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24 de Janeiro de 2004   Ética

Um princípio moral acerca de matar

Richard Brandt
Tradução de Vítor João Oliveira

Um dos Dez Mandamentos afirma: “Não matarás”. O mandamento não especifica nenhum objecto para o verbo, mas a visão católica tradicional tem defendido que o objecto próprio seria “seres humanos inocentes” (em caso de extrema necessidade), sendo “inocente” tomado no sentido em que se excluem pessoas condenadas a penas capitais ou envolvidas numa acção injusta com a finalidade de matar, como no caso das forças armadas de um país envolvidas numa guerra injusta. Assim considerado, supõe-se que a proibição abrange o suicídio e o aborto. (Há uma especificação: que não se tenham em atenção casos em que a morte não seja desejada em si mesma ou encarada como um meio para um fim que é considerado em si mesmo, sendo certo que, em ambos os casos, o fim da acção será o de evitar um mal maior para a pessoa). Ora, será possível defender esta visão que considera todo o acto de matar seres humanos inocentes como moralmente reprovável, e se não for, que princípio alternativo poderá ser defendido?

Esta é uma questão decisiva que está longe de gerar consenso. Dar-me-ia por satisfeito se fosse possível identificar um princípio que pudesse ser demonstrado caber num sistema moral que qualquer pessoa racional e benevolente pudesse defender para uma sociedade em que aceitaria viver. Aparentemente haveria outros que não ficariam tão satisfeitos; então, no que se segue, tentarei simplesmente tecer algumas considerações que, espero, permitam identificar um princípio com o qual pessoas conscientes e inteligentes se possam sentir confortáveis. Acredito que o princípio que vou esboçar poderá pertencer ao sistema moral que pessoas racionais e benevolentes desejariam para a sua sociedade.

Comecemos pela reflexão sobre o que significa matar. O primeiro aspecto a considerar é que matar é um termo biológico. Por exemplo, uma videira pode ser morta por um produto químico. O verbo matar envolve essencialmente uma noção ampla de morte — a mudança do estado de estar biologicamente vivo para o estado de estar morto. Está além dos meus poderes fornecer qualquer caracterização genérica desta transição, e provavelmente é impossível arranjar uma. Mas se houver, será no sentido em que é partilhado pelos seres humanos, moscas, fetos; pelo que matar significará provocar essa transição. O segundo aspecto a considerar relaciona-se com o facto de nenhum ser humano viver para sempre, pelo que matar um ser humano num dado momento, pode entender-se como adiantar a data da sua morte, ou encurtar a sua vida. Pode então considerar-se que significa terminar com a vida de uma pessoa num tempo t em vez do fim desta ocorrer no tempo t + k. Matar será então encurtar o ciclo de vida de um qualquer organismo.

Há que considerar um terceiro aspecto sobre o termo matar. Este pertence a uma teoria da agência causal e tem as suas raízes na tradição legal. Como tal, envolve implicações. Por exemplo, suponha-se que empurro um bloco de pedras montanha abaixo com o intuito de acertar na pessoa X e que atinge de facto X, de tal forma que esta acaba por morrer com o impacto e não antes dele (nem sequer por causa de um súbito ataque cardíaco); neste caso, pode-se afirmar que matei X. Por outro lado, suponha-se que aviso Y que X está na cama com a sua mulher, e que Y apressa-se para o local, apanhando-os em flagrante, e acabando por dar um tiro fatal em X; neste caso, ainda que o decorrer do eventos da minha acção possa ser considerado como causa real da morte de X, tanto quanto a queda das pedras, não se poderá dizer que matei X. Felizmente, para o efeito de determinar princípios moralmente correctos, podemos deixar de lado estas dificuldades. Suponha-se que escolho entre os cursos de acção possíveis A ou B (em que uma ou o outra destas “acções” pode ser concebida simplesmente como inacção – por exemplo, não fazer o que sei será a única coisa que prevenirá a morte de alguém); então será suficiente se souber ou se possuir uma razão para pensar ser altamente provável, que, se fizer A, um estado do mundo, incluindo a morte de uma pessoa, verificar-se-á, ou que, se fizer B, um estado do mundo de um tipo diferente poderá ocorrer. Se houver um princípio moral que me diga neste caso se devo ou fazer A ou B, isso será tudo o que preciso. Pode suceder que um princípio moral me diga que nunca devo realizar acções do tipo A, pois se o fizer, provocarei sempre a morte de um qualquer ser humano, sobretudo se existe um curso de acção alternativo que posso realizar, de tal forma que, ao fazê-lo, tal não suceda.

