema do livre-arbítrio não se restringe à filosofia da religião.

Assim, feitas estas considerações acerca dos conceitos com os quais estamos trabalhando, podemos avançar no nosso percurso argumentativo. A seguir, apresento duas concepções de onisciência que pretendem ser alternativas teóricas para a resolução do problema da presciência. Porém, antes de apresentá-las é importante esclarecer o conceito de eternidade com o qual iremos trabalhar.

A concepção de eternidade que assumiremos é aquela segundo a qual Deus existe com o tempo, mas não é corruptível tal como o são as outras coisas. A título informativo cabe-nos ressaltar que há filósofos que defendem outra concepção de eternidade, nomeadamente a eternidade atemporal. Segundo esta concepção, Deus existe fora do tempo e, portanto, nunca está temporalmente localizado no passado, no presente ou no futuro. Aquele que defende que Deus é onisciente e atemporal afirma que saber algo não implica uma dimensão temporal. Uma objeção óbvia que nos ocorre é a seguinte: se Deus não sabe algo no passado, no presente ou no futuro, sabe quando? Provavelmente a resposta do defensor desta concepção seria que Deus simplesmente sabe e não faz sentido perguntar quando. Prima facie parece-nos uma posição demasiado difícil de explorar, pois quem a quiser sustentar terá de mostrar como é possível conhecer algo atemporalmente, ou seja, como Deus pode saber o que se passa numa dimensão temporal sem estar inserido em alguma, e como é possível termos liberdade de escolha no tempo sem que um ser que está fora do tempo saiba ou determine que escolha faremos efetivamente. Munidos destas informações cumpre assinalar que não iremos adentrar nesse ponto, pois a questão de saber qual é a natureza da eternidade de Deus constitui um tema para outro ensaio. Após este esclarecimento podemos nos debruçar sobre as concepções de onisciência anunciadas anteriormente. Chamar-lhes-ei concepção probabilística e concepção restrita ao âmbito de possibilidades.

Concepção probabilística

A concepção probabilística de onisciência pode ser compreendida na medida em que pensamos que Deus não nos obriga a ter os propósitos que temos, mas sabe probabilisticamente as escolhas que resultarão destes propósitos. Portanto, do fato de Deus ter um grande percentual de acerto acerca de qual será nossa escolha, não se segue que a determina ou influencia diretamente. Segue-se apenas que, dada a sua enorme sapiência, Deus consegue vislumbrar as nossas intenções, inclinações e preferências. Ou seja, Deus conhece todos os fatores que podem motivar nossas possíveis escolhas. Mas como Deus consegue saber tais coisas? Consegue saber tais coisas porque estas têm a natureza de coisas possíveis, ou seja, não implicam contradição nem com a estrutura da realidade nem com suas propriedades essenciais. Ao passo que saber quem será o presidente do Brasil em 2020 ou saber precisamente que escolha faremos amanhã não tem a natureza de coisas possíveis dado que, para um ser que existe com o tempo, embora não sendo corruptível pelo mesmo, não é possível saber o futuro. No entanto, saber as características psicológicas e comportamentais acima mencionadas são coisas perfeitamente possíveis para um ser onisciente. Logo, este conhecimento pormenorizado de nossos estados mentais permite-lhe saber com alto grau probabilístico as escolhas que faremos.

Podemos clarificar a nossa primeira concepção de onisciência através da seguinte analogia: imaginemos, em condições normais, um pai cuidadoso e seu filho ainda criança. Relativamente à estrutura cognitiva do pai, a do filho é demasiado simples e, por essa razão, suas ações são previsíveis. Suponhamos que este pai decide comprar um brinquedo para o seu filho mas, ao invés de comprá-lo diretamente e levá-lo para casa, decide levar o filho até à loja de brinquedos para que o mesmo o escolha. E, como já era muito provável, o filho escolhe exatamente o brinquedo que o pai pensara antes em levar para casa. Por outras palavras, dada a previsibilidade das ações do seu filho, o pai já sabia probabilisticamente que escolha ele faria, mas de modo algum a influenciou ou a previu inequivocamente. Mas se o pai em questão já sabia com alto grau de probabilidade que escolha o seu filho faria, por que razão o levou à loja de brinquedos ao invés de comprá-lo antes e levá-lo para casa? Pela mesma razão que Deus não influencia nem determina as nossas escolhas. Numa palavra: para termos a experiência do livre-arbítrio. Portanto, tal como o pai de nosso exemplo sabia probabilisticamente que brinquedo o seu filho escolheria, Deus sabe probabilisticamente as escolhas que faremos, embora não as possa prever inequivocamente.

