Ocorre um pseudo-argumento quando alguém apresenta o que, semanticamente, é sem dúvida um argumento, mas o apresenta de tal modo que, pragmaticamente, é apenas um acto discursivo alheio à argumentação. A argumentação é um convite à discussão: apresentamos as razões que genuinamente pensamos que sustentam uma dada ideia, e fazemo-lo de modo tão explícito quanto possível precisamente para permitir que a outra pessoa analise cuidadosamente não apenas as premissas que usamos, mas também se delas se infere correctamente a conclusão que defendemos. Por essa razão, os pseudo-argumentos prestam-se a confusões.
Eis alguns exemplos: “Nada há de errado em comer animais porque se estes pudessem também nos comiam a nós”; “Ninguém é genuinamente ateu porque mesmo para negar a existência de Deus é preciso aceitar a sua existência”; “Os animais não têm direitos porque não têm deveres”. Como facilmente se vê, em cada um destes casos ocorre a palavra “porque”, que tem a função semântica aparente de indicar que a conclusão anterior a essa palavra é sustentada pela premissa que se lhe segue. Daí que não seja de espantar que pessoas habituadas a discutir argumentos reajam a elocuções como estas como se de genuínos argumentos se tratasse.
Mas é então que se descobre que quem proferiu tais palavras não está minimamente interessado em considerar cuidadosamente se as suas premissas são plausíveis ou se delas se infere a conclusão apresentada. Isto pode dar origem a constrangimentos sociais, porque nos lançamos numa discussão entusiasmada do argumento, para depois vermos com horror que o nosso interlocutor não esperava senão o nosso assentimento simpático — um pouco como quem concorda que é capaz de chover hoje, só para ser simpático e fazer conversa, sem que tal concordância seja interpretável semanticamente como um compromisso com qualquer previsão meteorológica, mas antes como uma maneira de ser simpático e trocar sorrisos.
É defensável que em tais elocuções não se apresenta um argumento genuíno, que pela sua natureza aberta pede avaliação, mas antes um discurso fechado que manifesta apenas a perspectiva irrevogável do interlocutor. Precisamente porque é entendido por ele como uma mera manifestação da sua perspectiva irrevogável, a nossa discussão explícita do que erradamente tomámos como um argumento é vista como ofensiva. Isto faz pleno sentido porque se a elocução original não for entendida como um argumento, mas apenas como a manifestação da sua perspectiva, sendo que o interlocutor em momento algum declarou a sua disponibilidade para que tal perspectiva seja discutida, a nossa discussão é entendida como uma rejeição do seu direito a essa perspectiva. Ficamos então espantados quando a pessoa reage invocando precisamente o seu direito a ter tal perspectiva, quando do nosso ponto de vista tal direito nunca esteve em discussão: tudo o que estava em discussão era se o argumento apresentado era cogente ou não, sendo evidente que qualquer pessoa tem o direito de sustentar quaisquer perspectivas, sem quaisquer argumentos, tendo também o direito de se recusar a discutir as suas perspectivas, se as considerar irrevogáveis.
Poder-se-á argumentar que as coisas não são assim tão simples, e que os supostos pseudo-argumentos devem realmente ser entendidos como argumentos que, por serem muito maus, denunciam um vício epistémico fundamental da parte do interlocutor: um pouco como se a pessoa quisesse dar-se ares de saber matemática, declarando com ar sapiente que a raiz quadrada de cinquenta é vinte e cinco, ficando irritada quando corrigimos o seu erro. A ideia seria então que quem apresenta os supostos pseudo-argumentos na verdade sustenta desejos inconciliáveis: por um lado, quer ter o prestígio de passar por pessoa ponderada, que baseia as suas perspectivas em argumentos cuidadosamente pensados; por outro, não quer realmente dar-se ao incómodo de pensar cuidadosamente nas razões a favor e contra as suas perspectivas, nem está minimamente interessada em revê-las e eventualmente abandoná-las.
Qual das duas hipóteses é a verdadeira, dependerá talvez de caso para caso. Contudo, não será desavisado seguir o conselho de Lao Tsé, e preferir o silêncio de ouro, à palavra de prata, quando não tivermos a certeza de estar perante um argumento genuíno, que genuinamente seja oferecido para discussão aberta. Um sorriso simpático e um comentário inócuo poderá ser exactamente o que o nosso interlocutor espera, em vez de uma discussão cuidadosa do argumento.