Será oportuno reformular a tradicional visão católica sobre este assunto preservando o seu espírito e o seu desígnio (ainda que alguns filósofos discordem desta análise), e procurando ao mesmo tempo evitar algumas concepções vagas e mais apropriadas a um princípio sobre a culpabilidade moral de uma pessoa, do que a um princípio sobre aquilo a que ela está moralmente obrigada a fazer. A terminologia que estou a usar remonta, na literatura filosófica, a uma frase utilizada por W. D. Ross, embora a sua concepção seja bem familiar. A proposta alternativa é que existe prima facie uma forte obrigação de não matar seres humanos excepto em casos justificados de autodefesa; no sentido em que é (prima facie) moralmente errado matar um ser humano, excepto em casos justificados de autodefesa a não ser que exista prima facie uma obrigação moral mais forte para fazer alguma coisa que não possa ser realizada sem matar. (O termo inocente não pode ser agora omitido, uma vez que se uma pessoa não é inocente, pode existir uma obrigação moral mais forte, que pode apenas ser descartada matando-a; e esta alteração é para melhor uma vez que não é óbvio que não tenhamos prima facie a obrigação de evitar matar pessoas mesmo que elas não sejam inocentes.) O resultado desta formulação é que, por vezes, para decidir o que é moralmente correcto, temos que comparar o rigor de obrigações morais conflituantes — o que é uma tarefa enganadora; mas a outra formulação esconde, por um lado, o mesmo problema colocando-o noutro plano, por outro, conduz a implicações objectivas. (Considere-se uma implicação da formulação tradicional, supondo o exemplo de uma festa de espeleologistas numa gruta junto ao oceano. Descobre-se a certa altura que a maré está a encher e que rapidamente inundará a gruta e que se todos se afogarão, a menos que consigam fugir ao mesmo tempo. Infelizmente o primeiro homem a forçar a saída é demasiado gordo e acaba por tapá-la de forma inexorável, ficando com a cabeça dentro da gruta. Ora, em consequência, ou forçam a saída empurrando o homem gordo até rebentarem com ele, ou todos, incluindo o homem gordo, morrerão. A formulação tradicional conduz-nos à conclusão de que todos devem afogar-se.)

Consideremos então o princípio “Existe prima facie uma forte obrigação moral de não matar um ser humano excepto em caso justificável de autodefesa”. Não acredito que queiramos aceitar este princípio sem mais considerações; com efeito, o seu estatuto não parece ser o de um princípio básico, mas uma derivação de princípios mais básicos. W. D. Ross elaborou uma lista contendo aqueles que considerava ser as obrigações morais essenciais; é notável que tenha assinalado como dever prima facie o de não provocar dano, mas não tenha incluído a obrigação de não matar. Isto é presumivelmente um equívoco. Pode ter pensado que matar um ser humano é sempre prejudicá-lo, pelo que acrescentar a obrigação de não matar seria redundante; mas pode igualmente ter pensado que matar pode não ser sempre prejudicial e que seria prima facie obrigatório não matar nos casos em que e porque ao fazê-lo, estaria a prejudicar um ser sensível.

O que poderia considerar-se uma morte não prejudicial? Se, por exemplo, depois de encontrar um gato que apesar de ter sido mutilado por vários cães, mas que ainda está vivo ainda que agonize de dor, me recompuser e acabar com o seu sofrimento, matando-o, não estaria a prejudicá-lo. Não prejudico um animal terminando com o seu sofrimento. Se alguém está a ser torturado e queimado até à morte e se sei que o seu desejo maior é ter uma morte misericordiosa, não o prejudico ao matá-lo; ter-lhe-ei feito um favor. Em geral, parece que não terei prejudicado uma pessoa se a tratei de acordo com os seus desejos estando ela absolutamente consciente, ou de um modo que seria indiferente ela estar inteiramente consciente. (Não creio que terminar com a vida de um feto no terceiro mês seja prejudicial; admito que esta posição requer discussão[1].)