Será realmente procedente a analogia feita acima? Será Deus realmente comparável a um pai cuidadoso e nós realmente comparáveis a uma criança? Um possível objetor poderia dizer que não, afirmando que a analogia não se segue já que uma criança, dada a sua estrutura cognitiva que não está plenamente desenvolvida, não possui livre-arbítrio. Ou seja, poderia argumentar que o livre-arbítrio só é possível para seres com a racionalidade desenvolvida num determinado ponto. E que, portanto, uma criança não pode ter a liberdade de escolha tal como nós a temos.

Dadas as dificuldades colocadas pela objeção feita acima, talvez seja importante tentar estabelecer critérios que sirvam como condições necessárias e suficientes para que uma pessoa possa ter livre-arbítrio. O uso de condições necessárias e suficientes é um modo bastante preciso para definirmos os termos e os conceitos com os quais estamos a trabalhar, pois estabelece de modo claro as condições de verdade de uma determinada proposição. Por exemplo: uma pessoa tem livre-arbítrio se, e somente se, tem uma racionalidade desenvolvida. Se formos responder ao nosso objetor seguindo por este caminho entraremos numa tarefa demasiado difícil, pois teríamos de definir o que é ter uma racionalidade desenvolvida de tal modo que possa ter realmente liberdade de escolha. Mas será esta a única alternativa possível para responder ao nosso objetor?

Não me parece. Não precisamos seguir esse caminho para responder à objeção ventilada acima. Basta-nos pensar que o livre-arbítrio, como já o definimos, significa a capacidade que uma pessoa tem de agir de certa maneira consoante a sua vontade. Pois, embora seja argumentável que uma pessoa racional fará melhor uso do seu livre-arbítrio, não se segue que uma pessoa que não tenha desenvolvido plenamente sua racionalidade — como a criança do nosso exemplo — não tenha livre-arbítrio. Assim, a escolha que resulta do livre-arbítrio não é implicada por uma opção racional previamente pensada, articulada e ponderada. Portanto, se esta tese estiver correta, então a objeção mencionada não refuta a idéia central da analogia.

Concepção restrita ao âmbito de possibilidades

Na Suma Teológica, Tomás de Aquino argumenta que a onipotência de Deus não significa que este possa fazer toda e qualquer coisa, e sim as coisas que são absolutamente possíveis. Ou seja, as coisas que não implicam contradição nos termos e que são tarefas genuínas. Por exemplo: criar um triângulo com cinco lados não é algo absolutamente possível. Pelo que não faz sentido dizer que Deus tem uma limitação no seu poder por não poder fazer tal coisa. Por essa razão, Tomás afirma: “as coisas que implicam contradição não constituem objeto da divina onipotência, por não poderem ter a natureza de coisas possíveis” (Aquino, p. 252). Desse modo, talvez seja melhor afirmarmos que esta tarefa não pode ser executada. Logo, não é que Deus não possa fazê-la por alguma deficiência sua. O que ocorre é que essas coisas simplesmente não podem ser feitas.