Um caso algo simétrico ao dos pseudo-argumentos é quando a pessoa declara explicitamente “o meu argumento é que...”, mas depois da palavra “que” surge uma mera afirmação. Isto é particularmente caricato em artigos académicos, afirmando-se coisas como “O argumento de Kant é que não podemos conhecer a coisa em si”, por exemplo. Como deveria ser evidente, depois da palavra “que” não há qualquer argumento; há apenas uma afirmação, a favor da qual nenhum argumento é oferecido. Se antes o que é explicitamente um argumento era visto como uma mera afirmação, agora o que é explicitamente uma mera afirmação é vista como se fosse um argumento. Apesar da simetria, contudo, os dois casos não são incompatíveis, podendo até estar relacionados com o mesmo fenómeno: um desconhecimento do papel cognitivo da discussão de argumentos.
Nas sociedades particularmente parcas em inovação, habituadas a tudo importar dos livros estrangeiros, não há uma noção clara de como descobrimos as coisas. A ideia falsa vagamente entrevista é que descobrimos as coisas exclusivamente vendo-as; não há qualquer noção do papel central desempenhado pela argumentação cuidadosa na descoberta das coisas. A argumentação é encarada apenas como o que acontece quando não podemos descobrir a natureza das coisas porque não as podemos ver, pelo que argumentar é apenas manifestar perspectivas — não para as discutir cuidadosamente, mas apenas para as contrastar entre si. Deste ponto de vista, analisar e discutir cuidadosamente argumentos a favor das nossas perspectivas é encarado como uma tolice, porque desse modo nunca se poderá descobrir coisa alguma. E é até ofensivo, porque parece que estamos a pôr em causa o direito que a outra pessoa tem a ter a perspectiva que tem.
Acontece que esta concepção da descoberta é falsa; as descobertas dependem crucialmente da argumentação intensa e cuidadosa. E quando argumentamos, por mais cuidados que tenhamos, podemos enganar-nos. Precisamente porque nos enganamos a argumentar, precisamos da ajuda dos nossos semelhantes. Serão eles a ajudar-nos a argumentar melhor, discutindo explícita e abertamente tanto a plausibilidade das nossas premissas, como a questão de saber se delas se infere correctamente a conclusão pretendida. A discussão de argumentos é uma tarefa elementar de descoberta das coisas, o que implica a abertura para abandonar as nossas perspectivas quando os argumentos que as sustentam se revelam deficientes. Assim, a mera manifestação de perspectivas diferentes não é enriquecedora, como por vezes se pensa, se ao mesmo tempo não discutirmos intensa e cuidadosamente os argumentos a seu favor. A mera manifestação de perspectivas é tão insuficiente para a descoberta das coisas como comprar um piano o é para aprender a tocar piano: tanto num caso como no outro há algo que falta fazer, ora com as perspectivas ora com o piano. Do mesmo modo que a mera contemplação do piano na sala não nos ajuda a tocar piano melhor, também a mera contemplação de perspectivas opostas não nos permite dar um só passo em direcção às perspectivas mais provavelmente verdadeiras.
O papel cognitivo da discussão cuidadosa e epistemicamente virtuosa de argumentos é ajudar-nos a corrigir os erros inevitáveis nos nossos argumentos. E os argumentos têm um papel cognitivo crucial porque a maior parte do que sabemos sabemo-lo não por observação directa, mas antes inferindo do que vemos ou de outras coisas que sabemos — e as inferências partilham com os argumentos o mesmo aspecto crucial de pretender concluir algo com base noutra coisa. A mera expressão de perspectivas inabaláveis é um obstáculo ao progresso cognitivo e ao alargamento da compreensão das coisas. O que não é dizer que as pessoas não têm o direito de rejeitar a discussão dos seus pseudo-argumentos; certamente que o têm. Mas seria melhor para elas mesmas se não rejeitassem a experiência maravilhosa de verem os seus argumentos serem refutados ou corrigidos pelos seus interlocutores. O conselho de Fernando Pessoa e Álvaro de Campos não é aqui despiciendo: mudar de metafísica como quem muda de camisa, ser um pouco ateu até perante as nossas próprias convicções.
Desidério Murcho