Considere-se um outro tipo de morte que não é prejudicial. Considere-se o caso de um ser humano que ficou inconsciente e que seguramente não recuperará a consciência. Está no hospital e vive apenas graças a dispendiosas medidas de suporte vital. Será que há prima facie uma obrigação moral forte de não retirar essas medidas e não dar passos positivos para terminar com a sua vida? Parece óbvio que, se está a ocupar a única máquina de hemodiálise que podia servir para salvar a vida de outra pessoa, que retornaria à sua vida normal em pouco tempo, seria errado não a ceder. Será que existe uma obrigação para continuar, ou para não terminar com a sua vida, se não houver uma obrigação conflituante? Penso que não, com a excepção seguinte, que coincide com o facto de estar para além do dano corporal. Também não existe a obrigação de não preservar a sua vida, digamos, para que os seus órgãos estejam disponíveis para quando forem necessários.

Parece, contudo, existir uma outra consideração moral relevante neste caso — o conhecimento dos desejos do próprio paciente enquanto esteve consciente e na posse total das suas faculdades. Suponha-se que receou esta eventualidade e preparou um testamento pedindo ao seu médico para acabar imediatamente com a sua vida uma vez nestas circunstâncias. Agora, se existe a obrigação moral de, até um certo ponto, cumprir os desejos de uma pessoa no que diz respeito a dispor do seu corpo e posses depois da sua morte, parece que existe do mesmo modo a obrigação moral de respeitar os seus desejos no caso de se tornar um “vegetal”. Na eventualidade de existir um tal documento, pensarei que, se essa pessoa não puder sofrer mais nenhum mal, então somos livres de lhe retirar os mecanismos de suporte vitais e de dar passos decisivos com vista a terminar com a sua vida – e estamos até moralmente obrigados a fazê-lo. (Se, contudo, o paciente tivesse preparado um documento onde dizia que o seu corpo deveria ser mantido vivo tanto quanto possível nestas circunstâncias, então haveria prima facie uma obrigação de manter os mecanismos de suporte vital e de não terminar com a sua vida. Pareceria óbvio, todavia, que esta obrigação ruiria no caso de estar ligado à única máquina de hemodiálise que poderia salvar outra pessoa.) Algumas pessoas não hesitariam em desligar os mecanismos de suporte vital neste caso, mas não avançariam no que diz respeito a avançar para soluções mais definitivas. Mas a hesitação relativamente a tomar medidas mais drásticas, que os veterinários aplicam amiúde aos animais, é seguramente melindrosa; se uma pessoa está no estado descrito, o dano que poderá sofrer não será nem maior nem menor do que aquele que sofrerá em caso de se desligar os procedimentos de suporte vital.

Se estou certo na análise deste caso, devo enunciar o nosso princípio básico acerca de matar de tal forma que se considere (1) a circunstância de que de matar provoca sofrimento e (2) os desejos e vontades da própria pessoa. Talvez, mais importante ainda, há que considerar que qualquer princípio moral acerca de matar deve ser visto por relação a princípios mais básicos sobre estes assuntos.

Procure-se corroborar esta proposta considerando uma outra situação, em que terminar com a vida de alguém fosse até um benefício. Suponha-se que o paciente é um doente terminal e que está a sofrer imenso, sujeito a breves recuperações, mas sem qualquer perspectiva de que a sua vida vá melhorar, no curto ou no longo prazo. Parece que nesta situação, estando o doente a sofrer bastante, se aceite desligar as máquinas de suporte vital, ou que se tomem medidas mais firmes para terminar com a sua vida. Mas penso que não aceitaríamos esta inferência, pois o paciente nesta situação, convenhamos, teria as suas preferências e seria capaz de as expressar. O paciente pode ter convicções religiosas fortíssimas e continuar a viver apesar da dor; se for assim, há naturalmente prima facie a obrigação moral de não acabar com a sua vida., Mesmo que, aparentemente, esta seja uma situação em que seria racional o agente, do ponto de vista do seu próprio bem-estar, terminar com a sua vida[2], parece que se ele (irracionalmente) faz o contrário, existe prima facie a obrigação moral de não o matar e existe prima facie uma obrigação moral de o manter vivo. É evidente que os desejos expressos de uma pessoa possuem força moral. (Acredito, contudo, que pensamos que os desejos expressos de uma pessoa têm menos força moral quando os consideramos irracionais.)

Qual será o efeito neste caso, se o próprio doente expressa a sua preferência pela acção de terminar com a sua própria vida de tal modo que, se lhe facultassem os meios adequados, ele próprio o faria? Existirá prima facie uma obrigação moral de não acabar com a vida — e a dor — dessa pessoa contra a sua vontade? Seguramente que não. Ou haverá uma obrigação de não desencadear os passos decisivos para acabar imediatamente com a sua vida, poupando dessa forma ao doente, mais sofrimento? Uma vez mais, seguramente que não. Que razões se podem oferecer para justificar a pretensão de responder afirmativamente, a não ser de ordem teológica relativa à vontade de Deus e à nossa obrigação de permanecer vivos para o Seu prazer? O único argumento que me ocorre é que existe uma certa preocupação das políticas públicas, no sentido de reconhecer que esta permissividade moral pode conduzir a abusos ou a outras formas de desestabilização social a longo prazo. Este argumento parece fraco.