Podemos alargar a noção de onipotência referida acima à nossa segunda concepção de onisciência. Assim, tal como a onipotência é a capacidade de fazer tudo o que é possível fazer, a onisciência é a capacidade de saber tudo o que é possível saber. Portanto, dizer que Deus é onisciente é dizer que sabe tudo aquilo que é possível saber, ou seja, tudo aquilo que está no âmbito das possibilidades. E quanto às escolhas que fizemos? Como é evidente, não é possível para Deus saber previamente que escolhas fizemos, pois — pelo menos num sentido mais forte com relação às ações humanas — saber algo que ainda não fizemos não é possível, ou seja, não está no âmbito de possibilidades. Não obstante, poder-se-ia argumentar que num sentido mais fraco é possível prever acertadamente algo que não ocorreu com base nas regularidades da natureza. Embora esta concepção seja motivo de disputa, se tomarmos a definição canônica de conhecimento (crença verdadeira justificada) e aceitarmos a tese atribuída a Aristóteles segundo a qual as proposições referentes ao futuro não têm valor de verdade, teremos de afirmar que saber o que não aconteceu ainda (tanto num sentido fraco quanto num sentido forte) não é possível. E também, como vimos, Deus não pode saber o futuro devido à sua coexistência com o tempo. Porém, dada a sua onisciência, ele sabe todas as possíveis escolhas que podemos eleger para realizar efetivamente. Assim, qualquer que seja a escolha que fizermos não haverá surpresa para Deus no sentido dos possíveis caminhos que temos para escolher; porém, haverá quanto à nossa escolha efetiva. Assim, Deus só saberá efetivamente que escolha faremos no exato momento em que a fizermos. Portanto, feitas estas distinções, temos razões para pensar que, se a concepção exposta for verdadeira, então a onisciência de Deus não é incompatível com o livre-arbítrio.

O seguinte exemplo pode ajudar a clarificar esta questão: suponha-se que desejamos ir ao lugar x e conhecemos três caminhos para chegar até ele. Imaginemos também que na verdade existem dez caminhos para chegar ao lugar x e que, dada a nossa limitação cognoscitiva, conhecemos apenas os caminhos 1, 2 e 3. Do nosso ponto de vista, temos de escolher entre estes três caminhos para chegar ao lugar x; mas do ponto de vista de Deus não, pois este conhece todos os caminhos (os três que conhecemos e os outros sete que não conhecemos). Imaginemos também que, por uma razão qualquer, ao tentar ir ao lugar x, nos desviamos dos caminhos conhecidos (1, 2 e 3) e chegamos ao lugar x através do caminho 5. Para nós, será uma grande surpresa pois o caminho 5 não estava no âmbito das possibilidades que conhecíamos. Porém, para Deus, não há surpresa neste sentido, pois, sendo onisciente, já conhecia realmente (ao contrário de nós) todo o âmbito das possibilidades. Por outras palavras, Deus sabia que iríamos escolher entre os dez caminhos possíveis, porém só soube qual foi o caminho escolhido no exato momento em que o escolhemos. Desse modo, verifica-se que a onisciência de Deus não implica que conhece o futuro ou determina nossas escolhas. Significa apenas que, dado um conjunto qualquer de situações, Deus conhece as implicações e as possibilidades de escolha que temos, estando nós cientes ou não delas. Logo, podemos afirmar que a onisciência de Deus não interfere no nosso livre-arbítrio; apenas abarca um âmbito de possibilidades que, para nós, devido às nossas limitações, são inescrutáveis.

Poder-se-ia objetar que essa posição é desconfortável para o teísta tradicional, pois este acha inconcebível supor que Deus não conhece o futuro; ou seja, não aceita que Deus possa ter algum tipo de ignorância. Embora a posição defendida neste ensaio possa desagradar ao teísta, constitui uma alternativa atraente, rival da concepção tradicional. A posição defendida neste ensaio é atraente porque não apresenta os problemas imediatos que a concepção tradicional apresenta. Por exemplo: segundo a concepção tradicional, Deus é atemporal e conhece previamente nossas escolhas. Pode ser que estejamos enganados, mas, pelo menos à primeira vista, não se vê como se pode fazer uma defesa do livre-arbítrio partindo desta concepção sem distorcer fortemente a noção de livre-arbítrio. Por essa razão, um teísta não dogmático em busca de uma base racional para sua crença poderia aceitar as concepções mais fracas de onisciência apresentadas anteriormente, pois não apresentam esse tipo de problema.

O problema da presciência constitui um dos maiores desafios a que o teísta tem de responder. Apesar de, obviamente, não termos resolvido decisivamente a questão parece que — ao aceitarmos as concepções de onisciência defendidas neste trabalho (a probabilística e a restrita ao âmbito de possibilidades) — temos uma alternativa teórica plausível a favor da tese segundo a qual a onisciência de Deus não impede o uso da nossa genuína liberdade de escolha e, portanto, não é incompatível com o livre-arbítrio.

Rafael Alberto S. d’Aversa
Trabalho realizado no âmbito da disciplina Filosofia da Religião, ministrada por Desidério Murcho na UFOP

Bibliografia

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ISSN 1749-8457