Pode questionar-se a possibilidade de honrar o pedido do paciente, se for realizado numa altura em que está a sofrer, com o pretexto de que não é racional. (O médico pode estar numa posição tal que possa ver que o paciente tem a noção clara das suas perspectivas e que o seu bem-estar pessoal seria maximizado pelo acção de terminar com a sua vida.) Pode questionar-se ainda a possibilidade de honrar uma declaração formal do paciente, escrita anteriormente, e onde solicitava que terminassem com a sua vida se estivesse nas circunstâncias actuais, com o pretexto de que antes ele não saberia como iria ser a situação presente. Pareceria estranho, contudo, não identificar quaisquer circunstâncias em que um pedido desta natureza estaria condenado a possuir força moral, uma vez que o seu pedido de não terminar com a sua vida nas mesmas circunstâncias é encarado como moralmente relevante, já que seria claramente irracional. Penso que podemos ignorar este tipo de argumentação e defender que, numa situação em que é racional para uma pessoa escolher terminar com a sua vida, o seu desejo expresso é moralmente definitivo e retira tanto a obrigação de o manter vivo quanto a obrigação de não o matar.

Com efeito, existe a questão de se saber se nestas circunstâncias o médico não terá a obrigação moral de pelo menos não desligar as máquinas de suporte vital, e de talvez acabar positivamente com a sua vida. Pelo menos parece haver uma obrigação moral genérica de assistir uma pessoa quanto esta necessitar, que pode ser prestada com poucos custos e quando é solicitado. Esta obrigação é ainda mais forte quando em causa está a única pessoa capaz de receber este pedido ou tomar conhecimento desta situação. Acrescenta-se que o médico adquiriu uma obrigação especial se tiver mantido uma longa relação pessoal com o paciente — terá obrigações especiais se for amigo ou familiar. Mas, como estamos a discutir a obrigação de não matar e não a possível obrigação de matar, não desenvolverei este assunto.

A expressão das preferências ou do consentimento do próprio paciente, parece então mais importante. Mas suponha-se que não pode expressá-las; suponha-se que a sua doença terminal causa-lhe um enorme sofrimento e também lhe afecta o cérebro de uma forma que o torna incapaz de pensar e de produzir um discurso coerente. Pode o médico, então e após consulta, tomar o assunto nas suas próprias mãos? Amiúde julgamos saber o que é melhor para os outros, mas consideramos inaceitável que alguém decida por nós. Do mesmo modo que devemos respeitar a decisão de alguém se suicidar, sobretudo se tomada após longa e cuidada deliberação, não devemos tomar a liberdade de terminar com a vida de alguém contra a sua vontade. O que fazer? Deve alguém sofrer só porque não pode expressar o seu consentimento? Há indícios que se podem reunir relativamente às conclusões que alguém poderia tirar se estivesse em situação de o fazer e de as expressar. Os amigos do paciente devem recordar-se seguramente de afirmações suas no passado, dos valores e das perspectivas éticas que defendia. Tal como nós podemos possuir boas razões para pensar, por exemplo, que teríamos votado nos Democratas nas eleições presidenciais de um determinado ano, também podemos ter boas razões para pensar que ele poderia ter tomado posição quanto a terminar com a sua vida em diversas circunstâncias. Podemos saber de pessoas que, em virtude das suas crenças religiosas, quereriam manter-se vivas até que causas naturais o impedissem. Podemos saber com relativa segurança o que outros, em virtude de não partilharem das mesmas crenças, decidiriam de forma diferente. Também podemos saber qual seria a decisão racional que tomariam, e este nosso conhecimento pode fornecer indícios acerca do que desejariam se pudessem. Naturalmente que existem complicações práticas na mecânica concreta de uma comissão de inspecção desta natureza com vista a deliberar em assuntos deste tipo, mas que não são insuperáveis.

Quero considerar um outro tipo de caso: considere-se uma pessoa que, digamos, sofreu um ataque cardíaco e que leva e pode continuar a levar, durante algum tempo, uma vida que é confortável embora num nível bastante baixo, mas que pediu antecipadamente que terminassem com a sua vida se, em consequência do ataque cardíaco, viesse a padecer de uma doença incurável. Pode tal acontecer? Neste caso, ao contrário dos outros, verifica-se a possibilidade de realizar algumas experiências provavelmente agradáveis, talvez ao nível de alguns animais, mas que parecem ser uma coisa boa. Dificilmente se poderá afirmar que, ao manter uma pessoa viva, algum tipo de sofrimento está a ser-lhe infligido; mas pode dizer-se que algum tipo de dano existe ao terminar com a sua vida. Existe aqui um problema real. Pode o (pouco) prazer resultante destas experiências pesar mais que uma pedido anterior que solicita o terminar com a própria vida em caso de senilidade irreversível? Não é prejudicial manter uma pessoa viva ainda que esta tenha desejado o contrário, mas parece haver algum tipo de indecência em manter vivo alguém que sofreu um ataque cardíaco severo, quando sabemos bem que, se de alguma forma o pudesse ter sabido antes, o seu impulso seria acabar com a sua própria vida. Penso que o pedido de alguém nestas circunstâncias deve ser honrado; deve sê-lo se os seus desejos expressos têm o peso moral que penso que devem ter.

Que conclusões gerais decorrem da discussão anterior? Enfatizarei duas. Primeiro, existe prima facie uma obrigação de não terminar com a vida de uma pessoa se isso lhe for prejudicial (excepto nos casos de autodefesa ou de senilidade de uma pessoa cujo desejo conhecido é o de terminar com a sua vida em certas circunstâncias) ou se não o desejar. Segundo, não existe prima facie uma obrigação de não terminar com a vida de uma pessoa se tal não for prejudicial para ela, ou quando se verifique haver um benefício positivo (libertar alguém do sofrimento) ao fazê-lo, desde que a pessoa não tenha declarado nada em contrário ou que existam fortes indícios que mostrem que essa seria a sua decisão. Existem obviamente duas coisas que são decisivas para a moralidade da acção de acabar com a vida de uma pessoa: se tal acção for prejudicial para ela ou se estiver em conformidade com os seus desejos conhecidos.

Afirmei no início que ficaria satisfeito se encontrasse alguns princípios morais que pudessem ser aceites por pessoas racionais de tal forma que desejassem incorporá-los nas consciências de todos os que fazem parte do seu grupo de pertença. São óbvios os motivos pelos quais pessoas racionais aceitariam estes princípios. Querem evitar o sofrimento porque não querem que os outros os prejudiquem e porque, se são benevolentes, não os querem prejudicar. Mais até, reconhecem o peso dos desejos expressos dos outros. Pessoas racionais querem decidir sobre as suas vidas, quando tal for possível; sentem-se desconfortáveis ao pensar que outros se possam sentir livres para dispor das suas vidas sem o seu consentimento. A ameaça de uma doença séria é já em si mesmo suficientemente má, sem que haja necessidade de considerar esta perspectiva. Por outro lado, este desconforto seria eliminado se soubessem que a iniciativa de terminar com as suas vidas sem o seu consentimento explícito, não seria tomada, a não ser nos casos em que se verificasse um cuidadoso processo de deliberação, que tivesse em atenção o facto de poder ser prejudicial ou que existisse um pedido para tal formulado em circunstâncias tais que o permitisse.

Se estou certo, parece que matar uma pessoa não é algo que seja apenas prima facie errado em si mesmo; é decisivamente errado apenas se e porque é prejudicial para alguém, ou se e porque é contrário às suas preferências conhecidas. Parece que um princípio sobre o carácter prima facie errado acerca de matar deriva de princípios sobre quando somos prima facie obrigados a não prejudicar uma pessoa e quando somos prima facie obrigados a respeitar a sua vontade, pelo menos no que diz respeito ao que acontece com o seu corpo. Não tenho, contudo, nenhuma sugestão relativamente à apresentação mais ampla deste tipo de princípios.

Richard Brandt
Taking Sides: Classing Views on Controversial Moral Issues, ed. Stephen Satris (Connecticut: McGraw Hill, 2000, 7.a ed.), pp. 298-304.

Notas

  1. Veja-se o meu “The morality of abortion” in The Monist, 56, 1972), pp. 503-26; e na sua forma revista, no volume editado por R. L. Perkins.
  2. Veja-se o meu “The morality and rationatlity of suicide” in J. Rachels (ed.). Moral Problems; e, na sua versão revista, in E. S. Shneidman (ed.). Suiciodology: current developments.
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